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Ruptura entre PCC e Comando Vermelho pode gerar "carnificina", diz pesquisadora

Autora de livro diz que crime organizado passa por reconfiguração que pode gerar "instabilidade no sistema prisional do Brasil inteiro". - Divulgação/Folhapress
Autora de livro diz que crime organizado passa por reconfiguração que pode gerar 'instabilidade no sistema prisional do Brasil inteiro'. Imagem: Divulgação/Folhapress

Joao Fellet

Em São Paulo

18/10/2016 08h58

As mortes de ao menos 18 detentos em prisões de Rondônia e Roraima nos últimos dias podem ser os primeiros efeitos de uma importante reconfiguração do crime organizado brasileiro, diz a socióloga Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo.

Autoridades dos dois Estados atribuíram as mortes ao rompimento de uma aliança entre as duas maiores facções criminosas brasileiras, que hoje atuam em todas as regiões do país: o Primeiro Comando da Capital (PCC), grupo surgido em São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), originário do Rio de Janeiro.

Autora de "PCC: Hegemonia nas prisões e monopólio da violência", Dias afirma à BBC Brasil que a facção paulista e o CV mantinham um pacto para a compra de drogas e armas em regiões de fronteira e para a proteção de seus integrantes em prisões controladas pelos grupos.

Ela afirma que o fim da aliança - que pode ter ocorrido por uma disputa pelo controle de presídios - poderá gerar mais mortes em penitenciárias e acirrar as tensões também nas ruas.

Leia os principais trechos da entrevista da pesquisadora à BBC Brasil.

BBC Brasil - O que pode ter motivado as mortes recentes nos presídios em Rondônia e Roraima?

Camila Nunes Dias - As informações ainda são muito escassas, mas está claro que houve uma ruptura entre o PCC e o CV. Pelo que tenho acompanhado, a ruptura está ligada à dinâmica expansionista das facções dentro dos presídios. Desde julho se tem notícia de ameaças mútuas entre CV e PCC nas prisões, mas até então essa tensão não tinha resultado em mortes. Parecia que os grupos estavam tentando evitar uma ruptura.

Neste fim de semana, 70 presos do PCC foram transferidos de unidades prisionais controladas pelo CV para prisões controladas pela ADA [Amigos dos Amigos, segunda maior facção do Rio de Janeiro]. Isso é muito surpreendente e muda completamente o xadrez do sistema prisional do Brasil inteiro.

Essa reconfiguração também cria a possibilidade de que o PCC atue ao lado da ADA contra o CV na guerra por territórios do Rio de Janeiro. Não sei se para o PCC valeria a pena --eles teriam um desgaste muito grande em termos de pessoal, custos, armas--, mas a possibilidade está posta.

Guerra de facções criminosas provocou mortes em presídios

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BBC Brasil - Quais consequências essa ruptura poderá ter nas demais partes do país?

Dias - Em São Paulo, não vejo nenhum grande impacto --talvez no litoral, onde há presença mais significativa do CV. Mas nos outros Estados a consequência imediata pode ser uma maior violência nas prisões, como ficou claro em Rondônia e Roraima. Pode haver maior instabilidade no sistema prisional do Brasil inteiro, principalmente no Norte e Nordeste, onde há um equilíbrio de poder entre os dois grupos dentro e fora das prisões.

Recentemente, gangues de rua do Ceará e do Rio Grande do Norte celebraram um pacto de paz para não haver mais mortes. Há informações de que esse pacto teria sido costurado pelo PCC e pelo CV. Com essa ruptura, não sabemos se vão manter o pacto. Geralmente as disputas nas prisões acabam reverberando nas ruas, então a situação nos Estados pode tensionar ainda mais.

BBC Brasil - Qual o tamanho do PCC e do CV fora de seus Estados de origem hoje?

Dias - O PCC e o CV são hoje os dois principais grupos que atuam no tráfico de drogas e no controle das unidades prisionais no Brasil. Há mais de dez anos eles vêm se expandindo além de seus Estados de origem.

O CV é mais antigo que o PCC. Ele surgiu no fim dos anos 1970, enquanto o PCC é de 1993. Mas hoje o PCC é bem mais forte em termos de organização e estrutura que o CV. O PCC está presente em todos os Estados do país. Em alguns, como São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná, ele tem hegemonia e é praticamente o único grupo criminoso a atuar.

O CV, além de atuar no Rio de Janeiro, tem hegemonia em Mato Grosso e Tocantins. No Norte e no Nordeste, há um maior equilíbrio entre PCC e CV, com ligeiro predomínio de um ou de outro. No Sul, grupos locais têm mais força, e PCC e CV se colocam como aliados ou inimigos desses grupos.

BBC Brasil - Como PCC e CV se aliaram?

Dias - Desde o surgimento do PCC e do primeiro estatuto do grupo, escrito entre 1996 a 1997, já havia a ideia de buscar uma aliança com o CV. Inclusive o lema do CV, "Paz, Justiça e Liberdade", também foi adotado pelo PCC.

Essa aliança nunca foi ideológica, mas, sim, comercial e por conveniência. Quando um membro do PCC era preso em áreas controladas pelo CV, recebia a proteção do CV nas prisões dominadas por esse grupo. E vice-versa.

Os dois grupos também faziam uma espécie de consórcio para a aquisição de mercadorias --como armas, maconha e pasta base (matéria-prima da cocaína)-- e para negociar melhores preços com fornecedores nas fronteiras.

Nunca houve nada além disso. Na cúpula que fundou o PCC, alguns membros tinham o ideal de criar uma união nacional do crime, mas isso nunca foi adiante.

BBC Brasil - O que impediu uma aproximação maior entre PCC e CV?

Dias - Membros do PCC sempre dizem que o CV busca muito a guerra, está muito preocupado com armas, enquanto eles, do PCC, dizem buscar a paz.

Mas os dois grupos têm histórias bem diferentes, que ajudam a explicar as diferentes formas de operar. Menos de cinco anos após o surgimento do CV, houve uma dissidência que deu origem ao Terceiro Comando (atual Amigos dos Amigos, ou ADA). Essa dissidência, aliada à especificidade geográfica do Rio de Janeiro, fez com que o CV nunca fosse um grupo hegemônico e desde o início estivesse envolvido em guerras por disputa de territórios. Isso impediu que o CV fosse forte como o PCC.

Em São Paulo, o PCC enfrentou dissidências em seus primeiros dez anos, mas conseguiu sufocá-las ou eliminar os grupos rivais, que ficaram reduzidos a penitenciárias específicas, sem expressão fora das prisões.

Nos pontos de venda de droga do PCC em São Paulo, o grupo proíbe o uso de armas. Isso só é possível por conta da hegemonia do PCC, por não haver grupos rivais que imponham algum risco àquele comércio. No Rio, essa atitude seria impensável.

BBC Brasil - Há diferenças na maneira como as duas facções operam fora de suas bases?

Dias - De dez anos para cá, o CV passou por momentos em que esteve bem enfraquecido por conta das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora, política do governo do Rio que instalou dezenas de bases policiais em áreas controladas pelo tráfico) e das disputas com a ADA.

Mas nos últimos anos o CV se fortaleceu novamente e passou a se expandir para outros Estados. Diferentemente do PCC, o CV não atua de maneira centralizada fora do Rio. Suas unidades em outros Estados agem como franquias, elas não precisam se submeter às ordens do Rio.

Já o PCC no Acre, no Paraná ou em qualquer outro lugar do Brasil está dentro de uma estrutura unificada. São células que atendem às diretrizes da cúpula. As ordens que saem de São Paulo são atendidas em todos os Estados.

BBC Brasil - Essas facções são tão poderosas quanto os cartéis colombianos dos anos 1990, como o que era chefiado por Pablo Escobar?

Dias - A diferença principal entre os grupos reside no tamanho de seus mercados. Os cartéis colombianos, assim como os cartéis mexicanos de hoje, têm como principal alvo o maior mercado consumidor de drogas do mundo, os Estados Unidos.

O PCC e o CV atuam basicamente com o mercado brasileiro. Os dois grupos estão no Paraguai e na Bolívia, mas essa presença é muito mais um ponto de contato com fornecedores do que um controle de todas as etapas do comércio.

Já os cartéis colombianos se envolviam com o controle da produção, do processamento, do transporte e da venda das drogas. Essa diferença de magnitude fez com que os cartéis colombianos tivessem outra estrutura interna, outra organização hierárquica, e até outro nível de infiltração no poder político.

BBC Brasil - O que o poder público pode fazer diante da ruptura entre as facções?

Dias - Em termos imediatos, atender às demandas por transferências de presos, porque se não atender vai haver uma carnificina, como em Roraima e Rondônia. No longo prazo, se quiser enfrentar o problema, não poderá fugir de uma política de descarcerização.

A resposta do poder público nas últimas décadas tem sido sempre equivocada. Constroem-se mais prisões, mas esse investimento não vem acompanhado de investimentos no sistema penal como um todo, como na contratação de agentes de segurança. Houve um aumento gigantesco da população carcerária e também um aumento na relação entre presos e funcionários. Em prisões de São Paulo, temos muitas vezes um funcionário para cada 300 presos, situação que se reproduz em outras partes do país.

É evidente que o Estado não controla a população carcerária. Quem exerce o controle nas cadeias são as facções. Isso vale para o país todo. O Estado é conivente com isso - e mais do que isso, o Estado depende do controle das facções para continuar mantendo sua política de encarceramento.

Com as atuais taxas de encarceramento e superlotação dos presídios, não há nenhum tipo de política prisional que vá dar conta disso. Deve-se reservar a prisão apenas para quem cometer crimes violentos e adotar de maneira efetiva alternativas penais, como a tornozeleira eletrônica não só para presos do regime semiaberto, mas para evitar que quem cometa um furto vá para a prisão.

Também deveria haver uma discussão séria sobre a descriminalização das drogas. Mas tenho certeza de que isso não vai ocorrer e vão adotar apenas medidas paliativas. Logo um novo equilíbrio vai se impor no sistema prisional e seguiremos até a próxima crise.