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Baixada Fluminense enfrenta explosão de sífilis congênita

Na principal maternidade da Baixada Fluminense, que faz até 20 partos por dia, 40% dos recém-nascidos estão contaminados por sífilis congênita - Kelly Lima/Eder Content/UOL
Na principal maternidade da Baixada Fluminense, que faz até 20 partos por dia, 40% dos recém-nascidos estão contaminados por sífilis congênita Imagem: Kelly Lima/Eder Content/UOL

Igor Costa

Da Eder Content, no Rio de Janeiro

12/04/2017 14h00

Aos 22 anos, D.* deu à luz seu terceiro filho, no final de março, na Maternidade Municipal Mariana Bulhões, em Nova Iguaçu (RJ). Pela terceira vez, ela ficou internada após o parto para tratar o bebê recém-nascido com sífilis. “Desde o primeiro filho, eu tive que tratar a doença. Eu já tomei benzetacil, mas não me curei”, afirma a manicure. No hospital em que D. fez seu parto, nasceram cem bebês com sífilis congênita por mês, em média, entre setembro de 2016 e fevereiro deste ano. Nesse período, 603 grávidas testaram positivo para sífilis.

O número --que não inclui gestantes que já chegam à maternidade sabendo que têm a doença-- confirma a escalada da sífilis congênita na Baixada Fluminense: são 15 casos a cada mil nascimentos na região. Dados do Boletim Epidemiológico de 2016 do Ministério da Saúde mostram que o Rio de Janeiro é o Estado com a maior taxa de infecção no país, com 12,4 casos a cada mil nascimentos. É o dobro da média nacional, que é de 6,5 casos a cada mil nascimentos. A meta de infecção por sífilis da Organização Pan-Americana de Saúde é de 0,5 caso a cada mil nascimentos.

“Fazemos de 15 a 20 partos por dia. Em média, 40% das gestantes que são internadas têm sorologia positiva para sífilis. Na grande maioria das vezes, sem tratamento e sem ter feito o diagnóstico para sífilis antes de dar entrada na maternidade”, afirma o médico Adriano Gonçalves Pereira, diretor do hospital de Nova Iguaçu.

A explosão no número de casos de sífilis levou o governo federal a iniciar uma campanha específica, em outubro de 2016, para combater a infecção em todo o país com ações preventivas e chegar a outubro deste ano --mês em que se comemora o Dia Nacional da Sífilis-- com um número menor de casos congênitos. 

Recém-nascido sífilis - Kelly Lima/Eder Content/UOL - Kelly Lima/Eder Content/UOL
Recém-nascido em incubadora em Nova Iguaçu (RJ); cidade registrou 46 casos de sífilis congênita apenas nos dois primeiros meses de 2017
Imagem: Kelly Lima/Eder Content/UOL
A sífilis é uma doença sexualmente transmissível (DST) que pode ser transmitida da mãe para o filho durante a gravidez por meio da placenta. A doença pode causar sequelas como má formação óssea, problemas no desenvolvimento intelectual, surdez neurológica, cegueira, nascimento prematuro e até mesmo um aborto natural. O tratamento é à base de penicilina benzatina, único medicamento capaz de prevenir a transmissão da mãe para o feto. Desde 2015, no entanto, os estoques do antibiótico nos postos de saúde da rede pública são escassos.

Médicos e especialistas ouvidos pela reportagem não têm dúvidas sobre a causa do surto de sífilis congênita nas cidades da Baixada Fluminense: falta atendimento básico de qualidade nos municípios. “Fizemos um levantamento sobre o atendimento básico na Baixada Fluminense. A nossa conclusão é que ele não existe”, diz o diretor geral do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) Gil Batista.

A sífilis pode ser detectada por meio de exames de sangue feitos durante o pré-natal. Uma das ações do governo federal é justamente incentivar a realização de pré-natal precoce com a testagem rápida para sífilis. “É uma doença de fácil detecção e tratamento barato, então a situação não deveria chegar a esse ponto. A sífilis deveria ser eliminada lá atrás, antes que a mulher engravidasse”, afirma Adriano Pereira. 

D - Sífilis - Kelly Lima/Eder Content/UOL - Kelly Lima/Eder Content/UOL
Aos 22 anos, D. já teve três filhos, todos com sífilis congênita: "Meu filho filho nasceu com muitas marcas e nem conseguia abrir os olhos"
Imagem: Kelly Lima/Eder Content/UOL
Moradora de Japeri, a manicure D. viajou quase 40 km até Nova Iguaçu para ter o bebê. Antes, ela e o marido bancaram o tratamento do próprio bolso. “Meu marido tem dois serviços e eu trabalho fazendo unha e cabelo. A gente gastou R$ 14 em cada injeção, três para mim e três para ele. Mesmo assim, meu filho nasceu com muitas marcas, não conseguia nem abrir os olhos.”

Ela não sabe, mas retrata o perfil das dezenas de gestantes com sífilis que chegam aos hospitais da Baixada para dar à luz: negra, jovem, com baixa escolaridade e renda, sem carteira assinada. Segundo o Ministério da Saúde, 26% das gestantes contaminadas no Estado do Rio têm entre 15 e 19 anos.

A Baixada Fluminense, sub-região do Estado, tem três hospitais públicos com maternidade para atender nove municípios. O Hospital da Mulher, em São João de Meriti, e o Hospital da Mãe, em Mesquita, são unidades de saúde geridas pelo Estado do Rio de Janeiro em parceria com a Organização Social de Saúde Hospital Maternidade Therezinha de Jesus. Já a Maternidade Mariana Bulhões, em Nova Iguaçu, é uma unidade municipal administrada pela prefeitura.

As poucas opções para as gestantes da região fazem com que as estatísticas da escalada de sífilis congênita na Baixada apontem São João de Meriti e Nova Iguaçu com o maior número de casos. Além da subnotificação durante os pré-natais, os hospitais de referência acabam computando os casos da doença no município onde estão localizadas as maternidades, e não onde a gestante reside. 

Maternidade sífilis - Kelly Lima/Eder Content/UOL - Kelly Lima/Eder Content/UOL
Única maternidade municipal da Baixada Fluminense, Hospital Mariana Bulhões faz 15 a 20 partos por dia; 40% dos bebês nascem com sífilis
Imagem: Kelly Lima/Eder Content/UOL
Notificações distorcidas

Segundo o Sistema de Informações de Agravo de Notificações do Ministério da Saúde (SINAN-MS), apenas nos dois primeiros meses de 2017 Nova Iguaçu já registrou 46 casos de bebês com sífilis, mais que todos os outros municípios da Baixada registraram em todo o ano anterior. Segundo a Secretaria Municipal da Saúde da cidade, 35% das pacientes atendidas na unidade são de outros municípios.

No Hospital da Mulher, em São João de Meriti, foram atendidos 58 casos apenas em janeiro e fevereiro deste ano --quase um caso da doença por dia, em média. “Aqui temos São João de Meriti como a cidade de onde vem o maior número de grávidas com sífilis, seguido por Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo e Mesquita”, afirma Marize Peçanha, coordenadora médica do alojamento adjunto onde ficam os recém-nascidos com sífilis que estão em tratamento no Hospital da Mulher.

Apesar do alto número de casos atendidos nos hospitais públicos especializados, os dados oficiais dos municípios da Baixada Fluminense contabilizam poucos casos de sífilis em bebês. Em 2016, segundo o SINAN, Mesquita teve apenas 17 casos de sífilis congênita. Em Magé, a prefeitura registrou 41 casos; em Queimados, 8; Nilópolis, 11; Belford Roxo, 35; Japeri, 2; Seropédica, 4; e Paracambi, nenhum caso no último ano.

Quilômetros percorridos para fazer pré-natal

A distorção entre os dados oficiais e a realidade pode ser explicada pelo deslocamento que as grávidas fazem em busca de tratamento, bastante comum na região. R*., 28, foi diagnosticada com sífilis durante o pré-natal no quarto mês de gestação em uma clínica no local onde mora, em Engenheiro Pedreira, no município de Japeri.

Faltando três meses para o bebê nascer, o posto onde fazia o pré-natal fechou e ela passou a viajar 27 km para ser atendida no Hospital da Mãe, em Mesquita. “Na última consulta marcada, eu não fui porque a viagem estava me cansando muito. De trem, era uma hora e 15 minutos para chegar e eu ainda precisava pegar mais uma van. Com barrigão de sete meses, não dá”, resume.

R. deu à luz na Maternidade Mariana Bulhões, em Nova Iguaçu, a 23,2 km de casa. Apesar de ter feito o tratamento para sífilis durante a gravidez, ela e o filho ficaram internados no hospital por dez dias após o parto para que o bebê fosse tratado com penicilina intravenosa. Como o parceiro não foi medicado, R. foi reinfectada e transmitiu a doença ao filho. 

Reinfectada sífilis - Kelly Lima/Eder Content/UOL - Kelly Lima/Eder Content/UOL
R., 28, e seu bebê: moradora de Japeri (RJ), ela foi reinfectada pelo parceiro, que não fez o tratamento para sífilis
Imagem: Kelly Lima/Eder Content/UOL
“Uma criança que nasce com sífilis congênita demanda acompanhamento para avaliação da parte óssea, auditiva, cognitiva. São os mais diversos problemas", resume Lígia Coelho Domingos, gerente de doenças crônicas no Centro de Testagem e Acolhimento de Nova Iguaçu.

Mas é preciso tratar o casal simultaneamente para erradicar a doença para evitar a reinfecção da mãe, diz a enfermeira. Muitas vezes, como no caso de R., isso não acontece. Segundo dados do ministério, menos de 5% das mulheres grávidas diagnosticadas com sífilis fizeram o tratamento adequado em 2016 no Estado do Rio.

Escassez mundial de penicilina

Apesar de o tratamento ser barato para o Estado, falta penicilina benzatina na rede pública de saúde. O governo federal repassa aos Estados os recursos para que comprem o medicamento e distribuam aos municípios. Desde 2014, a escassez mundial de matéria-prima levou o Ministério da Saúde a centralizar a compra de penicilina.

A última compra de penicilina benzatina, usada para tratar gestantes, foi no início de 2016, quando foram adquiridos 2,7 milhões de frascos. A orientação do ministério era priorizar grávidas e seus parceiros. Segundo a Superintendência de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos da Secretaria de Saúde do Rio, o Estado recebeu 200 mil frascos de penicilina benzatina nos últimos 12 meses. Dessa remessa, menos de 6% foram encaminhados aos 11 municípios da Baixada Fluminense, que receberam 10.800 doses do medicamento.

Diante da falta do antibiótico para tratamento relatada pelas gestantes na reportagem, o governo estadual afirma que são os municípios que devem solicitar a reposição do medicamento.

Procuradas, as secretarias de saúde das prefeituras da Baixada relatam, em geral, a mesma dificuldade para informar sobre os estoques de penicilina: a troca de governo após as eleições municipais realizadas em outubro de 2016. Em Belford Roxo, por exemplo, a resposta é que "a rede municipal de saúde está sendo reorganizada para que o fluxo de atendimento comece a ser analisado, pois encontramos pouquíssimas informações da administração passada".

Em Nova Iguaçu, a enfermeira Lígia Domingos, que coordena o Centro de Testagem e Acolhimento, diz que até o final do ano passado a própria prefeitura estava financiando a aquisição do medicamento. A partir de 2017, o novo prefeito cortou os recursos e a rede municipal passou a requisitar o antibiótico ao governo estadual.

Moradora de São João de Meriti, F.* começou o pré-natal na rede pública municipal e foi diagnosticada com sífilis no terceiro mês de gestação, quando descobriu que estava grávida. “Eu e meu marido gastamos mais de R$ 100 com as seis injeções de penicilina, porque o hospital onde eu fazia o tratamento não tinha”, afirma. No sétimo mês, F. passou a se tratar na rede particular. Apesar do tratamento, o bebê nasceu com sífilis e ficou internado por 11 dias para receber penicilina intravenosa. 

Maternidade UTI - Kelly Lima/Eder Content/UOL - Kelly Lima/Eder Content/UOL
UTI neonatal do Hospital Mariana Bulhões, em Nova Iguaçu (RJ), onde bebês nascidos com sífilis recebem tratamento nos primeiros dez dias de vida
Imagem: Kelly Lima/Eder Content/UOL
Para o tratamento dos bebês que nascem com sífilis, o ministério comprou 230 mil ampolas de penicilina cristalina por meio de licitação no começo deste ano. As doses, que custaram R$ 1,288 milhão, estão sendo distribuídas aos Estados neste mês, segundo a assessoria do Ministério da Saúde.

A médica Marize Peçanha, do Hospital da Mulher, explica que as situações em que o tratamento antes do parto não impede a infecção do bebê são específicas. “Tratamento de sífilis não é receita de bolo. Muitas coisas podem influir. Se a mãe parir com menos de 30 dias após o fim do tratamento, o bebê vai precisar receber a penicilina”, afirma.

Não é só medicação para combater a sífilis que falta na rede pública da Baixada Fluminense. A., 19, mora em Vila de Cava, bairro de Nova Iguaçu, e chegou à Maternidade Mariana Bulhões sem saber que estava com sífilis. Ela fez o pré-natal, mas não realizou o teste para sífilis porque a unidade que a atendia não oferecia exames como ultrassonografia e hemograma.

“O exame que pediram custava R$ 350, mas eu só tinha dinheiro para fazer a ultra. Eu não fiz o exame de sangue porque não tinha dinheiro”, explica. O bebê de A. também nasceu com sífilis e passou os primeiros dez dias de vida no hospital para tratar a doença.

Tratamento necessário antes da gravidez

Em agosto de 2016, o Cremerj recebeu uma denúncia de um médico que alegava sobrecarga na UTI pediátrica do Hospital da Mãe, em Mesquita, por conta da incidência de sífilis. “Conversamos com um dos diretores e ele falou que a sobrecarga era causada pelo elevado número de casos de sífilis congênita. Na época, a média de casos era de 30 internações por mês. Eu sou pediatra e nunca vi 30 casos da doença em toda a minha carreira”, afirma Batista, diretor do Cremerj.

Segundo Adriano Pereira, da Maternidade Mariana Bulhões, a incidência da doença na Baixada é elevada entre pacientes de 14 a 17 anos. "O ideal é que elas tivessem planejado e sido tratadas antes de engravidar”, diz ele.

Para a médica Marize, do Hospital da Mulher, o alto número de meninas adolescentes infectadas é um dos fatores por trás da escalada de sífilis congênita na região. “Elas interrompem o tratamento pela imaturidade, pela falta de informação. Também falta muito a atuação da assistência básica dos municípios, mas ela sempre foi precária”, explica.

Diretor sífilis - Kelly Lima/Eder Content/UOL - Kelly Lima/Eder Content/UOL
"O ideal é que as mães fossem tratadas antes de engravidar", diz o médico Adriano Pereira, diretor da maternidade de Nova Iguaçu (RJ)
Imagem: Kelly Lima/Eder Content/UOL
Crianças sem acompanhamento

A precariedade do atendimento da rede básica também pode criar problemas após o nascimento. Segundo Marize, os bebês precisam passar por consultas mensais até um ano de idade para verificar se a presença da doença durante a gestação causou alguma má formação. “Quando o recém-nascido sai daqui, leva uma pasta com os principais exames já feitos: fundo de olho, raio-x de ossos longos etc. Mas o atendimento da sífilis não acaba aqui. É preciso um acompanhamento posterior", alerta.

Até novembro do ano passado, Marize diz que ainda era possível encaminhar os bebês com sífilis congênita para acompanhamento no Hospital Geral de Nova Iguaçu. De lá para cá, o grande número de casos limita o encaminhamento dos pacientes. "Então o que acontece hoje é que essas crianças estão soltas, sem acompanhamento após a doença”, afirma.

* A pedido das mães de bebês infectados com sífilis congênita entrevistadas na reportagem, suas identidades foram preservadas e identificadas apenas com a letra inicial do primeiro nome.

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Reportagem: Igor Costa Gomes
Fotografias: Kelly Lima
Edição de fotografia: Cacalos Garrastazu
Edição geral: Andréia Lago.