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Quatro reflexões sobre o que houve e o que está em jogo com a revolta social no Chile

22/10/2020 16h39

Santiago, 22 Out 2020 (AFP) - Manifestações pacíficas e violentas, uma pandemia que paralisa as ruas, mas não as reivindicações, e uma elite política desarmada pela desconfiança de seus cidadãos: o Chile busca o bem-estar social sem definições ideológicas, coincidem quatro vozes a respeito deste ponto de virada.

Acima da foto de um Chile com igrejas em chamas, há um rico debate público sobre "o país que queremos". Quatro analistas dão sua visão do momento em entrevista à AFP: o filósofo político Cristóbal Bellolio, a jornalista Mónica González, o escritor Patricio Fernández e a economista Bettina Horst.

São figuras de destaque da discussão na mídia de um país onde há um ano a história do progresso social e econômico se contava sem aparente questionamento desde 1990.

As reflexões são compartilhadas a poucos dias de um referendo para decidir se mudam ou não a sua Constituição, elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e considerada a mãe das desigualdades e dos abusos.

- O que aconteceu em outubro de 2019? -"Nos fizemos de bobos com a meritocracia sendo um sonho, uma utopia que não existe. A grande fraude é aquela que derreteu os sonhos e esperanças de milhões de chilenos e o que explodiu foi isso", uma justiça, uma educação que serve para uns, enquanto outros vivem privados do Estado e "maltratados" pelo setor privado, afirma Mónica González, renomada jornalista e escritora, fundadora do site de pesquisas CIPER, vencedor do Prêmio Nacional de Jornalismo 2019.

González lembra que no calor da violência que se seguiu àquele 18 de outubro de 2019, uma pesquisa revelou que 62% da população disse: "Se não protestarmos, nada muda", e os números se mantiveram nas últimas pesquisas.

Isso representa "o fracasso da política, a primeira crise que temos, a crise mãe, a mais importante e a maior, é uma crise política", disse.

Cristóbal Bellolio, professor da Escola de Governo da Universidade Adolfo Ibáñez, acredita que foi rompida "uma narrativa de progresso da elite política e econômica chilena", sustentada por bons indicadores, que consideram que os últimos 30 anos do Chile foram os de maior prosperidade econômica, estabilidade, paz social, o que já diz muito na região", explica o autor de "Liberalismo: una cartografia" (2020).

A eclosão marcou uma ruptura com "os atores que lideram os processos políticos" e agora é preciso "rearticular" como essa diversidade ideológica se expressa, afirma.

- Mal-estar acumulado -A violência vista no Chile "cristaliza de certa forma que certos setores estão dispostos a sair com violência às ruas para expressar sua discordância, e isso não é compartilhado pela grande maioria", diz Bettina Horst, diretora de Políticas Públicas do Libertad y Desarollo, um think tank focado em estudos econômicos liberais, ligado à direita.

Horst explica que esse mal-estar estava fermentando há 10 ou 15 anos, quando escândalos de corrupção começaram a enfraquecer as instituições. Em seguida, o poder alternou entre democratas-cristãos e socialistas, após a redemocratização em 1990.

Nessa turbulência social, ela prefere guardar na memória a marcha de 25 de outubro de 2019, que reuniu mais de um milhão de pessoas na Praça Itália, em Santiago, para apoiar demandas por maior bem-estar social de forma "pacífica, legítima", sem bandeiras, nem partidos.

Hoje lamenta o pouco diálogo e o pouco respeito pela diversidade. "Vai ser muito difícil, nesse clima, sentar e falar sobre um novo texto constitucional", disse Horst.

- A "explosão": início ou fim? -Desde 2011, uma série de escândalos, diversos revelados por investigações da CIPER, expunham como o "Congresso legislou pelo poder", conseguindo interferir em leis a favor da exploração mineradora, questões ambientais ou impedir uma lei da água que a consagrasse como bem comum. "Dos socialistas até toda a direita", todos estiveram envolvidos nestes casos, ressalta.

González, autora de "La Conjura. Los mil y un días del golpe" (2013), considera que "não é trivial que sejam os estudantes" que tenham iniciado esta rebelião.

Esse setor "retrata um pouco dos problemas que a sociedade chilena tem: lucro na educação", um negócio que "causou suicídios, gerações perdidas, endividamento generalizado de famílias chilenas pobres e uma classe média que empobreceu tentando pagar por carreiras que iriam permitir a escalada social. A educação como trampolim para escalar e isso acabou se revelando uma fraude", afirma.

- Mudança mundial, capítulo Chile -Patricio Fernández, escritor, fundador e ex-editor do semanário The Clinic, acredita que a revolta chilena faz parte de uma mudança de paradigma no mundo, "um certo ciclo histórico que parece chegar ao fundo do poço e está chegando ao fim".

No Chile, "é contra uma elite completa, é contra uma forma de compreender o poder e é o que a meu ver é a erupção de muitos mundos não atendidos, não ouvidos nas últimas décadas", diz o autor de "Sobre la Marcha" (2020).

"A percepção de uma elite que abusa de sua posição de poder, que sequestrou as instituições para seu benefício exclusivo, é claro, ocorre em um contexto particular, mas também reflete um sentimento bastante global", diz Bellolio, descartando que no Chile somente haja relação com a herança ditatorial ou com o modelo neoliberal. Trata-se de uma mudança mundial.

Alguns desses elementos com semelhanças em outras partes do mundo. Fernández aponta que a revolta em Santiago foi dispersa, confusa, "muitos anti e não pró, havia anti-capitalismo, anti-neoliberalismo, anti-polícia, anti-ordem, mas sem projetos, e isso de alguma forma sintetiza bem aquela ausência de liderança e ausência de um projeto", como ocorre em outros países.

- O que está em jogo no plebiscito? -O plebiscito de domingo, acordado em novembro entre a grande maioria dos partidos políticos, exceto o Comunista, foi uma "decodificação correta" do mundo político diante da crise na rua e, esperançosamente, "que terá a capacidade de legitimar instituições políticas pelo próximos 30 ou 40 anos", acrescenta Bellolio.

Horst, ao contrário, acredita que essas decisões tomadas no meio do barulho e da fumaça da violência diminuem sua legitimidade.

Sem a certeza de que correrá bem, Fernández considera que o processo constituinte é uma "resposta muito feliz" e talvez não só resolva um problema do Chile, mas sirva de exemplo para a atual crise cultural e política no mundo.

- Esperança sem certezas -Ganhe a aprovação ou rejeição, "há um risco real como um país". "Até que ponto vamos prejudicar os chilenos contra os chilenos?", pergunta Horst.

Monica González reconhece que "a Constituição não nos permitirá melhorar em 26 de outubro a alimentação, a superlotação, a saúde, a educação, não, mas dá a base".

"Ou temos uma boa Constituição ou vamos direto para a violência sistêmica e isso com todo o respeito, é o fim da vida. Quando você tem medo da violência, não consegue nem fazer amor".

Como mais de 14 milhões de chilenos, González, Fernández, Horts e Bellolio votarão no domingo. E como aspira o filósofo político: se a mudança constitucional vencer, talvez, em uma "Convenção Constituinte não teremos que chegar a um acordo, mas sim descobriremos que estávamos mais de acordo".

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