Preconceito e violência expulsam trans de rede de saúde: "Me senti violado"
Seria uma consulta de rotina na ginecologista: algumas perguntas, a troca da roupa por um avental e um exame de Papanicolau. Só que para o estudante Guilherme Dias Santos, 21, que é transexual, o atendimento acabou com um trauma depois que ele percebeu que estava sendo vítima de uma violência.
“Expliquei para ela que eu era um homem trans, que ia começar tratamento hormonal e ela já me olhou com receio. A médica mandou então eu tirar a roupa para fazer o exame", conta.
"Ela acabou introduzindo o dedo em mim de um modo que não tinha que fazer de jeito nenhum. Daí eu questionei e a resposta dela foi a seguinte: ‘Já que você é homem, você tem que fazer esse exame’”, conta ele, em referência ao toque feito no ânus para examinar a próstata, exame realizado em homens a partir dos 45 anos por um urologista.
Não era o caso de Guilherme, que tinha 19 anos e tem útero, e não a glândula masculina, que é responsável por produzir sêmen.
Ao “fazer o exame”, a médica, que atendia em um posto de saúde no Rio de Janeiro, causou um trauma e afastou o paciente do consultório.
Desde esse episódio, eu não piso no ginecologista, e não pretendo pisar tão cedo, porque eu me senti violado.”
Por não fazer consultas ginecológicas periódicas, as pessoas trans deixam de receber um diagnóstico precoce e de se submeter ao tratamento adequado em casos de câncer de colo de útero e de mama, por exemplo. Além disso, a demora na procura por um especialista também pode agravar problemas relacionados a DSTs (doenças sexualmente transmissíveis).
“Hoje em dia essa história não me afeta muito, mas logo depois do que aconteceu eu chorei uma semana inteira. Qual é a necessidade disso? Não tem necessidade de uma coisa desse tipo", diz.
Sem conhecer os seus direitos e prevendo que não teria o apoio da família, Guilherme não denunciou a profissional de saúde.
“Fiquei tão perplexo que não tive nem reação. Só peguei as minhas coisas, vesti a minha roupa e saí. Na época, eu não denunciei porque eu não sabia o que fazer. Eu pensei ‘deixa pra lá, já foi, segue a vida’. Mas hoje em dia eu denunciaria”, afirma.
Atualmente ele só frequenta com regularidade o endocrinologista, porque tem diabetes e não se sente discriminado com o profissional que o acompanha.
Discriminação no consultório
Histórias como a de Guilherme são comuns nas rodas de conversa de pessoas transexuais, que têm medo das possíveis agressões tanto nos consultórios privados quanto no sistema público de saúde.
A gente evita ir ao médico o tempo inteiro por causa da possibilidade de constrangimento. A gente consegue suportar a dor física mais do que a psicológica.”
Jordhan Lessa, 50, servidor público
“Não vamos ao médico só por conta de um processo de transexualidade, nós também temos gastrite, dor de cabeça, e devemos ser atendidos com respeito em qualquer especialidade. Eu conheço homens trans que nunca foram ao ginecologista por medo. Seria muito simples reverter isso. O médico está ali para cuidar de pessoas, basta que ele nos veja como gente”, afirma.
Jordhan conta que desde que passou a se identificar enquanto homem trans nunca teve problemas em atendimento ginecológicos, mas já sofreu constrangimento durante uma consulta particular com uma endocrinologista.
“No primeiro dia, percebi que ela estava desconfortável, mas fez o pedido dos exames. Quando voltei com os resultados, na segunda consulta, eu dei ‘boa tarde’, sentei e ela, que estava sentada, levantou da cadeira para abrir a porta. Ela queria fazer o atendimento de porta aberta, o que não aconteceu com os pacientes anteriores. Mas onde está a minha privacidade? O que ela pensava que eu ia fazer”, questiona ele.
“É uma coisa simples, mas que acontece com frequência conosco”, diz.
Direito garantido desde 2009
Apesar de ser um direito garantido na Carta de Direitos dos Usuários do SUS (Sistema Único de Saúde) pela Portaria nº 1.820, de 2009, e ratificado em 2013, quando foi incluído no sistema eletrônico o campo “nome social” no cadastro do Cartão SUS, muitas pessoas trans ainda têm dificuldade de serem identificadas corretamente.
“É muito complicado quando você tem um nome que não representa a tua identidade. Quando um homem trans chega para um atendimento médico e é chamado pelo nome civil feminino, ele é constrangido diante de todos. Eu corro o risco de sair do consultório e alguém me abordar e me violentar porque fui exposto no posto de saúde”, afirma Jordhan.
No Rio de Janeiro, onde Jordhan e Guilherme vivem, existe há seis anos um decreto que garante a travestis e transexuais o direito ao uso do nome social em todos os serviços municipais. Neste ano, a Rio Saúde criou um protocolo e um serviço eletrônico em algumas UPAs (unidades de pronto-atendimento) para facilitar o uso do nome social em todos os setores de saúde.
Dá para denunciar
Pessoas que se sentirem discriminadas ou forem violentadas por sua identidade de gênero e/ou orientação sexual durante um atendimento médico podem procurar centros de referência ou núcleos especializados de combate à homofobia em seu Estado ou registrar um boletim de ocorrência na polícia.
Em São Paulo, assim como em alguns Estados, existe uma lei específica para punir a homofobia e o registro pode ser feito pela internet.
Nos conselhos regionais de cada categoria, é possível fazer uma denúncia contra o médico que realizou o atendimento. Nesses casos, o denunciante precisa se identificar e apresentar provas e/ou testemunhas do fato.
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