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É 'hipocrisia' criticar ação policial sem conhecer a realidade da cracolândia, diz psicóloga

24.mai.2017 - Usuários de droga ocupam a Praça Princesa Isabel, na região central, depois da desocupação da Cracolândia - Bruno Santos/ Folhapress
24.mai.2017 - Usuários de droga ocupam a Praça Princesa Isabel, na região central, depois da desocupação da Cracolândia Imagem: Bruno Santos/ Folhapress

26/05/2017 18h08Atualizada em 26/05/2017 21h47

A psicóloga Clarice Madruga, de 39 anos, conhece bem o cotidiano da cracolândia de São Paulo. Nos últimos cinco anos, atuou na capacitação de equipes do governo estadual que atuam na região e coordenou pesquisas que traçaram o perfil dos usuários de drogas da área.

Para ela, há "hipocrisia" em algumas críticas à operação policial de combate ao tráfico que nesta semana dispersou usuários e o "feirão da droga" que funcionava no local.

"É uma hipocrisia. As pessoas de repente discutem direitos humanos em relação a uma ação da polícia, mas do crime ninguém fala. Como se a cracolândia fosse um parque de diversões: estavam todos brincando de roda quando chegou uma operação maligna", afirma a professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Madruga diz que "todos os direitos humanos possíveis e imagináveis" já estavam sendo desrespeitados com a ação de traficantes que, segundo ela, dominam com "tirania" os dependentes químicos na região.

"Vi crianças sendo espancadas, com braço e perna quebrados, porque não seguiram alguma regra. Vi usuário vindo à tenda (do programa Recomeço, estadual) para pedir intervenção e ser esfaqueado lá dentro porque estava devendo", conta Madruga, para quem a violência desses grupos recrudesceu neste ano.

Nesta semana, a BBC Brasil publicou entrevista com o neurocientista Carl Hart, professor da Universidade de Columbia (EUA) que estuda drogas há 20 anos e já visitou o Brasil e a cracolândia de São Paulo. Hart avaliou a ação policial como prova de "falta de compaixão" dos governos municipal e estadual, que estariam "fazendo política com pessoas".

Para Clarice Madruga, que tem mestrado em neurociências e em psicologia com ênfase em dependência química, é preciso ver o que ocorrerá daqui em diante para julgar o sucesso da ação policial, que ela considerava inevitável.

"Claro que é ruim ter que fazer esse tipo de operação. Óbvio que é preciso ter agentes de saúde e assistência social antes de considerar aquilo como problema de polícia, mas da forma como estava não vejo outra alternativa para tentar quebrar aquele ciclo", diz ela, lembrando que a ação da polícia ocorreu sem confrontos e feridos graves, diferentemente de intervenções no passado recente.

"Uma ação que claro que é desespeitosa, é a polícia. Não acompanhei a operação, sei que foram truculentos, que houve desrespeito, mas ninguém fala dos absurdos que estavam ocorrendo lá. É chocante pensar que foi preciso chegar onde chegou. Aquelas cenas (da ação policial) que para todo mundo são chocantes, de fato são, mas chocam menos que as cenas vividas dentro da cracolândia", completa.

'Erros da prefeitura'

Apesar de rebater críticas à operação policial, a professora diz ver equívocos nas políticas anticrack da gestão João Doria (PSDB), sobretudo no pedido à Justiça, feito nesta semana, de autorização para fazer internações contra a vontade dos dependentes químicos.

Para ela, o erro está na solicitação, feita por Doria, de uma espécie de autorização coletiva, sem necessidade de análise individual pelo Judiciário. Atualmente, cada caso de internação compulsória deve ser respaldado por laudo médico e autorizado de modo individualizado pela Justiça.

"Ninguém em sã consciência pode concordar com isso. Duvido que (o prefeito) consiga levar isso adiante, haverá todo tipo de bloqueio", afirma. Ministério Público de São Paulo, por exemplo, já declarou que o pedido de Doria pode motivar uma "caçada humana".

A divulgação da intenção da prefeitura de internar viciados contra à vontade, segundo ela, também já prejudica a situação das equipes que estão em campo tentando acolher os dependentes que se dispersaram, que ficaram mais arredios. "É terrível que tenha sido falado de internação em massa, porque isso boicotou as tentativas de abordagem social, de acolhimento."

"Sou absolutamente contrária a essa ideia e espero que prevaleça o trabalho preventivo de reinserção social tão necessário para que a coisa funcione", afirma Madruga.

A reportagem ofereceu à prefeitura oportunidade para se manifestar sobre as declarações, mas não havia obtido resposta até a publicação desta reportagem.

Perfil da cracolândia

Madruga coordenou um estudo feito entre maio e junho de 2016 que buscou identificar o perfil e o histórico de consumo de drogas dos frequentadores da cracolândia. A pesquisa, feita por funcionários do Recomeço em capacitação na Unifesp, estimou que havia à época cerca de 700 usuarios frequentando a região, dos quais 107 foram entrevistados.

Entre os entrevistados, prevaleciam homens (79%) com idade média de 34 anos, desempregados (72%), moradores de rua (68%) e com ensino fundamental incompleto (46%). Destacou-se o consumo de tabaco (86%), álcool (83%), crack (76%), maconha (70%) e cocaína (59%).

Cerca de 30% dos participantes relataram já ter sofrido overdose. Doenças contagiosas confirmadas também foram alvo de perguntas - 20,6% apontaram sífilis, 11,2% tuberculose e 5,6%, HIV. Mais da metade (56%) relatou prática recente de sexo sem proteção e 57,9% disseram ter tido pensamentos suicidas. E 71% manifestaram desejo de deixar de usar crack.

Para Madruga, após o choque inicial pelas cenas degradantes, é possível constatar, pela vivência no local, que há colaboração e laços comunitários entre as pessoas. "Você vê que tem uma comunidade ali, com personalidades. Há churrascos, sambas", conta.

'Falhas no Braços Abertos'

Embora não seja contrária às chamadas políticas de redução de danos, princípio que inspirou o programa Braços Abertos, iniciativa da gestão Fernando Haddad (PT) extinta por Doria, Madruga afirma que a ação petista era uma "boa ideia" que fracassou por falhas de planejamento e execução.

"A ideia da varrição, por exemplo, não funcionou (dependentes ganhavam R$ 15 por dia da prefeitura se trabalhassem em atividades como varrição e jardinagem). No final praticamente ninguém varria nada e todo o dinheiro ia para comprar droga", afirma ela, para quem a escalada da violência atual dificultava o trabalho social na região.

"Muitos usuários não conseguiam sair (da cracolândia) porque deviam para o tráfico", afirma.

A pesquisadora também vê problemas em pesquisa de avaliação do Braços Abertos que no ano passado entrevistou 80 beneficiários e apontou impacto positivo na vida de 95% dos usuários e que duas em cada três pessoas tinham reduzido o consumo.

"A pesquisa tem limitações metodológicas sérias. Pegaram só (frequentadores da cracolândia) que estavam dentro do programa, que eram 20% do total. Entrevistaram só 10% desse total e há um viés de seleção na amostra, pois entrevistaram quem já estava em uma situação melhor", diz.

A Plataforma Brasileira de Política de Drogas, que conduziu a pesquisa sobre o Braços Abertos, rebate as críticas. Diz que o estudo foi preliminar e visava analisar o impacto entre beneficiários, e que não procede a afirmação de que foram entrevistados apenas quem havia melhorado a situação do vício.

Diz que houve ainda uma etapa qualitativa, com entrevistas sobre a vida dos usuários, e que o trabalho foi independente, financiado por recursos internacionais e sem "nenhum tipo de comprometimento com a gestão municipal".

Sobre a atual dispersão da cracolândia por diversos pontos de São Paulo, a psicóloga diz considerar que agora é o momento crucial para tentar buscar e reinserir esses usuários na sociedade. Ela diz que funcionários do tráfico já se movimentam na praça Princesa Isabel, para onde a maior parte dos usuários espalhados pela ação de domingo se deslocou.

"Os dependentes não irão dizer que é um alívio dormirem espalhados porque o crack não está mais na mão deles, mas na verdade eles saíram da tirania a que eram submetidos lá", afirma, apontando ter notado reforço, pela prefeitura, das equipes de assistência social.

"Tem que ser ação social intensa. Notei um aumento das equipes (depois da ação policial), gente com menos experiência de abordagem a usuários, mas pelo menos conseguiram colocar gente lá com uma intenção. É fazer aguma coisa enquanto o sistema (de domínio do tráfico) se desmantelou um pouco", afirma.