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Saída de Cuba do Mais Médicos gera incerteza e tristeza: "Fora dos planos"

Médico cubano em atendimento em área da Amazônia no Acre - Arison Jardim/Secom Acre
Médico cubano em atendimento em área da Amazônia no Acre Imagem: Arison Jardim/Secom Acre

Wanderley Preite Sobrinho*

Do UOL, em São Paulo

14/11/2018 18h12

Foi com surpresa que a médica Raquel (nome fictício), 30, recebeu nesta quarta-feira (14) um email em espanhol avisando que sua participação no programa Mais Médicos havia acabado. Ela se disse “chocada” e começou a conversar com outros colegas, também médicos, sobre como será a volta a Cuba, seu país de origem. O país caribenho decidiu romper com o programa Mais Médicos em razão das novas exigências do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), para continuar com o projeto.

“Já está confirmado”, lamentou Raquel ao UOL. “Mandaram um documento oficial dizendo que vamos sair do Brasil porque o Bolsonaro quer mudar tudo o que diz nosso contrato. Meu país não concorda com isso e vai nos tirar daqui.”

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A carta foi encaminhada por email pela coordenação estadual do programa. “Não tem uma data ainda. Acho que vamos sair aos poucos para não prejudicar os pacientes.”

A médica conta que a coordenação do Mais Médicos não costuma distribuir documentos oficiais. As informações são passadas por telefone, fomentando boatos. “O que me disseram informalmente é que começaremos a voltar em dezembro. Janeiro não terá mais nenhum médico cubano no Brasil.”

Casada e mãe de dois filhos, Raquel chegou sozinha ao Brasil há um ano e quatro meses. “Eu queria terminar os três anos [de contrato], juntar meu dinheiro, melhorar economicamente, conhecer mais o Brasil. Eu vou embora e não conheci nada.”

Outra profissional, que trabalha em Alagoas, mas que também não quis ser identificada, contou ter sido notificada. "Mandaram a informação para todo mundo, mas não sabemos como nem quando será. Não tem um prazo informado. Seguimos atendendo normal até que nos digam", relatou ao UOL.

Segundo ela, há uma orientação do governo cubano a não dar entrevistas.

'Eu sei o que meus pacientes precisam'

Raquel trabalha com outras duas cubanas em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) em Campo Limpo Paulista (53 km de São Paulo). Ali são 11 médicos do programa, dez cubanos e um boliviano.

A gente não tinha planos para ir embora. Não sei se choro. Daqui nós mandávamos dinheiro para a família comprar o que o salário de lá não consegue

Raquel (nome fictício), médica cubana participante do programa Mais Médicos

Todos os dias, Raquel embarca em dois ônibus e passa quase uma hora para sair do centro de Campo Limpo e chegar à UBS em que trabalha. “Cuidamos de uma população muito grande, carente e sem estudos. As condições são precárias: a farmácia nunca tem remédio.”

Embora a médica lamente a falta de médicos especialistas e a oferta de exames complexos para a população local, ela diz que o trabalho surtia resultados. “A população já nos conhece. Tenho meus pacientes, eu sei o que eles precisam.”

“Foi um choque para todo mundo. Tínhamos a esperança de mudar. Agora é oficial e estamos nos preparando para voltar”, conclui.

Afeta quase metade do programa

decisão vai comprometer quase metade de todos os profissionais que atuam no Mais Médicos. Segundo dados do Ministério da Saúde, os cubanos preenchem 8.332 das 18.240 vagas do programa, o equivalente a mais de 45% do total de médicos. Em 1.575 municípios, só há cubanos.

O Mais Médicos está em 4.058 municípios, cobrindo 73% das cidades brasileiras. Quando os médicos são chamados para o programa, a seleção segue uma ordem de preferência: médicos com registro no Brasil (formados em território nacional ou no exterior, com revalidação do diploma no País); médicos brasileiros formados no exterior; e médicos estrangeiros formados fora do Brasil. Após as primeiras chamadas, caso sobrem vagas, os médicos cubanos são convocados.

De acordo com o governo cubano, em cinco anos de trabalho no programa brasileiro, cerca de 20 mil médicos atenderam a milhões de pacientes e chegaram a compor 80% do contingente do Mais Médicos, criado no governo Dilma Rousseff. "Mais de 700 municípios tiveram um médico pela primeira vez na história", diz o governo de Cuba. "Não é aceitável que se questione a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio de suas famílias, presta serviços atualmente em 67 países", declarou o governo.

Em 2017, já no governo Michel Temer, Cuba suspendeu o envio de um grupo de médicos em razão do alto número de ações de médicos buscando a permanência no Brasil para além dos três anos previstos em contrato. 

Outros processos de cubanos também questionaram a forma de remuneração. Eles querem receber o valor integral pago pelo governo brasileiro, uma vez que eles recebem o equivalente a 26% do total. O Ministério da Saúde transfere à Opas (Organização Panamericana de Saúde) o valor de R$ 11.520, que repassa aos profissionais cubanos cerca de R$ 3.000. A diferença fica com o governo de Cuba.

* Colaborou Carlos Madeiro, colaboração para o UOL, em Maceió

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