Topo

Com casa destruída por conflito, 'ex-dona da Rocinha' diz que não há heroísmo no tráfico

Raquel de Oliveira, escritora e moradora da Rocinha - Divulgação
Raquel de Oliveira, escritora e moradora da Rocinha Imagem: Divulgação

Júlia Dias Carneiro - Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

27/09/2017 11h34

Os novos confrontos na Rocinha, os tiroteios, as paredes esburacadas, o tanque na porta, o menino que viu morto na rua de olhos abertos, a sensação de que voltar para casa é "chegar ao inferno" --tudo isso vem dando uma sensação de déjà vu a Raquel de Oliveira.

"A história se repete", afirma a escritora e moradora da Rocinha, de 56 anos, dizendo-se triste pelo presente e "completamente cética" em relação ao futuro.

Raquel já esteve do outro lado dessa guerra, chefiando o tráfico da Rocinha, na zona sul do Rio, no fim dos anos 1980, "missão" herdada depois da morte de seu namorado, o traficante Ednaldo de Souza, o Naldo, que foi "dono do morro".

Ela revisita o passado de violência em seu primeiro romance, "A Número Um" (Casa da Palavra, 2015), uma obra de ficção inspirada em sua trajetória no tráfico, que incluiu três guerras na Rocinha e muitos "condenados à morte".

A mais recente guerra na maior favela do Rio, precipitada por uma disputa pelo controle do tráfico, levou a cúpula de segurança do Estado a pedir o apoio do Exército, com o envio de 950 homens das Forças Armadas à Rocinha na sexta-feira passada (22).

Ao ver mais um surto de violência, Raquel diz não sentir culpa nem arrependimento pelo envolvimento que teve na história violenta do local.

"Como eu poderia ir por outro caminho, se só tinha aquela estrada ali?", questiona, em entrevista à BBC Brasil. "Você cria a criança no meio de ladrões e quer que ela seja um empresário famoso de moda?"

Raquel de Oliveira - Divulgação - Divulgação
Ainda criança, Oliveira ganhou a primeira arma e passou a trabalhar no jogo do bicho
Imagem: Divulgação

Ela considera ter tido muita sorte por sair de um caminho que costuma ser sem volta, "um ponto final", graças a pessoas que a ajudaram a largar o tráfico e a superar o pesado vício em cocaína, uma luta diária que a acompanha há 12 anos.

Mas diz que a Rocinha agora está "entre a cruz e a espada", temendo que o vácuo dê margem à entrada de uma nova facção criminosa ou mesmo de milicianos.

Raquel conta que começou a usar drogas aos seis anos. Com essa idade também foi vítima de uma tentativa de abuso do pai, pedófilo, e a mãe passou a mantê-la trancada por dias a fio em seu barraco. Cheirava cola para enganar a fome, depois passou para a maconha. Aos 9 anos, foi vendida pela avó a um bicheiro do morro. Aos 11 anos, ganhou sua primeira arma e passou a trabalhar "intensamente" para o jogo do bicho.

Descobriu na escrita o caminho para superar a dependência. Na reabilitação, foi incentivada a escrever para conseguir extravasar suas emoções, e descobriu um prazer e um talento até então insuspeitos.

Depois disso, completou o ensino médio, se formou em pedagogia em 2014, publicou poesias e contos em coletâneas da Festa Literária das Periferias (Flup) - e agora está escrevendo um novo romance, a ser publicado pela Companhia das Letras, e comemora que seu "A Número Um" em breve sairá em Portugal e na França e teve os direitos comprados para o cinema - o roteiro do livro está em fase de produção e o longa-metragem deve ser lançado em 2019.

BBC Brasil - Como você passou essa última semana na Rocinha? Sua casa foi afetada pelas trocas de tiros?

Raquel de Oliveira - A minha casa fica numa linha difícil, um beco que é caminho (rota do tráfico). Teve confronto aqui e a cozinha foi atingida. As paredes ficaram todas esburacadas, quebrou janela, porta, furou o piso de cerâmica. Isso começou de madrugada, eram 5h da manhã, estávamos dormindo. Graças a Deus o quarto é nos fundos. A gente colheu as balas que ficaram na parede, tinha bem umas quinze. E tinha dois defuntos no beco. Agora tem um tanque de guerra no meu portão.

Essa é a casa da minha mãe, onde moro e onde nasci. Eu tenho outra casinha na Rua 2, que alugava para ter alguma renda. Deu perda total. Não sobrou nada, está tudo furado de bala. A família (de inquilinos) saiu e nem pagou o mês. São barracos, né, não são casas não. Sou muito pobre, minha filha. Tudo o que o tráfico me deu, a cocaína levou. Cheirei tudo.

Mas eu dei sorte, não furou a minha caixa d'água, não furou o fogão nem a geladeira, não pegou em ninguém. Está tudo bem, graças a Deus.

BBC Brasil - A senhora nasceu na Rocinha em 1961 e assumiu o tráfico na favela nos anos 1980 depois da morte do Naldo. Como se sente diante de um novo conflito em torno da disputa do poder no morro?

Oliveira - Essa semana foi bem difícil. A história se repete. Fico muito triste. Porque foi uma guerra anunciada, tanto do lado da polícia quanto da comunidade.

O bagulho é um barril de pólvora, vinha crescendo e deu nisso. Acaba explodindo. É uma tradição da Rocinha. Nada que é do mal coopera para o bem. A tendência é as coisas entrarem nos eixos e o tráfico de drogas ser restabelecido, como foi na minha época.

BBC Brasil - Qual é a história que você diz que se repete?

Oliveira - Essa história da entrada da polícia e do Exército aqui. Teve isso quando implantaram esse fracasso da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), teve isso quando o Nem foi preso (Antônio Bonfim Lopes, ex-chefe do tráfico na Rocinha, preso em 2011). Na minha época, nas operações Mosaico 1 e 2, o Exército tampou a favela (as operações Mosaico foram uma série de investidas em favelas cariocas no fim dos anos 1980, planejadas pela Polícia Federal para conter o crescimento do tráfico de entorpecentes). Hoje digo graças a Deus, porque foi preciso o apoio do Exército para apaziguar a situação. Entre aspas, né?

Enquanto não houver um programa sério para a questão da dependência química e da droga, não vamos a lugar nenhum. Vi um delegado falando que são os ricos de São Conrado que vêm comprar cocaína na Rocinha. P*rra nenhuma. Quem mantém o tráfico dentro da favela é o usuário regular, aquele que usa todo dia, que vende o liquidificador, a TV, o sapato, a criança, o corpo para comprar a droga. Esse é o usuário que banca o tráfico. Esse é o dinheiro que entra certinho todo dia, como um salário.

Eu conheço o Rogério 157 há muito tempo (Rogério Avelino da Silva, que estava chefiando o tráfico na Rocinha até a disputa que começou semana passada). Éramos conhecidos de vizinhança. Ele nem tinha vida no crime ainda, era um menino, normal. Com o tempo nessa posição (de chefe do tráfico), ele foi enlouquecendo. Fui a um churrasco em que ele apareceu muito transtornado, drogado, as pessoas ficaram com medo dele. A droga tira a noção de realidade.

BBC Brasil - Como foi para você encontrá-lo assim?

Oliveira - Nós conversamos, ele queria o meu livro. Eu vejo com uma certa dó. Não estou vitimizando ninguém. Mas são caminhos que a pessoa trilha que não têm volta.

Quem usa droga e vai para o tráfico, isso é um ponto final na vida do sujeito. Um sujeito como Rogério. Uma pobreza miserável. Virou ladrão. Começou a fumar maconha. Foi preso. Na cadeia, aceitou ajuda do tráfico. Se você tá na cadeia e aceita esse tipo de ajuda, tá ferrado. Porque quando sair de lá, tá escravo. Agora, se tivesse mais oportunidade para essas pessoas lá atrás, será que elas chegavam nesse ponto final? Será que as nossas cadeias estavam tão cheias?

Eu não faço apologia ao crime. Porque isso não é vida para ninguém. É aquela parada: pague para entrar, reze para sair. Eu até me emociono. Eu amo tanto a Rocinha. É um lugar tão rico e ao mesmo tempo tão miserável.

BBC Brasil - Você parou para pensar que, em outros tempos, poderia ter sido você por trás de parte daqueles tiros?

Oliveira - Eu tive momentos de déjà vu muito grande. Continuo tendo. Quando voltei para casa esses dias de ônibus, cheguei na Via Apia (na entrada da Rocinha) e pensei: "Chegamos no inferno". Vi o rosto pesadão dos outros passageiros. Eu tinha essa sensação quando estava lutando para parar de usar droga. Em 2009, eu passava o dia no tratamento intensivo, jantava e vinha embora. O ônibus entrava na Rua 1 e eu pensava, "cheguei no inferno".

É muito difícil ter a sorte que tive de superar o uso de drogas, de encontrar a recuperação, de trilhar o rumo da literatura, de encontrar pessoas maravilhosas como o Júlio Ludemir e o Écio Salles, da Flup (os idealizadores da Festa Literária das Periferias). Isso me deu um objetivo de viver, tive um despertar espiritual. Isso é raro.

BBC Brasil - Mas olhando para toda essa violência, você se arrepende de ter sido parte disso no passado?

Oliveira - Eu não tenho arrependimento. Eu sinto é uma dó desgraçada de uma vida desperdiçada. Eu tinha grandes possibilidades. Eu tenho QI (quociente de inteligência) de 180. Consegui terminar a faculdade agora, fiz Enem, gabaritei a prova de redação, fiz poesia a partir da recuperação de drogas (Raquel começou a escrever durante o tratamento para superar o vício). Se eu tivesse tido uma estrutura familiar saudável e uma boa educação, onde eu estaria hoje?

Agora, eu não tenho arrependimento. Eu agi conforme a lei que eu conhecia. Como eu poderia ir por outro caminho, se só tinha aquela estrada ali? À minha volta era só aquilo. Não tinha como, meu bem.

Você cria a criança no meio de ladrões e quer que ela seja um empresário famoso da moda? Você não consegue colher coisa boa se só planta coisa ruim. Se só dá um caminho para a pessoa andar. Vai ser pedra até o fim.

Que outro caminho teria para uma pessoa que passou por tudo que passei? Fui até feliz. Consegui tirar o melhor do pior. Dei uma sorte ferrada. Eu poderia estar lá até hoje, ou ter morrido de arma da mão. Ter dado a vida em troca de nada. Porque tudo isso é uma ilusão. É uma guerra inútil.

O arrependimento desgraçado que eu tenho é do uso de drogas na minha vida, que acabou com tudo que eu poderia ter.

BBC Brasil - Você teve uma história muito sofrida já desde criança. O que te levou a se envolver com drogas tão cedo?

Oliveira - Eu tive uma infância miserável. Meu pai era pedófilo. Isso eu fui descobrir com 6 anos, mas graças a Deus ele não conseguiu consumar o ato. A minha mãe era passiva e eu fiquei trancada dentro do barraco. Ficava até uma semana trancada dentro do barraco. Eu tinha 6 anos.

Comecei a sair pela janela e a andar em cima dos telhados da favela. A gente passava muita fome. Cheirava cola para enganar a fome. A maconha já rolava entre os mais velhos e a gente passou a fumar também.

Quando eu tinha nove anos, a minha avó me vendeu para o sistema político vigente na época, que era o jogo de bicho. Isso era uma prática comum aqui e no Morro da Providência. E aí eu dei uma sorte danada. Pela misericórdia eu não fui transformada em prostituta nem usada sexualmente por esse homem que me comprou. Ele teve que me assumir como padrinho. Aí entra um sincronismo religioso. Ogum nasceu na terra e deu a ordem. O bicheiro era muito ligado a São Jorge, que na umbanda é Ogum. Eu dei essa sorte, aconteceram uns sinais.

Quando eu tinha 11 anos, ganhei a primeira arma e fui trabalhar no barracão do bicho. Limpava as armas, depois passei a fazer a contabilidade, registrar os pagamentos dos agiotas, das putas, ia recolher o dinheiro. Até os 15 anos, trabalhei intensamente para o jogo de bicho.

BBC Brasil - E depois você foi para o tráfico. Como você compara os dias de hoje à época em que você, e antes o Naldo, comandavam a venda de drogas no morro?

Oliveira - Hoje tem toda uma outra tendência. Aquela coisa de heroísmo, do bandido Robin Hood, isso aí não existe mais. Na minha época a gente era tratado como herói, pela falta absoluta de assistência pública, de qualquer tipo de apoio do estado, dentro das favelas.

Mas a história se repete. É uma história perpétua de luta pelo poder. Não é a luta pela boca de fumo, pelos pontos de venda de drogas. A droga você vende em qualquer esquina, vai ali no Baixo Gávea que tem gente vendendo. A disputa é pelo poder. Vai muito além. Na minha época era pelo território. Hoje é por poder econômico.

BBC Brasil - Como você recebeu a entrada das Forças Armadas na sexta-feira passada?

Oliveira - Eu tive que ir para o meio do fogo cruzado para buscar a minha neta na creche. Quando eu saí, estava lotado de bandido aqui na entrada. E eu gritando, eu vou passar nessa p*rra! Mais pra baixo, tinha um grupo de policiais acuados.

Com o tiroteio, a gente nem se lembrou que era aniversário da minha mãe. Ela mora comigo. Fez 88 anos no dia 22 (a sexta-feira em que os militares chegaram à Rocinha). Quando a situação acalmou que a gente lembrou. Caramba! É aniversário da velha. Aí compramos um bolinho e um sorvetinho na padaria e cantamos um Parabéns. O pedreiro já tinha começado a tapar os buracos de tiros na cozinha.

Eu agradeço muito essa tomada do Exército, foi primordial. Se não tivesse acontecido, não teríamos conseguido um pouco de paz, um período de rendição.

Mas fico muito triste que os militares só vieram para acudir depois que a situação chegou lá a São Conrado. Quando um ônibus foi incendiado no asfalto o secretário de Segurança Pública (Roberto Sá) e o (governador Luiz Fernando) Pezão voltaram atrás e admitiram que a Rocinha precisava de intervenção militar. Enquanto isso a gente estava aqui vivendo o terror.

BBC Brasil - Em todos esses anos na Rocinha, você viu alguma melhora? Você tem esperança que as coisas melhorem no futuro?

Oliveira - Eu sou completamente cética. Não tenho esperança nenhuma de que vai acabar o tráfico de drogas. Sei o rumo que isso vai ter e só peço a Deus que não sejamos entregues nas mãos do Comando Vermelho (CV). Eu gostaria muito que a Rocinha continuasse nas mãos da ADA (Amigos dos Amigos), porque se for para o CV, o que vai entrar na favela é o crack, essa pá de cal (a ADA proíbe a venda da droga nas favelas que domina). Aí vou fazer minhas malas e sair daqui. Porque não quero ver o cenário de degradação que o crack traz.

A gente fica nessa situação, entre a cruz e a espada. E não pode orar a Deus e pedir para a polícia tomar conta, que vai virar milícia. Aí vai subir o morro e ter que pagar pedágio. Eu me sinto assim num cenário nostálgico, vendo a história se repetindo, se repetindo, se repetindo.