Linguistas lutam para reviver o cristang, dialeto português de mais de 500 anos
Até dois anos atrás, o universitário Kevin Martens Wong, de Cingapura, mal tinha ouvido falar em uma língua falada por ancestrais seus.
O jovem linguista pesquisava línguas em extinção quando se deparou com um livro em cristang, também conhecida como papiá cristang ou português malaká. Ao aprofundar-se no assunto, percebeu que ela era falada por seus avós maternos.
Ele tinha ouvido um pouco de cristang na infância. Mas seus avós não eram fluentes, e sua mãe não falava a língua.
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"Eu aprendi mandarim e inglês na escola - e meus pais falam inglês comigo. Então nunca reconheci este lado da minha herança", disse Wong, que é metade chinês e metade português eurasiano - nome dado em Cingapura e na Malásia aos descendentes dos portugueses que chegaram no século 16 ao então sultanato de Malaca e se misturaram à população local.
Malaca, hoje um Estado da Malásia, tornou-se base estratégica para o comércio dos navegadores portugueses, que também ocuparam enclaves no Japão e na China.
O contato de Portugal com a região terminou na metade do século 17, quando os portugueses foram derrotados pelos holandeses, que tomaram Malaca. No século 18, o controle passou para os britânicos até que, em 1957, a Malásia declarou sua independência.
Cristang - o nome é uma referência a "cristão" - é uma língua crioula, ou seja, surge da mistura de várias outras. No caso, deriva do português, do malaio e tem elementos do chinês, como o mandarim e hokkien (um dialeto asiático).
No século 19, era falada por pelo menos 2 mil pessoas, afirma Wong. Hoje, calcula-se que apenas cerca de 50 em Cingapura e outras poucas centenas espalhadas pela Malásia sejam fluentes.
A principal razão apontada para o declínio é que a comunidade se tornou menos relevante economicamente.
Quando Malásia e Cingapura ainda eram colônias britânicas, muitos portugueses eurasianos encontraram trabalho no serviço público. Com isso, o inglês se tornou mais importante, e muitos começaram a desencorajar seus filhos a falar cristang.
'Fui punido por falar cristang'
Bernard Mesenas, de 78 anos, lembra que apanhava do pai com um cinto quando era pego falando cristang.
"Meu pai não gostava, dizia que eu não podia falar a língua porque estragaria meu inglês", disse à BBC.
"Eu argumentava que era a língua da minha avó. Ele então colocava as mãos em seu cinto - e eu me escondia atrás da minha mãe."
Quando os britânicos deixaram a região, os recém-independentes Malásia e Cingapura decidiram quais línguas faladas por sua população multicultural deveriam ser oficialmente reconhecidas - e cristang não estava entre elas.
O declínio continuou à medida que os portugueses eurasianos se casavam com outros grupos étnicos e suas crianças passavam a falar outras línguas.
Em Cingapura, onde toda criança deve aprender uma segunda língua depois do inglês, muitos eurasianos escolheram o mandarim.
Até no vilarejo conhecido como "Vila Portuguesa" de Malaca, onde ainda vive uma comunidade de portugueses eurasianos, a língua foi lentamente desaparecendo.
O pesquisador de cristang Stefanie Pillai, da Universidade da Malásia, explica que muitas famílias locais preferiram que seus filhos aprendessem o inglês.
"Infelizmente, embora seja possível ouvir a língua crioula sendo falada no povoado... Há pessoas jovens que cresceram aqui, mas não são fluentes nela, falam principalmente inglês", disse.
Para as futuras gerações
Mas Wong e um grupo de linguistas esperam mudar a situação.
O grupo chamado Kodrah Kristang - algo como "Acorde o Cristang" - oferece aulas gratuitas semanais da língua. A ideia é que mais pessoas se tornem fluentes e, assim, transmitam o aprendizado a gerações futuras.
A cada semana, cerca de 200 estudantes - muitos portugueses eurasianos - assistem às aulas. Entre eles estão os avós de Wong.
A ironia de aprender sua língua nativa com a ajuda do neto tem um significado especial.
"Nunca me ocorreu que cristang era a minha língua, sempre pensei que fosse o inglês", disse Maureen, de 80 anos. "Eu sentia saudade, achava que tinha de tê-la aprendido melhor para poder falar com meus filhos."
"Mas não é tarde demais para aprender", afirmou a vó de Wong. "E acho que é ótimo que jovens possam ensinar uma pessoa mais velha, especialmente quando é seu próprio neto."
Preenchendo as lacunas
Mas reviver uma língua que estava prestes a morrer não é fácil. E um dos maiores desafios é que o cristang é principalmente uma língua falada, sem muitos registros.
Não existe um sistema de ortografia e pronúncia normalizado, e uma palavra pode ter dezenas de variações. Um exemplo: a palavra para o número "quatro" - quartu em cristang - pode ser falada e pronunciada de 20 maneiras diferentes.
E como a língua está em declínio há muito tempo, existem várias lacunas em seu vocabulário.
Cristang não tem palavras para conceitos básicos como maçã, enfermeiro, estação ou câmera. "Mas temos várias palavras para genitália", conta Wong, brincando.
Para resolver este problema, o grupo inventou novas palavras a partir da mistura de línguas que estão nas raízes do cristang.
A palavra em cristang para maçã se tornou manzang, uma adaptação da palavra em português com uma regra gramatical malaia. "Panda" agora é um bruangatu, ou "gato urso", uma tradução da palavra em chinês com influência malaia.
Algumas dessas invenções podem ter até uma inclinação poética: uma câmera é pintalumezi, ou "máquina de pintar com a luz", enquanto a palavra para "gramática" é osulingu -"ossos da linguagem".
Além das aulas, o grupo organizou visitas à Vila Portuguesa de Malaca, começou a desenvolver um dicionário e um livro didático, criou cursos de áudio online gratuitos e até gravou covers de músicas populares em cristang, que foram publicados no YouTube.
Em maio, eles realizarão o primeiro festival de Cristang, o Festa, que terá palestras, workshops e um passeio histórico.
Eles acham ainda estar longe de ressuscitar o cristang e de vê-la sendo usada como língua corrente. Mas veem o esforço como um primeiro passo.
"Gostaríamos que o cristang um dia fosse reconhecido pela comunidade em geral", diz Wong.
"Não há razões econômicas para ele voltar, mas é parte da nossa história e herança."
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