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Cine Marrocos: a vida após deixar uma das ocupações mais emblemáticas de SP

Guarda municipal faz plantão no Marrocos para evitar entrada de pessoas - Gui Christ/BBC Brasil
Guarda municipal faz plantão no Marrocos para evitar entrada de pessoas Imagem: Gui Christ/BBC Brasil

Gabriela Di Bella e Gui Christ

02/11/2016 06h42

"Era um paraíso, o Marrocos." É assim que a pernambucana Lindaci Idalina Viana, de 39 anos, se refere ao que um dia foi uma das ocupações mais emblemáticas do centro de São Paulo, o prédio JB, mais conhecido como Cine Marrocos.

Localizado na rua Conselheiro Crispiniano, logo atrás do Teatro Municipal, o imóvel, construído nos anos 50, tem 12 andares e três blocos. No térreo, há um gigantesco cinema desativado - uma sala que já foi considerada a maior e mais luxuosa da América Latina.

Após duas décadas vazio, o local foi tomado pelo MSTS (Movimento Sem Teto São Paulo) em 2013 e, desde então, foi o pivô de uma batalha jurídica entre o poder público, o proprietário do edifício e os ocupantes.

Esse embate passou por tentativas de reintegração de posse, liminares derrubadas e uma operação policial, em agosto deste ano, que prendeu líderes do MSTS por suspeita de envolvimento com a facção criminosa PCC. Para a polícia, o Marrocos era usado como central logística de distribuição de drogas e armas.

No último dia 15, a ocupação chegou ao fim, com a reintegração de posse pela prefeitura. O local deve se tornar sede da Secretaria de Educação.

O futuro de boa parte das cerca de 100 famílias que viviam no local é incerto.

Numa cidade com um deficit habitacional de 230 mil moradias, segundo a ONU, as ocupações configuram refúgio para uma população fragilizada por diversas razões: desemprego, doenças, dificuldades em pagar o aluguel e até guerras - no caso de refugiados e imigrantes. Para alguns, é apenas uma alternativa de moradia mais próxima ao trabalho.

Por não ter direito ao aluguel social dado pela prefeitura, Lindaci Viana optou por ir morar em outra ocupação no centro de SP ao deixar o Cine Marrocos - Gui Christ/BBC Brasil - Gui Christ/BBC Brasil
Por não ter direito ao aluguel social dado pela prefeitura, Lindaci Viana optou por ir morar em outra ocupação no centro de SP
Imagem: Gui Christ/BBC Brasil

"(Com a desocupação) Não tive direito a auxílio-aluguel porque meu marido tem carteira assinada. Mas ele ganha pouco, então já me mudei para outra ocupação", conta Lindaci Idalina Viana, que conversou com a reportagem da BBC em frente ao prédio do Marrocos, ainda em busca de seus pertences que ficaram para trás durante a operação de reintegração de posse.

A retomada do edifício foi pacífica, mas houve confusão entre os próprios moradores. "Tinha muitas coisas espalhadas pelas escadas, muitas foram roubadas ou sumiram durante a saída. Eu deixei roupas e um colchão de criança", conta Lindaci.

Atualmente, segundo a prefeitura, existem cerca de 30 edifícios ocupados somente no centro da cidade. A administração afirma que realizou atendimento a todos os moradores para cadastro.

Das cem famílias que estavam no Marrocos quando a polícia chegou para retomar o prédio, 35 foram consideradas em situação de vulnerabilidade e vão receber auxílio-aluguel.

Apenas algumas delas receberam um número relativo ao lacre que está na porta dos apartamentos onde viviam. Assim, poderiam voltar ao local e buscar o que ficou pra trás.

'Levaram o material escolar do meu menino'

Janaíra Fraissat e sua familia aguardam autorização para entrar no prédio e pegar seus pertences - Gui Christ/BBC Brasil - Gui Christ/BBC Brasil
Janaíra Fraissat e sua familia aguardam autorização para entrar no prédio e pegar seus pertences
Imagem: Gui Christ/BBC Brasil

Outra ex-moradora que diz também ter tido seus pertences roubados foi a paulista Janaíra Fraissat, 39 anos. "Levaram o uniforme e todo o material escolar do meu menino", afirma.

Formada em contabilidade e ex-auxiliar financeira, ela conta que um problema de saúde ocorrido no nascimento do primeiro filho a impede de trabalhar.

"Já fui operada várias vezes e não consigo ficar muito tempo sentada, estou processando o Estado."

A reportagem da BBC a encontrou no Largo São João com os dois filhos - Jorge, de 5 anos e Júlia, de 2 anos, e o marido. A família ainda busca um lugar para ir após o Marrocos.

Eles têm o direito a receber o auxílio-moradia da Prefeitura, mas contam que o benefício foi bloqueado por um erro burocrático.

"Erraram a minha data de nascimento no cadastro. Então, o banco só liberou o dinheiro na sexta-feira (14) antes da desocupação e aí não tive como buscar um lugar para morar."

O casal decidiu pagar um hotel na primeira noite e diz que agora têm dormido cada noite em um local diferente. De acordo com Janaíra, é ainda mais complicado conseguir um lugar para morar quando se têm crianças.

"Eu fiquei em situação de rua, sem ter para onde ir mesmo. E para fechar um aluguel tem que ter depósito, fiador, aprovar sua ficha, eu recebo um salário mínimo e tem lugar onde não aceitam isso."

A exemplo dos outros ocupantes do Marrocos, Janaíra teve seu apartamento lacrado pela prefeitura. Ela passou quase 15 dias tentando voltar ao prédio para pegar suas coisas.

Na terça (25) pela manhã, ela conseguiu buscar o carrinho da filha e alguns pertences. Geladeira, fogão e alguns armários ficaram na escadaria de mármore da entrada do Marrocos à espera por um caminhão, agendado pela Defesa Civil. "Viver em uma ocupação é como viver uma corda bamba, você nunca sabe como vai ser."

Na época de ouro e na pobreza

Neide Leonel Vidoto saiu do Marrocos para uma quitinete alugada no centro - Gui Christ/BBC Brasil - Gui Christ/BBC Brasil
Neide Leonel Vidoto saiu do Marrocos para uma quitinete alugada no centro
Imagem: Gui Christ/BBC Brasil

Neide Leonel Vidoto, de 71 anos, sempre afirmou que seria a última pessoa a sair do Marrocos. Entretanto o grave estado de saúde da mãe a levou a buscar um novo lugar antes que chegasse o último aviso. "Ela vivia em cadeira de rodas, e faleceu logo após a mudança."

Hoje, ela e o marido, Cícero Francisco dos Santos, de 65 anos, moram em uma quitinete no centro da cidade. Ele viviam no Jardim Iguatemi antes da ocupação e o tempo gasto com transporte diariamente pelo marido para ir ao trabalho foi o que definiu a mudança. "Ele saia às 4h da manhã e voltava as 20h."

Ela diz que foi para o Marrocos por curiosidade. "Vi a repórter na TV falando da invasão e decidi ir lá ver como era. Na hora fiz o cadastro, vi o espaço e decidi ficar", conta. Foram dois anos e meio morando na ocupação.

Para Neide, o Marrocos é um lugar com fortes memórias afetivas. No auge do cinema, ela ganhava convites de um ex-chefe para frequentar as estreias e festas do local. "Tudo brilhava, os lustres, os tapetes. Dava até dó de pisar. Eu vivi o Marrocos na época de ouro e na pobreza."

Em busca de documentos

Caminhando com dificuldade, a aposentada Madalena Pedro Godoy, de 81 anos, não desanima. Apoiada em sua bengala, ela caminha do Marrocos na rua Conselheiro Crispiniano até a subprefeitura da Sé. Ela conta que precisa voltar ao prédio porque esqueceu todos seus documentos lá.

Madalena Pedro Godoy já passou por diversas secretarias em busca de autorização para pegar de volta seus documentos que ficaram no Marrocos - Gui Christ/BBC Brasil - Gui Christ/BBC Brasil
Madalena Pedro Godoy já passou por diversas secretarias em busca de autorização para pegar de volta seus documentos que ficaram no Marrocos
Imagem: Gui Christ/BBC Brasil

"Eu estou sem nenhum documento, nem cartão, e não consigo voltar para pegar, preciso para receber o benefício", conta. Com direito a receber auxílio-aluguel, Madalena é uma das ex-ocupantes que não receberam contralacre da prefeitura e, por isso, não têm autorização para voltar ao Marrocos.

Ex-moradora de um espaço no sexto andar do prédio, ela conta que foi viver na ocupação por causa do filho que estava lá. "Ele saiu e eu acabei ficando, fiquei até o final defendendo os moradores."

Agora, a aposentada mora em um pequeno apartamento em Americanópolis, região sul da cidade. "Lá no Marrocos, eles sempre me trataram muito bem, sou amiga de todos, até dos guardas que estão lá na frente hoje, podem ir lá em casa tomar um café quando quiserem."

Da ocupação para um abrigo

"Sai, sai, sai com as crianças que eu não quero que vocês enfrentem a polícia", assim o haitiano Fenitho Duverna, de 34 anos, foi orientado por Mônica Quenca, assistente social de uma instituição religiosa autorizada pela prefeitura a auxiliar imigrantes, a deixar a ocupação 20 minutos antes da chegada da polícia. "Deixei tudo lá, estou há uma semana com essa bermuda e essa camisa laranja", conta o estrangeiro.

Foi a dificuldade em conseguir pagar o aluguel de um pequeno apartamento no bairro de Santa Cecília que o levou ao prédio do Marrocos. "Lá fiquei porque achei que aí poderia me cadastrar para conseguir um apartamento próprio."

Ele, a esposa e as três filhas, uma delas recém-nascida, moravam no terceiro andar do prédio desde março. Apesar de ser formado em Administração, Duverna trabalha como azulejista.

Quem ajudou o haitiano foram os profissionais do Crai (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes). A família está em um abrigo do centro na região sudeste da capital onde recebe atendimento até se estabilizar novamente.

A barreira da língua

O haitiano Fenitho Duverna é administrador, mas trabalha como azulejista - Gui Christ/BBC Brasil - Gui Christ/BBC Brasil
O haitiano Fenitho Duverna é administrador, mas trabalha como azulejista
Imagem: Gui Christ/BBC Brasil

O nigeriano Dike George, de 39 anos, quase não fala português. Diante do Marrocos, parece um pouco perdido. Tentava, em vão, se entender com os agentes da Polícia Civil que vigiam o prédio.

Há dois anos no país, o africano tinha o Marrocos como endereço havia quatro meses. Acostumado a ficar na ocupação durante os dias úteis e ir para casa de amigos nos fins de semana, George afirma que nem sabia da reintegração de posse.

Vendedor de sapatos em uma galeria de imigrantes no centro, ele foi morar no Marrocos pela facilidade de estar mais perto de onde trabalha. Como pouco se comunica em português, o africano conta que não foi informado por ninguém sobre o conflito vivido no prédio.

Nem no Marrocos e nem na subprefeitura havia alguém que pudesse atendê-lo, devido à barreira da língua. Ele precisou de auxílio de tradução da reportagem para entender melhor o que estava acontecendo.

"Cheguei na segunda (16) pela manhã e não podia entrar." Agora ele fica em uma peregrinação entre o edifício, a subprefeitura da Sé e secretarias para tentar recuperar seus pertences.