Ação de Lira contra Felipe Neto expõe contradição, sim, mas é da fascistada
Se há coisa que não combina com a militância de extrema-direita é critério, escala, grau. Sectarismos não enxergam matizes. Ou os fatos existem para servir às suas convicções ou que se danem os fatos. As milícias digitais bolsonaristas estão em polvorosa. Felipe Neto, que tem tido um comportamento exemplar em defesa da democracia e do estado de direito, participou, no dia 23, por intermédio de um vídeo, de um simpósio na Câmara cujo tema era "regulação de plataformas digitais e a urgência de uma agenda".
Num determinado momento, ao criticar a decisão de Arthur Lira (PP-AL) de retirar de tramitação o PL 2630 -- aquele que regulava as "big techs" --, afirmou:
"É preciso, fundamentalmente, que a gente altere a percepção em relação ao que é um projeto de lei como era o 2.630. Que foi, infelizmente, triturado pelo excrementíssimo Arthur Lira. Se não tivermos o povo do nosso lado, os deputados não vão votar, a gente já sabe como funciona".
O presidente da Câmara não gostou do superlativo -- um trocadilho com "excelentíssimo" -- e anunciou em nota:
"No mesmo dia 23 de abril passado em que soube que o cidadão Felipe Neto fez comentários injuriosos, ofensivos e gratuitos ao Presidente da Câmara dos Deputados, a vítima apresentou a notícia crime à delegacia da Polícia Legislativa Federal para as providências cabíveis no âmbito criminal
Considerando que os fatos acima relatados podem configurar a prática de crimes contra a honra, ocorridos nas dependências da Câmara dos Deputados, determino a adoção das providências cabíveis, no que tange à competência dessa Polícia Legislativa".
Os advogados do alvo de Lira já perceberam o caminho trilhado. O deputado Fala sobre si mesmo na terceira pessoa para indicar que considera que o alvo do comentário foi a figura institucional. Aciona a Polícia Legislativa Federal porque as palavras foram transmitidas na Casa. Busca uma ação por crime de injúria.
Nas redes, o comunicador reagiu:
"Confesso que achei curioso, uma vez que o próprio Arthur Lira disse hoje: 'Parlamentar ser chamado para depor na PF porque disse que ministro é isso ou aquilo na CPI é exagerar um pouco'. Minha intenção, ao citar 'excrementíssimo', foi claramente fazer piada com a palavra 'excelentíssimo', uma opinião satírica, jocosa, evidentemente sem intenção de ofensa à honra. Já sofri tentativas de silenciamento com o uso da polícia antes, inclusive pela família Bolsonaro".
A Polícia Legislativa, note-se, foi acionada porque o fato aconteceu na Câmara. O embate será na Justiça. Dado o texto que escreveu, Lira sustenta que sua honra subjetiva foi agredida e vai buscar a reparação.
Caso se decida fazer um levantamento exaustivo do desfecho de ações dessa natureza, há decisões finais para todo gosto. Tem prevalecido, no mais das vezes, a avaliação de que, quando se ocupa um cargo público, a régua para os crimes de injúria e difamação -- no caso de calúnia, não -- tem de ser um pouco mais alta. O próprio Felipe lembrou no "X" um julgado no Supremo, na pena de Alexandre de Moraes:
"A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, jocosas, satíricas e até mesmo errôneas, mas não para opiniões criminosas, discurso de ódio ou atentados contra o Estado Democrático de Direito e a democracia" - STF. AP 1044/DF, relator Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 20.4.2022
A passagem é lapidar.
Antes que prossiga, observo. Felipe pega Lira no contrapé quando cita uma fala sua em entrevista ainda ontem concedida à GloboNews. O presidente da Câmara sabe que ninguém foi chamado a prestar esclarecimentos à PF apenas por ter dito "que o ministro é isso e aquilo". Ele é dono da sua "honra subjetiva" e reage quando a considera ultrajada; não pode ter a ambição de ser também senhor da alheia.
MISTURANDO TUDO
A extrema-direita está em festa porque avalia que pegou numa contradição um de seus desafetos prediletos. Afinal, o cara é, em muitos aspectos, tudo o que essa gente odeia: trata-se de um empresário muito bem-sucedido, identifica-se com correntes progressistas na política e tem usado a sua impressionante presença nas redes para apontar o vale-tudo nas... redes.
As suas opiniões em nada contrastam com o fato de eventualmente responder a uma ação por crime contra a honra. Isso é uma burrice. Como ele é favorável à regulação das redes e como a canalha o chama, por isso, de "defensor da censura", então vibra com o fato de Lira processá-lo, como a dizer: "Experimente um pouco do seu próprio veneno". Mas que veneno???
Ocorre que nem a regulação nem o processo têm a ver com censura. Isso é leitura torta das três coisas. Contraditórios, parece-me, são aqueles que defendem que Daniel Silveira não cometeu crime nenhum quando incitou a violência contra os ministros do Supremo, mas que Neto mereceria uma condenação pelo adjetivo "excrementíssimo." Além de contraditórios, não têm noção de proporção.
REGULAÇÃO
Felipe e mais uma penca de pessoas com juízo cobram a regulação -- democrática! -- das redes e o combate às milícias digitais não porque avaliem ser necessário coibir os crimes contra a honra. Para tanto, basta o Código Penal.
Precisamos de uma nova legislação para as "big techs" para combater os atentados ao Estado de direito; as tentativas de golpe; os crimes de ódio; as desinformações que matam. E o desafeto do presidente da Câmara tem sido um dos grandes na defesa dos fundamentos da Constituição.
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