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Cresceu muito o número de jovens em estado grave, e temos de escolher quem vai pra UTI, diz diretor da Santa Casa de Porto Alegre

O Rio Grande do Sul tem mais de 667 mil casos e 13 mil mortes por covid-19 - SILVIO AVILA/GETTY IMAGES
O Rio Grande do Sul tem mais de 667 mil casos e 13 mil mortes por covid-19 Imagem: SILVIO AVILA/GETTY IMAGES

André Biernath - Da BBC News Brasil em São Paulo

05/03/2021 20h07

Abrir novos leitos de UTI, restringir a circulação das pessoas e acelerar as campanhas de vacinação.

Para o cirurgião Antonio Nocchi Kalil, essas três estratégias representam o único caminho possível para conter o agravamento da pandemia de covid-19 no Rio Grande do Sul e reverter o colapso do sistema de saúde, que já opera acima de sua capacidade.

Diretor médico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Kalil avalia que a situação piorou repentinamente a partir das duas últimas semanas de fevereiro e, mesmo com a boa estrutura hospitalar do Estado gaúcho, não foi possível dar conta da enorme quantidade de novos pacientes, que não param de chegar aos pronto-socorros.

A ocupação de leitos em Porto Alegre já ultrapassa os 100%. Segundo um levantamento feito pela campanha "Unidos pela Saúde Contra o Colapso", até a última quinta-feira (04/03), os hospitais operavam com 103,7% de sua capacidade. Em alguns deles, como o Hospital São Lucas e o Hospital Moinhos de Vento, a taxa está acima dos 130%.

De acordo com os números compilados até 4 de fevereiro pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Rio Grande do Sul tem 667 mil casos confirmados e 13 mil mortes causadas pela covid-19.

Em entrevista à GloboNews, o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) disse que a "onda gigantesca" de novas infecções pelo coronavírus que acontece agora faz com que as curvas de casos de 2020 pareçam "marolas".

O Estado deve seguir com as medidas restritivas pelas próximas semanas, com o fechamento de comércios não essenciais e a redução da capacidade máxima de lotação em escolas, transporte público, bancos, lotéricas e centros religiosos.

"Essa é uma situação que provavelmente só se vê numa guerra", aponta Kalil, que também é professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.

Na última quinta-feira (05/03), a BBC News Brasil conversou com o médico, que fez diversas observações sobre o atual descontrole pandêmico no Rio Grande do Sul.

Confira os principais trechos a seguir.

BBC News Brasil - Como o senhor classificaria o atual panorama da pandemia no Rio Grande do Sul?

Antonio Nocchi Kalil - É uma situação inimaginável, ainda mais se considerarmos como estávamos há dez dias. Nosso estado tem uma capacidade de atendimento muito grande, tanto pelo Sistema Único de Saúde quanto pela rede privada. Nós nunca imaginávamos que chegaríamos num colapso como este. O problema é ainda mais sério em Porto Alegre, que acaba drenando muitos pacientes que vêm do interior do Estado e possui uma rede hospitalar mais ampla.

Essa situação acabou ocorrendo por uma série de fatores, principalmente o relaxamento das medidas de prevenção contra a covid-19. Em 2020, a gente já alertava para o perigo das festas de final de ano. Mas, durante todo o período de veraneio, nós vimos as pessoas sem máscara, sem distanciamento social e com aglomerações em festas. Era incrível o número de pessoas juntas todo dia durante o verão. Isso, claro, se reflete agora no desastre que estamos vivendo.

BBC News Brasil - O senhor já viu uma situação parecida ou comparável com o que está ocorrendo agora?

Kalil - Não. Todo dia converso com os colegas que atuam nas unidades de terapia intensiva e na emergência e eles dizem que essa é uma situação que provavelmente só se vê numa guerra.

Claro que, além das questões de relaxamento que já citei anteriormente, precisamos mencionar a chegada da variante P.1 do coronavírus, detectada inicialmente em Manaus, que já foi documentada aqui em nosso Estado. Ela é muito mais contagiosa e acaba agredindo pessoas de uma idade inferior ao que estávamos acostumados. Agora, nós temos até pacientes de 18 anos internados nas UTIs.

Isso fez com que a situação progredisse muito rapidamente, apesar de aumentarmos o número de leitos todos os dias. O problema é que a progressão de leitos é aritmética, mas a expansão de novos casos é geométrica. Então nunca há um equilíbrio dessa conta. Felizmente, as autoridades anunciaram medidas mais restritivas nos últimos dias que podem ajudar a reduzir o impacto da pandemia.

BBC News Brasil - O senhor comentou sobre os pacientes mais jovens... Há uma mudança de perfil nos acometidos pela covid-19 que precisam de internação?

Kalil - Sem dúvida, e isso não é uma observação só do nosso hospital, mas de vários outros de Porto Alegre. Percebemos um aumento muito grande nos pacientes mais jovens em estado grave. Cerca de 30 a 40% dos que chegam até nós têm menos de 60 anos. Isso é uma característica totalmente diferente do que se observava no ano passado. Além disso, em termos de contágio, vemos famílias inteiras chegando ao hospital com covid-19 num estágio bem avançado.

BBC News Brasil - Mas esse cenário é provocado pela nova variante do coronavírus? O que a ciência já sabe sobre isso?

Kalil - Essa mudança de perfil tem a ver claramente com a nova cepa, que é mais infecciosa. Estamos com um índice de contaminação bem alto na nossa região. Esse dado, associado à diminuição de cuidados preventivos e às aglomerações, acabou levando a esse cenário. Já temos o conhecimento de que essa variante tem capacidade de atingir um número muito maior de pessoas e com muito mais rapidez.

BBC News Brasil - Esse aumento de casos graves foi repentino? Ou vocês vêm percebendo o agravamento há muitas semanas?

Kalil - Foi realmente nos últimos 15 dias, a partir de fevereiro. Nós até vivíamos uma situação tranquila no sistema hospitalar à época. Tanto é que o Rio Grande do Sul recebeu, no início de fevereiro, pacientes oriundos da região Norte. As UTIs estavam realmente muito tranquilas. Mas rapidamente a situação se reverteu, talvez pelo desconhecimento sobre a nova variante. Não imaginávamos que ela chegaria de forma tão rápida e gerasse essa situação dramática.

Estamos correndo contra o tempo, tentando diminuir ao máximo a circulação de pessoas. Sabemos que quando as UTIs atingem níveis de ocupação superiores a 100%, como acontece aqui, a única saída é reduzir a circulação das pessoas. São coisas que infelizmente afetam a economia, o que é um drama enorme. Mas chegamos ao nível de precisar escolher quem vai para a UTI ou não. Isso, claro, respeita critérios técnicos, mas são decisões que nossos médicos intensivistas precisam fazer agora.

BBC News Brasil - Mas os epidemiologistas e cientistas de dados já falavam que a situação da pandemia ia piorar desde dezembro de 2020... O senhor considera que demorou muito tempo para se tomar medidas mais drásticas?

Kalil - Nós todos já esperávamos que, com as festas de final de ano, haveria uma explosão de casos lá pela segunda ou terceira semana de janeiro. Mas isso não ocorreu. E talvez isso tenha gerado uma certa tranquilidade na população que, sem saber da presença de uma nova variante, não seguiu as medidas que deveriam ser respeitadas.

Mas é claro que não dá pra culpar agora A, B ou C, porque as situações da pandemia são dinâmicas. Todos os epidemiologistas falavam que o cenário ia piorar em janeiro e isso não ocorreu... Talvez tenha uma influência muito grande mesmo da nova variante, pela forma como esse colapso nos pegou de surpresa.

BBC News Brasil - O senhor citou medidas como a restrição da circulação de pessoas e a abertura de novos leitos de UTI. Há algo mais que a administração pública deveria fazer nesse momento?

Kalil - O esforço que fizemos para aumentar leitos foi impressionante, especialmente na região metropolitana de Porto Alegre. Para ter ideia, nosso hospital tinha 90 leitos de UTI exclusivos para a covid-19 em agosto do ano passado. Agora temos 155, sem contar os 160 leitos de internação. Mas, como você mesmo falou, diminuir a circulação das pessoas é muito importante agora.

Mas tudo isso não terá efeito algum se a gente não conseguir vacinar de forma mais rápida toda a população. É isso que está faltando. Nós vemos que em outros países as campanhas de imunização tiveram um enorme efeito. Isso aconteceu no Reino Unido e em Israel, por exemplo. Talvez essa seja a medida que devemos concentrar nossos esforços a partir de agora.

BBC News Brasil - E as pessoas? O que elas devem fazer para se proteger nessa situação de colapso?

Kalil - As medidas são as mesmas desde o início. A gente repete à exaustão. Infelizmente, quando andamos na rua, vemos que elas não são seguidas à risca. É importante lavar as mãos, manter distanciamento mínimo de 1,5 metro de outras pessoas, evitar aglomerações... E, claro, usar máscaras. É certo que tudo isso tem uma eficácia muito grande. Todos nós precisaremos continuar respeitando essas recomendações até que tenhamos uma parcela bem grande da população vacinada.

BBC News Brasil - Nas últimas semanas, vocês lançaram a campanha "Unidos Pela Saúde Contra o Colapso". Como foi a ideia e quais são os objetivos desse projeto?

Kalil - Essa campanha foi iniciada por uma empresa que realiza congressos médicos e tomou uma proporção que não se imaginava. Hoj,e ela está na sociedade e conta com a participação de filósofos, jornalistas e outros profissionais de destaque. O objetivo é mostrar para todos o que realmente está acontecendo, que o colapso é real. Não são coisas inventadas.

Nós vemos todos os dias como é preciso tomar decisões difíceis nas nossas UTIs. Os profissionais de saúde estão cansados. Queremos mostrar isso tudo que está acontecendo e incentivar as pessoas a usarem máscara, evitarem aglomerações e nos ajudarem a reverter esse colapso. Se ninguém fizer sua parte, vamos continuar com essa situação por muito mais tempo.

BBC News Brasil - Como o senhor vê o futuro depois da covid-19? Quais são os caminhos para sair dessa situação?

Kalil - Nós vamos sair disso. Esse é um primeiro aspecto que precisamos reforçar. Claro que toda essa experiência vai deixar uma cicatriz grande no nosso sistema de saúde. Mas creio que é possível sairmos mais fortes e unidos. Houve uma aproximação muito grande entre aquelas pessoas que querem o melhor para a população. E nós podemos mostrar que é possível, sim, fazer muita coisa boa em termos de saúde.

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