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Erros em hospitais matam 148 pessoas por dia no Brasil, diz estudo

Getty Images
Imagem: Getty Images

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

15/08/2018 03h00Atualizada em 15/08/2018 18h13

No Brasil, 148 pessoas morrem por dia devido a erro em hospitais públicos e privados. Ao todo, 54.076 pacientes perderam a vida por esta razão em 2017, ano da pesquisa divulgada nesta quarta-feira (15) pelo 2º Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, produzido pelo IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar) e pelo Instituto de Pesquisa Feluma, da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.

Os 148 óbitos diários por falhas nos hospitais se aproximam das 175 mortes violentas intencionais registradas por dia em 2017, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado no último dia 9.

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O documento se refere a esses óbitos como “eventos adversos graves”, listando como exemplos infecção generalizada, pneumonia, infecção urinária, infecção do sítio cirúrgico, complicações com acessos e dispositivos vasculares. Erro no uso de medicamentos e complicações cirúrgicas, como hemorragia, também preocupam.

"Meu marido passou 3 dias infartando" diante dos médicos

Hemorragia interna é a suspeita para a morte do empresário André Pereira Venâncio, 47, em janeiro do ano passado. Sua mulher, a empresária Kelly Cristhian de Paiva, 44, reclama na Justiça punição ao hospital Santa Cecília, na zona oeste de São Paulo. Ela acusa a unidade de saúde e o Grupo NotreDame Intermédica por "seguidos erros médicos, imperícia, imprudência e descaso".

Venâncio fazia compras em uma feira livre quando sentiu fortes dores no peito e nas costas. Ele começou a vomitar e parou de sentir a perna e o braço esquerdos.

Socorrido, chegou ao pronto-socorro Santa Cecília, onde esperou por uma hora para a triagem. Na ocasião, o médico diagnosticou gastrite infecciosa. Antes da alta, prescreveu soro, Buscopan e Dramin, para hidratar e aliviar dor e enjoo.

Mas, sem melhora no quadro e ainda vomitando, o empresário acabou voltando ao mesmo hospital na manhã do dia seguinte. "O médico deu uma injeção para dor e deu alta novamente", conta Kelly.

À noite, os dois retornaram ao local, agora com o paciente vomitando sangue. Foi novamente diagnosticado com gastrite infecciosa. Às 2h22, chegou o resultado da tomografia: "derrame pericárdico", um acúmulo de plasma ou sangue na membrana que envolve o coração.

Por volta das 4h50, ele foi levado às pressas para a emergência e entubado. "Estava com rompimento da veia aorta do abdômen", conta Kelly. “Ele passou três dias infartando na mão de diversos médicos.”

No início daquela manhã, Venâncio morreu, deixando três filhos, um deles com nove anos. “O menor assistiu ao pai morrendo na minha frente”, relata a mulher.

"Morro um pouco a cada dia", lamenta Kelly. "Entreguei minha vida aos tratamentos psicológico e psiquiátrico."

Procurados, o hospital Santa Cecília e o Grupo Notre Dame Intermédica responderam por meio de nota enviada pela assessoria de imprensa na qual afirmam que "o paciente André Pereira Venâncio deu entrada no Hospital Santa Cecília com sintomas inespecíficos, os quais foram investigados dentro do ambiente de emergência do hospital, no tempo adequado, sempre considerando o quadro clínico apresentado".

"Inicialmente, não havia evidências clínicas de dissecção de aorta, sendo que foi medicado e apresentou melhora. Quando retornou no dia seguinte, com quadro clínico alterado, foi iniciada nova investigação. Apesar dos exames de método gráfico e laboratoriais se mostrarem normais, foi procedido o aprofundamento da investigação com a realização de tomografia computadorizada, chegando-se ao diagnóstico (que tem uma elevada mortalidade), porém, o paciente veio a falecer, não havendo tempo suficiente para instituir o tratamento cirúrgico."

Número de mortes está subestimado

A quantidade de mortos por imperícia hospitalar, no entanto, está subestimada, afirma o superintendente-executivo do IESS, Luiz Augusto Carneiro. “O fato de os hospitais analisados no estudo serem considerados ‘de primeira linha’ indica que a média nacional projetada a partir da amostra estudada provavelmente está subestimando o problema”, diz. “É possível que ainda mais brasileiros morram por eventos adversos do que o detectado.”

O especialista afirma que, proporcionalmente, “temos no Brasil mais eventos adversos do que em outros países”. “A falta de transparência de informações e desempenho impede a comparação entre os prestadores, o que é ruim para o sistema e para o cidadão”, opina.

Mortes custam mais de R$ 10 bilhões em 1 ano

O estudo estima que essas mortes custaram R$ 10,6 bilhões apenas para o sistema privado no ano passado. “Não foi possível estimar as perdas para o SUS (Sistema Único de Saúde) porque os valores pagos aos hospitais se originam das AIHs (Autorizações de Internações Hospitalares) e são fixados nas contratualizações, existindo outras fontes de receita não operacionais, com enorme variação em todo o Brasil”, informa o anuário.

Para Carneiro, uma das principais razões para tamanho desperdício é a forma como as operadoras de saúde remuneram seus prestadores de serviço, o chamado “fee-for-service”. “Estamos premiando o desperdício”, resume. “Nesse modelo, as organizações com maior incidência de eventos adversos e que apresentam piores índices de recuperação da saúde dos pacientes são recompensadas com um aumento das receitas pelo retrabalho.”

Nos Estados Unidos, diz, o governo não paga, desde 2008, pelos gastos gerados por 14 tipos de eventos adversos. “É natural que, se os gastos partiram de um erro do hospital, a entidade arque com esses custos adicionais em vez de transferi-los ao paciente.”

No Brasil, dentre os principais eventos adversos, cinco não contam com qualquer programa de prevenção ou combate, tanto no SUS quanto na rede privada: parada cardiorrespiratória passível de prevenção, insuficiência renal aguda, aspiração pulmonar, hemorragia pós-operatória e insuficiência respiratória aguda.

O anuário aponta que as regras que regem o sistema de saúde suplementar também não ajudam. “A norma definida pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) restringe o descredenciamento de prestadores, exigindo substituição equivalente ou superior, inibindo a concorrência”, descreve o estudo.

O anuário avaliou 182 hospitais entre públicos e privados, mas não informou a quantidade em cada um dos casos. 

O que diz a associação de hospitais privados

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) disse que "há mais de dez anos passou a medir o desempenho dos hospitais associados à entidade a partir de indicadores coletados periodicamente". Veja abaixo a íntegra do comunicado:

"No início do projeto, foi feito um extenso trabalho de padronização desses dados, implementação de protocolos institucionais para a padronização dos processos com o intuito de impulsionar o bom desempenho clínico e operacional dos hospitais, benchmarking entre as instituições associadas e muita discussão e compartilhamento de boas práticas entre os hospitais.

Abaixo, alguns dados que mostram o resultado deste trabalho contínuo:

- Infecção urinária relacionada à utilização de cateter (em UTI) - 2017

Dados do Center for Disease Control and Prevention (CDC), divisão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, mostram uma média de 2,38 a cada mil pacientes, já os hospitais da Anahp registram 1,99

- Infecção sanguínea relacionada à utilização de cateter (UTI) - 2016

Dados do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo (CVE) mostram uma média de 3,37 a cada mil dispositivos, já os hospitais da Anahp registram 2,18

- Infecção relacionada à cirurgia - 2017

Dados do CVE mostram que essa incidência é de 2% a 5% do total de cirurgias. Os hospitais da Anahp apresentam uma média de 0,46%. 

Outro dado importante que reforça a qualidade das instituições de saúde é a adesão aos protocolos institucionais - instrumentos desenvolvidos para padronizar processos e nortear os profissionais em como proceder no atendimento de uma determinada patologia, buscando maior homogeneidade na assistência prestada, com o intuito de aumentar a satisfação dos pacientes, a segurança assistencial e, além disso, realizar adequada gestão de custos. 

Nos casos de infarto agudo do miocárdio, a mediana de tempo de porta-balão ficou em 72,9 minutos em 2017, abaixo do limite de 90 minutos recomendado pela American Heart Association.

Nos casos de acidente vascular cerebral isquêmico, a mediana de tempo de porta-trombólise venosa ficou em 32,3 minutos, abaixo do limite de 60 minutos estabelecido pela American Stroke Association. 

Em 2017, a Anahp divulgou uma nota técnica detalhada sobre 'Eventos Adversos', que argumenta as informações publicadas pelo IESS naquele ano.

Todo esse trabalho se reflete em uma das regras mais importantes da associação, que é a necessidade do cumprimento de requisitos para que os hospitais possam se tornar membros da entidade: ter uma acreditação de excelência - Organização Nacional de Acreditação (ONA) nível 3; Accreditation Canada Internacional (ACI); Joint Comission International (JCI); National Integrated Accreditation for Healthcare Organizations (NIAHO).

A preocupação da Anahp com o certificado de excelência de seus associados está diretamente ligada à qualidade do atendimento prestado por estes hospitais à população. Anahp responde por cerca de 32% do total de hospitais acreditados no Brasil e por 63% das acreditações internacionais no país.

É fundamental que a segurança do paciente seja assunto prioritário em todo o sistema de saúde e em qualquer organização de prestação de assistência, no mundo inteiro. Porém, dados devem ser divulgados dentro de um contexto de construção da informação pautado na ciência e em métodos aceitáveis na comunidade científica".