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'Você sempre acha que alguém vai pular': o condutor de metrô que testemunhou 8 tentativas de suicídio

Enric Botella* - BBC News Mundo

13/05/2019 15h42

Javier García cresceu sonhando em conduzir metrô, assim como seu pai, conta que passou 11 meses fora do trabalho em Barcelona sob tratamento psicológico por causa de experiência traumática - e que chegou a pensar em tirar a própria vida.

Javier García cresceu sonhando em se tornar um condutor de metrô, como seu pai.

Mas esse sonho, que se materializou quando ele tinha apenas 20 anos, virou um pesadelo com o passar do tempo.

Não são muitos os condutores de metrô já presenciaram tentativas de suicídio dos usuários.

Uma parcela ainda menor testemunhou esse tipo de incidente mais de uma vez.

No entanto, García passou por isso oito vezes.

Embora nem todas as tentativas de suicídio terminem em morte, para os condutores, trata-se de uma experiência traumática.

Confira abaixo o relato de García, que vive e trabalha em Barcelona, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.


ALERTA: ESTA REPORTAGEM CONTÉM DESCRIÇÕES EXPLÍCITAS DE SUICÍDIO


O metrô está no meu sangue desde que nasci. Meu pai trabalhava como condutor e praticamente cresci ali.

Para uma criança, o metrô é como um grande brinquedo. A paixão era tal que queria que meu futuro fosse exatamente igual ao do meu pai.

Quando era jovem, passei por fases em que estava um pouco perdido.

Me alistei no Exército para me colocar nos eixos. Quando voltei, meu pai sugeriu que eu trabalhasse no metrô e meu sonho de conduzir trens começou a se materializar.

Na primeira vez que operei um trem, congelei.

Desde o início, um dos principais medos é que haja alguém nos trilhos, ou que alguém se jogue ou caia e acabe sendo atropelado por você.

Infelizmente, me deparei com esse medo três meses depois de começar o trabalho.

O relógio marcava 15h. Uma garota veio correndo pela plataforma e quando chegou à altura da cabine, se jogou de cabeça contra o vidro. Ela caiu nos trilhos e acabei atropelando-a.

Isso aconteceu em 1991. Tinha apenas 20 anos.

Desci do trem. Minhas pernas tremiam.

Um policial me disse que a garota tinha uma carta no bolso pedindo desculpas ao pai por ser uma estudante ruim.


Segundo a Transports Metropolitans de Barcelona (TMB), a empresa que administra o metrô da cidade, apenas um a cada 1 mil funcionários se envolve neste tipo de acidente por ano.

Em 2018, 22 atropelamentos foram registrados no metrô de Barcelona. Suicídios eram a maioria.


Você sempre pensa: poderia ter evitado isso? Por que eu?

Há pessoas que são impactadas por um suicídio pelo resto da vida.

Quando você passa por um atropelamento, você sai alguns dias de folga. Ao retornar, as primeiras duas semanas são bem ruins.

Você fica agitado, conduz devagar, todas as vezes que você chega a uma estação, acha que alguém vai pular nos trilhos.

Depois de algumas semanas, seu corpo supera a tragédia e você continua com seu trabalho normal.

Agora, existe uma equipe de psicólogos que presta assistência aos condutores logo após eles testemunharem um suicídio.

Mas nunca tive a ajuda um psicólogo, só depois.


Em 2016 - três anos depois de Javier deixar o metrô - a TMB iniciou uma colaboração com a Unidade de Trauma, Crise e Conflito de Barcelona (UTCCB), ligada à Faculdade de Psicologia da Universidade Autônoma de Barcelona. O departamento presta assistência a trabalhadores que vivenciam uma experiência traumática.

Ingeborg Porcar, psicóloga e diretora técnica da equipe, explicou à BBC News Mundo que a reação imediata dos condutores que vivenciam um atropelamento "é baseada em mecanismos de sobrevivência".

"No início, as pessoas ficam hiperativas, é como a reação de outros mamíferos: um cachorro ou um gato reage de maneira semelhante", diz Porcar.

Segundo a psicóloga, "depois de três dias, passa-se à interpretação, à leitura que cada pessoa faz dependendo de suas experiências anteriores, sua personalidade ou suas circunstâncias de vida".

Desde o início da colaboração em 2016, a equipe de psicólogos que trabalha com o TMB nunca atendeu a nenhum condutor que testemunhou mais de dois suicídios em toda a sua vida profissional.


Participar, mesmo que indiretamente, da morte de uma pessoa é errado.

Imagine a sensação que é passar por isso várias vezes.

Foi assim até chegar ao sexto suicídio. Entre um e outro, passou muito tempo, o que me permitiu superá-los.

Até que o sétimo aconteceu. E tudo mudou.

As duas semanas fatídicas

Aconteceu em dezembro de 2013.

Duas horas depois de eu começar a trabalhar, uma pessoa corre pela plataforma e se joga contra o trem.

Saí de licença.

Como era o período de festas de fim de ano, aproveitei a oportunidade para estar com a família e arejar minha cabeça um pouco. Voltei ao trabalho 13 dias depois.

Para a minha surpresa, meu pesadelo não havia acabado.

Voltei a trabalhar com muito medo, pois ainda não havia conseguido me recuperar totalmente do acontecido.

Quando cheguei à estação de Barceloneta, vi um homem de 80 anos pular, ajoelhar-se e colocar a cabeça nos trilhos.

Acionei o freio, mas não havia como parar o trem.

Vi o trem se aproximando pouco a pouco...

Não consegui esquecer a forma como aquele homem me olhava.

Testemunhar um suicídio depois de ter passado por outro é como colocar o dedo em uma ferida aberta.

Se mais duas semanas tivessem passado, talvez isso não tivesse me impactado tanto. Mas o fato de ter acontecido no mesmo dia do retorno foi devastador.

Por mais que eu explique, ninguém vai entender.


Os dados da TMB, registrados a partir de 1992 - um ano após o primeiro caso de Javier García -, confirmam que o departamento de prevenção da empresa lhe deu assistência após cinco outros atropelamentos (um em 1997, dois em 2002 e dois em 2013). O último deles no mesmo dia em que ele voltava de licença por ter vivenciado outro atropelamento.

Além disso, a empresa reconhece que em 2005 houve um atropelamento na estação e na data em que Javier passou por seu sexto caso, embora o nome do funcionário ou dos funcionários afetados não apareçam no sistema.

Javier não se lembra da data em que o último caso, o oitavo, aconteceu.

Tampouco sabe quantas tentativas de suicídio resultaram em mortes. Os condutores não são informados.


Sou um caso excepcional. Meu pai nunca passou por um atropelamento.

Dos oito que testemunhei, em cinco estava conduzindo o trem número 13. Você começa a pensar em tudo.

Mergulhei em depressão. Passei 11 meses fora do trabalho sob tratamento psicológico.

Paroxetina, Lorazepam, Tranxilium. Os remédios o transformam completamente.

Você passa a ter discussões com seu cônjuge e seu círculo familiar acaba destruído.

Não queria escutar minha esposa. Não queria saber nada sobre minha filha de dois anos.

Só ia de casa para o médico. Da cama ao sofá. Cheguei a pesar 157 quilos.

'Para ser assim, é melhor morrer'

Um dia, ao voltar para casa, tive uma discussão acalorada com minha esposa.

Depois, fui à praia com a intenção de tirar minha própria vida.

No carro, lembrei-me do sorriso da minha filha. E mudei de planos.

Nestes momentos, tudo pode acontecer.

Voltei para casa aos prantos, pensando no absurdo que ia fazer.

Tentei me consolar o máximo que pude. Voltei a pensar: por que vou me suicidar?

Quando temos um problema, nos tornamos egoístas.

Não sou culpado pelo que aconteceu comigo.

Apesar de tudo, ainda tenho paixão por trens. Minha paixão por eles será eterna.

Agora, me sinto muito bem. A empresa me ofereceu um emprego alternativo na equipe que realiza testes de bafômetro nos condutores.

Nosso trabalho é ajudar, é satisfatório.

Uma vida em tatuagens

Minhas tatuagens representam minha história de vida. Como elas não iam refletir o que aconteceu no meu trabalho?

Tatuei a cidade, jogos de azar, alguma crença. Você sempre acredita em algo quando tem um problema.

O trem número 13, um cemitério e uma lápide com uma bola oito de sinuca, que representa as oito pessoas que infelizmente tentaram o suicídio quando eu estava trabalhando.

Sempre carregarei isso comigo.

Na minha mão tenho tatuada a frase em latim Alea Jacta Est que significa "a sorte está lançada". Acredito que nosso destino está traçado desde que nascemos.

Você pode ter momentos bons ou ruins, mas sua sorte já está lançada.


Se você está deprimido e tem pensamentos suicidas, ligue para o Centro de Valorização da Vida (CVV) através do número 188. As ligações são gratuitas para todo o Brasil.

*Com imagens de Derrick Evans

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