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Como está a Máfia 25 anos após o atentado que matou juiz da 'Lava Jato' italiana

O juiz Giovanni Falcone (centro) morreu em 23 de maio de 1992 num atentado da máfia Cosa Nostra - GETTY IMAGES/BBC
O juiz Giovanni Falcone (centro) morreu em 23 de maio de 1992 num atentado da máfia Cosa Nostra Imagem: GETTY IMAGES/BBC

Pablo Esparza

05/06/2017 14h34

Quinhentos quilos de explosivos ocultos sob o asfalto explodem três carros blindados no quilômetro 4,7 da rodovia que liga o aeroporto à cidade siciliana de Palermo, na Itália.

São 17 horas, 56 minutos e 48 segundos do dia 23 de maio de 1992. O resultado: cinco mortos, incluindo o juiz Giovanni Falcone, alvo do ataque.

Dois meses depois, no dia 19 de julho, às 16h58, um carro-bomba põe fim à vida de seu colega Paolo Borsellino e de mais cinco pessoas na Via D'Amelio, na mesma Palermo.

Desde então, os nomes de Falcone e Borsellino tornam-se um símbolo trágico da luta contra a máfia na Sicília.

Cenário de destruição após atentado que matou o juiz Falcone - EPA/BBC - EPA/BBC
Cenário de destruição após atentado que matou o juiz Falcone
Imagem: EPA/BBC

Seus funerais levaram milhares de sicilianos às ruas de Palermo numa mobilização de repúdio ao crime organizado na ilha italiana.

"Não os mataram, suas ideias caminham sob nossas pernas". A frase se que lia nos cartazes de sacadas da capital siciliana naqueles dias se tornou um lema.

Mudança radical

"E agora matem todos nós", diz bandeira que levam ativistas antimáfia em protesto de 2007, em Palermo - GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC - GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC
"E agora matem todos nós", diz bandeira que levam ativistas antimáfia em protesto de 2007, em Palermo
Imagem: GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC

As mortes de Falcone e Borsellino marcaram o momento auge na estratégia de ataques empreendida pela Cosa Nostra, a máfia siciliana do final dos anos 1980 e a princípios dos 1990 que deixou dezenas de mortos.

Também representaram uma ruptura na percepção social da máfia. O professor Rocco Sciarrone, sociólogo especialista no fenômeno mafioso, se refere a aqueles ataques como um "trauma cultural".

"Foi uma mudança radical. Pela primeira vez na história da Itália, a Máfia se converteu num mal público em nível geral, em um inimigo que tem que ser combatido", disse à BBC Mundo o professor de Sociologia da Universidade de Turim.

"Antes disso, a Máfia ou não era combatida ou era combatida apenas por alguns setores da sociedade", acrescenta.

No entanto, esta transformação já tinha começado alguns anos antes graças ao trabalho de combate à Máfia de Facolne e Borsellino, entre outros.

O episódio mais notável foi chamado de "Maxiprocesso de Palermo", que ocorreu entre 1986 e 1987 e teve um saldo de 360 condenações e mais de 2.200 anos de prisão acumulados em penas aos criminosos.

Foi um dos golpes mais duros contra a Cosa Nostra até aquela data.

O enfraquecimento

Em 2012, aos 20 anos do atentado, um monumento foi erguido em memódia do juiz Giovanni Falcone em Palermo - AFP/BBC - AFP/BBC
Em 2012, aos 20 anos do atentado, um monumento foi erguido em memódia do juiz Giovanni Falcone em Palermo
Imagem: AFP/BBC

As mortes de Falcone e Borsellino, quatro anos depois, foram vistas como uma vingança e uma demonstração de força com a qual a Cosa Nostra pretendia amedrontar os poderes do Estado italiano.

Passados 25 anos, surgem perguntas inevitáveis: a Cosa Nostra alcançou seu objetivo final? Qual influência e poder ela tem hoje na Sicília?

Especialistas consultados pela BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, concordam ao descrever a Máfia siciliana como uma organização enfraquecida que perdeu grande parte de seu controle social na ilha.

Para Salvatore Lupo, um dos estudiosos do tema, os atentados contra Falcone e Borsellino tiveram um efeito paradoxal a longo prazo que, com os anos, acabou por implodir a própria organização criminosa.

"O auge terrorista da Máfia entre 1991 e 1993 levou, posteriormente, ao desastre (para a organização). Muitos líderes mafiosos terminaram na prisão. O grande capo Salvatore Riina foi preso; anos depois, seu sócio Provenzano também foi detido, e contatos com os Estados Unidos praticamente foram interrompidos", disse à BBC Mundo.

"O enfraquecimento da Máfia ocorreu pelos erros dos líderes mafiosos, sua arrogância e o fato de ter enfrentado diretamente a repressão estatal", afirma o professor de História da Universidade de Palermo.

A pressão policial, a criação de novas leis antimáfia (como a proteção de delatores e o confisco de bens mafiosos) foram ferramentas cruciais na mudança.

No Brasil, o juiz federal Sérgio Moro já comentou se inspirar em Giovanni Falcone, que também se baseou nas confissões dos chamados "arrependidos", como ocorre nas delações premiadas.

E, assim como na Lava Jato, a operação italiana Mãos Limpas revelou nos anos 1990 casos de corrupção envolvendo políticos, empresários e mafiosos.

Em números

Bernardo Provenzano, um dos chefes da Cosa Nostra, doi detido em 2006, após passar 42 anos como fugitivo - GETTY/FABRIZIO VILLA/BBC - GETTY/FABRIZIO VILLA/BBC
Bernardo Provenzano, um dos chefes da Cosa Nostra, doi detido em 2006, após passar 42 anos como fugitivo
Imagem: GETTY/FABRIZIO VILLA/BBC

Os números são reveladores. Em 1991 e 1992, a taxa de homicídios na Sicília era de 9,7 e 8,3 a cada 100 mil habitantes, muito acima da média italiana. Desde então, a queda foi constante e, em 2016, ficou em 0,7, num nível parecido ao resto das regiões italianas.

Palermo, eleita no início do ano como capital cultural italiana de 2018, é hoje uma cidade que tenta se afastar da imagem ruim associada à Máfia.

Em paralelo, no mesmo período foram detidas mais de 2 mil pessoas pela sua relação com a Cosa Nostra e foram confiscados bens no valor de mais de US$ 4 bilhões (R$ 12 bilhões) desde 1992.

A pressão policial aumentou de forma considerável após a campanha de atentados dos anos 1990 e provocou a queda de líderes da organização, que perdeu alguns de seus negócios mais rentáveis.

A atualidade

"A Máfia siciliana deixou de ser um ator significativo no mercado da droga. Quando Falcone investigava-a, a Cosa Nostra tinha um papel importantíssimo no tráfico. Mantinha conexões com provedores turcos, teve presença em Nova York quando se discutia o fornecimento de heroína no mercado americano na costa leste. Tudo isso não existe mais", explica Federico Varese, professor de criminologia da Universidade de Oxford e especialista em máfias internacionais.

"Agora, a Máfia siciliana compra drogas para revendê-las a nível local, mas não é um ator internacional. Esse papel foi assumido pela Ndrangheta, a máfia da Calábria", afirma à BBC Mundo o autor do livro Mafia Life: Love, Death and Money at the Heart of Organised Crime ("Vida da Máfia: Amor, Morte e Dinheiro no Coração do Crime Organizado", em tradução livre).

Diferentemente da Cosa Nostra, a Ndrangheta calabresa nunca realizou uma ofensiva de atentados contra o Estado italiano. Manteve a discrição própria das organizações que se dedicam aos negócios ilícitos. Hoje, afirmam especialistas, é a máfia italiana mais rica, seguida da Camorra napolitana.

Na Sicília, a contínua pressão policial tornou difícil a reorganização da Cosa Nostra. "Ainda controlam parte do território da Sicília, mas com certa dificuldade. Eles têm dificuldades na hora de arrecadar dinheiro. E muitos de seus membros não ganham tanto dinheiro como costumavam. Estão com dificuldades financeiras", afirma Varese.

"O dinheiro que conseguem vêm através de atividades tradicionais de extorsão em troca de 'proteção'. Mas não tanto como no passado", acrescenta.

Extorsões

O "pizzo", ou extorsão mafiosa, continua sendo cobrado na Sicília - GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC - GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC
O "pizzo", ou extorsão mafiosa, continua sendo cobrado na Sicília
Imagem: GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC

O trabalho da sociedade civil foi determinante. Associações como Addio pizzo (literalmente, "Adeus à extorsão mafiosa"), nascida em 2004 e que agrupa mais de mil comerciantes e empresários que se recusam a pagar à Cosa Nostra, tornaram visível o repúdio ao grupo mafioso. No entanto, o pagamento do "pizzo" segue amplamente praticado na Sicília.

"Como confirma a maior parte das pesquisas sobre o fenômeno extorsivo, os empresários que aceitam (o pagamento) são ainda a grande maioria. Mas é difícil saber quantos pagam (propina)", explica um relatório sobre a máfia publicado pela Federação de Associações contra a Fraude da Itália.

Para Salvatore Lupo, a atividade mafiosa "por excelência é a da extorsão", por permitir controlar atividades econômicas sobre um território limitado. "A (indústria de) construção e distribuição, os supermercados, o comércio... são os setores nos quais a máfia opera de forma mais simples".

À manutenção das atividades mafiosas tradicionais soma-se mais discrição na forma de atuar hoje. Os grandes atentados e assassinatos em plena luz do dia são menos frequentes.

"A Máfia foi abatida e enfraquecida, e isso é muito importante destacar. Mas ela tenta se reorganizar, na minha opinião, e uma das estratégias mais importantes é a crescente presença da Máfia na economia legal. É o que na Itália chamamos de zona cinza. Aqui o problema é a introdução de mafiosos com relações de cumplicidade e de interesses cruzados com expoentes da economia legal, com empresários", afirma Sciarrone.

Em 2010, a polícia italiana confiscou armas usadas pela Cosa Nostra - GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC - GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC
Em 2010, a polícia italiana confiscou armas usadas pela Cosa Nostra
Imagem: GETTY/MARCELLO PATERNOSTRO/BBC

No entanto, os limites entre a corrupção política e econômica e as atividades da Máfia propriamente dita nem sempre são claros.

"São grupos de negócios que têm recursos acumulados, inclusive do passado, e que continuam ativos em negócios que poderíamos chamar de limpos. Mas com métodos corruptos", sugere Lupo.

O especialista define a Máfia como uma "patologia da democracia" e insiste que os problemas e as carências democráticas que propiciaram o surgimento do crime organizado perduram na Sicília e no resto da Itália.

Por isso, apesar do otimismo diante do enfraquecimento da Cosa Nostra, os especialistas concordam que sua ruína não foi completa. "Foi derrotada numa batalha importantíssima. A guerra, no entanto, continua", conclui Lupo.