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Especialistas alertam para falta de respaldo médico de terapia para estimular a visão

Do UOL

Em São Paulo

06/08/2012 18h26

Após a publicação da reportagem "Técnica de autocura e estimulação dos olhos promete fazer você enxergar melhor",  do UOL Bem-Estar, o Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), uma das entidades que representa a especialidade no país, divulgou um comunicado em que alerta para a falta de respaldo médico da terapia conhecida como Self-Healing, ou autocura.

Segundo os oftalmologistas Marco Antônio de Faria e Elisabeto Gonçalves, respectivamente presidente e ex-presidente do CBO, os exercícios propostos pela terapeuta ocupacional Tatiana Reis “não têm nenhum apoio na fisiopatologia ocular e estão, por isso mesmo, desacreditados há muitos anos”.

“As sugestões da autora podem induzir a pessoa a acreditar em fantasias e deixar de lado a orientação correta de quem pode realmente cuidar dos problemas oculares: o oftalmologista”, diz o comunicado.

Veja, a seguir, a íntegra da carta enviada pelos médicos:

Lamentável a publicação da matéria "Técnica de autocura e estimulação dos olhos promete fazer você enxergar melhor", da terapeuta ocupacional Tatiana Reis. Lamentável por duas razões. Uma, porque os tratamentos propostos pela autora não têm nenhum apoio na fisiopatologia ocular e estão, por isso mesmo, desacreditados há muitos anos. Outra porque as sugestões da autora podem induzir a pessoa a acreditar em fantasias e deixar de lado a orientação correta de quem pode realmente cuidar dos problemas oculares: o oftalmologista. A matéria está eivada de erros causados ou por interpretação defeituosa das informações disponíveis ou por desconhecimento, total ou parcial, da excessiva complexidade estrutural do olho e dos mecanismos, igualmente sofisticados, que regem a visão.

A técnica de Self-healing promete, segundo a autora, "reeducar os olhos e aperfeiçoar a visão", garantindo que isso não pertence ao campo do "milagre" , mas só de "disciplina e  exercícios para os olhos". Essa técnica "revolucionária" de exercícios para os olhos foi preconizada por William Bates, médico americano, em 1919. Passados 93 anos, a técnica não provou nenhum resultado e é realmente notável que depois de tanto tempo e com tantos progressos médico-oftalmológicos adquiridos a partir daí, ainda se tente exumar e aplicar recursos desatualizados e originalmente inócuos.

A autora é leviana ao afirmar que a melhora em casos de glaucoma pode vir após um ano e meio de "tratamento". É leviana porque, com os resultados das modernas pesquisas e com os atuais tratamento daí decorrentes, o glaucoma  permanece um doença incurável, compondo, com a retinopatia diabética e as degenerações de retina, as três grandes causas de cegueira irreversível no mundo. O glaucoma é incurável, mas tratável, controlável. Hoje a Oftalmologia, além de ter condições do diagnóstico precoce, dispõe de excelentes recursos terapêuticos (medicamentoso, cirúrgico, laser) para estancar a progressão da doença e prevenir a catástrofe que seria a cegueira causada por ele.

Mas em Medicina o tempo é fator importante. Se protelamos um tratamento médico sabidamente eficaz e o substituímos por técnicas fantasiosas dos tipos propostos pela autora, estaremos postergando uma medida correta e colocando definitivamente em risco a visão do paciente. A técnica, em resumo, não se presta nem como tratamento coadjuvante, auxiliar. Integra mais um capítulo da soi disant "medicina alternativa", como se o nosso organismo tivesse um olho, um coração, um pulmão, enfim seja lá o que for, "alternativo".

A autora interpreta erroneamente a questão de "olho fraco" e "olho forte", talvez querendo referir-se a olho "dominante". Não temos "olho fraco" nem "olho forte", ambos em condições normais, salvo a ocorrência de doenças, nascem com os mesmos recursos estruturais e funcionais, vale dizer, o mesmo potencial de visão. A autora tangencia o problema, por exemplo, da ambliopia (olho preguiçoso), causada, por exemplo, pela catarata e opacidade corneana congênitas, diferença muito alta de "grau" entre um olho e outro e desvios oculares, e chega até a sugerir o tratamento (oclusão) que nós oftalmologistas fazemos há dezenas e dezenas de anos com excelentes resultados, desde que a oclusão do olho de melhor visão, visando à estimulação do olho "preguiçoso", seja feita em idade precoce. Porém, a  partir do 4º ano de vida, em média, a oclusão não surte mais efeito, por mais que a "esperteza" do cérebro seja exaltada pela autora. Concordamos com ela: o nosso cérebro é muito, mas muito mais esperto do que ela imagina e trabalhos recentíssimo como a "assinatura neural" comprovam isso.

Estudos recentes da neurociência revelam que a plasticidade cerebral ( nós, ao final,  "enxergamos" mesmo  é com o córtex visual) não só pode ocorrer durante a vida adulta, como também envolve todas as estruturas do SNC encarregadas do processamento de informação sensorial. Isso não deixa de ser uma esperança real para tratamento do olho amblíope ("preguiçoso"), mas, certamente, técnicas para isso, ainda não desenvolvidas, passam muito longe da "esperteza" cerebral e dos conceitos de "olho fraco" e "olho forte" a que se referem a autora. Por enquanto, essa "esperteza" tem limites e o nosso cérebro, hoje, não é a exceção.

Num darwinismo capenga, a autora, ao falar dos usuários de óculos, informa que eles "prestam atenção apenas na visão central, acabando por gerar perda do campo visual, estresse,  desequilíbrios nos olhos e até doenças". Nunca vimos isso ocorrer e nem há porquê acontecer. O olho é um órgão holóptico, isto é, ele sempre está usando a sua visão central ( cones) e periférica (bastonetes).  No dia-a-dia de nossas atividades, ambas são estimuladas, ora uma mais que a  outra, em função de se o ambiente é fotópico (claro) ou escotópico (escuro).

A vista cansada (presbiopia) é uma questão afeita à idade e não é o "olhar para longe no horizonte" que vai evitar não só ela, como o "embaçamento da visão, perda de foco ou impedir o surgimento de algo mais grave, como a catarata".  Nada mais ingênuo. A presbiopia e catarata são ocorrências ligadas, normalmente, ao envelhecimento do olho. O excesso de leitura ou trabalho não tem papel nenhum na antecipação de uma e de outra. A partir dos 40 anos a presbiopia virá, para o letrado ou o analfabeto. A forma mais comum de catarata - a senil - acontece, em geral, após os 60 anos, mas nada impede que ela surja mais cedo ou mais tarde e aqui temos de levar em conta o fator familiar.

Outra informação curiosa é sobre os "óculos de sol que nós já trazemos dentro do olho", isto é, o cristalino. É importante que a autora saiba que a proteção que o cristalino dá à retina contra a ação nociva dos raios ultravioletas e do próprio espectro visível, é limitada.  Os "óculos de sol" têm sua utilidade. Sabemos que o excesso de luz é um dos fatores de risco para o surgimento de uma doença grave, de potencial cegante, chamada degeneração macular relacionada à idade (DMRI). Quando protegemos os olhos contra o excesso de luz estamos adotando uma providência útil para, pelo menos, mitigar a atuação do que se supõe ser um dos elementos causais da DMRI. É esse o objetivo dos implantes intraoculares (que substituem os cristalinos cataratados e extraídos com a cirurgia)  com filtros de proteção UV: resguardar  a retina (mácula) da ação  nociva dessa luz.

A boa prática terapêutica deve basear-se em conhecimentos sólidos, auferidos dos resultados que as pesquisas nos trazem. Lendas, mitos, técnicas não testadas, opiniões isoladas não têm nenhum valor, nenhuma utilidade e não devem servir de guia ao tratamento de nossas mazelas, oculares ou não.

Ao final, um aviso aos navegantes (e náufragos esperançosos ou crédulos): fora da ortodoxia da Medicina não há salvação!