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De invisíveis a protagonistas: como o mundo mudou para LGBTs desde a estreia de Will & Grace, que volta à TV

Rafael Barifouse - Da BBC Brasil em São Paulo

28/09/2017 15h01

Quando a série Will & Grace estreou, em setembro de 1998, Will Truman (Erick McCormack), o advogado gay que é um dos personagens protagonistas, não podia se casar oficialmente com outro homem - a união entre pessoas do mesmo sexo só seria legalizada nos Estados Unidos anos depois, em 2015.

Ele também faria bem ao evitar viagens para África do Sul, Cabo Verde, Nepal ou Chile, países onde a homossexualidade ainda era ilegal na época. Seria bom tomar cuidado até em seu país, porque leis de sodomia criminalizavam essas relações sexuais no Texas, na Flórida, na Virgínia e em outros 11 Estados americanos até 2003.

Esses e outros fatos dão uma ideia de quanto mudou o mundo para pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgênero (LGBT) nos quase 20 anos entre a estreia do primeiro episódio da série e seu retorno à TV nos Estados Unidos nesta quinta-feira pela mesma emissora, a NBC - no Brasil, o programa é transmitido pelo canal Sony, e não há data para a chegada da nova temporada.

Will & Grace levou para o horário nobre americano a história de Will e da decoradora heterossexual Grace Adler (Debra Messing), melhores amigos e, em vários episódios, companheiros de apartamento, além de Jack McFarland (Sean Hayes), um ator gay, e da socialite Karen Walker (Megan Mullally).

Ao longo de oito temporadas, que lhe renderam 16 prêmios Emmy, ajudou a mudar fora da tela o tratamento a LGBTs, que, pouco a pouco, ampliaram o rol de direitos conquistados.

O próprio programa é considerado agente desta mudança. Joe Biden, ex-vice-presidente americano, declarou à emissora NBC que o show "fez mais para educar o público americano" sobre questões LGBT "do qualquer outra coisa feita até então".

Pelo mesmo motivo, o Instituto Smithsonian incluiu o seriado na coleção de seu museu que trata da história LGBT. O programa foi "ousado e pioneiro", disse o curador Dwight Bowers na época, ao usar a comédia para "familiarizar o telespectador com a cultura gay" e, assim, combater a intolerância.

"Foi emblemático ter um seriado de sucesso gigantesco nos representando", diz o empresário e ativista André Fischer, criador do site e do festival de filmes Mix Brasil, voltados para o universo LGBT. "Gays eram retratados na série de formas que iam além do estereótipo. Isso acabou com preconceitos."

Valor simbólico

Se Will não podia se casar em 1998, na sua volta à TV o personagem não só fez isso, como se divorciou - algo possível porque o casamento gay foi legalizado nos Estados Unidos e em mais 21 países, entre eles o Brasil, onde cartórios reconhecem uniões civis homoafetivas desde 2013.

No fim dos anos 1990, esse tipo de casamento não era permitido por lei em nenhuma parte do mundo - a Dinamarca era onde se chegava mais próximo disso com a "parceria registrada", que tinha os mesmos efeitos legais da união heterossexual, mas excluía o direito à adoção e à custódia conjunta de crianças.

A Holanda foi pioneira ao legalizar o casamento gay em 2001. "Além do aspecto prático, fazer isso tem uma dimensão simbólica e moral", diz José Reinaldo Lopes, professor da Faculdade de Direito da USP e e coordenador do Grupo de Estudos e Direito em Sexualidade.

"Isso mostra que essa união tem o mesmo valor que a heteroafetiva, que um homossexual tem o mesmo valor de qualquer pessoa, independentemente do desejo sexual."

Outra mudança nestes quase 20 anos se deu na permissão para que gays, lésbicas, bissexuais e transexuais sirvam nas Forças Armadas. Até 1998, sete países - Austrália, Canadá, Suécia, Nova Zelândia, Israel, Holanda e Noruega - equiparavam direitos na área. Desde então, segundo o Centro para Estudos Estratégicos de Haia, ao menos 12 países fizeram o mesmo, entre eles Reino Unido, Bolívia, França e Alemanha.

Em algumas outras nações, como Estados Unidos, Uruguai, Argentina e África do Sul, caiu o veto para homossexuais, mas não para transexuais. No Brasil, não há legislação a respeito.

Pena de morte para homossexuais

Nesse tempo entre a estreia e a reestreia de Will & Grace, leis contra homossexualidade ou "atos homossexuais" foram abolidas em ao menos 25 países, segundo a International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA), alguns deles tão distintos entre si quanto Quirguistão e Estados Unidos ou Armênia e Panamá.

"Em 1998, fazia pouco tempo que a homossexualidade havia deixado de ser considerada patologia", diz a escritora e ativista transexual Helena Vieira, em referência a quando a Organização Mundial da Saúde retirou essa orientação sexual da lista internacional de doenças, em 1990.

"Então, havia um estigma mais arraigado e a crença de que uma pessoa poderia ser 'contagiada' pelo contato físico ou social. Isso foi se dissolvendo. Hoje, você dificilmente acha na rua alguém dizendo que gay tem de morrer. Pode dizer que não quer ver por perto, mas o discurso se amenizou."

No entanto, Will & Grace volta ao ar enquanto ainda existem 72 países onde uma pessoa ainda pode ser presa por se relacionar com outra do mesmo sexo - em oito, pode ser aplicada a pena de morte e em 14, a prisão perpétua.

Em contrapartida, a Organização das Nações Unidas hoje condena publicamente o preconceito contra o público LGBT. Isso não havia ocorrido até a série sair do ar, em maio de 2006 - a ONU publicaria em 2011 sua primeira resolução condenando a discriminação e apoiando a igualdade de direitos.

A série também retorna à televisão em um momento em que o principal líder religioso do mundo prega a tolerância a LGBTs.

Logo que assumiu, o papa Francisco declarou sobre os homossexuais: "Quem sou eu para julgar?", enquanto seu antecessor, Bento 16, chegou a dizer que o casamento homossexual ameaça o "futuro da humanidade".

Ainda que a Igreja Católica mantenha sua posição oficial de que a homossexualidade "contraria a lei natural", essa e outras manifestações do papa enviam uma mensagem diferente aos seus 1,3 bilhão de seguidores, diz Fischer.

"Ainda é uma posição conservadora, mas muda a forma como o assunto é tratado pelos fiéis. Deixa de ser uma aberração, e há um passe livre para a comunidade católica tratar de um tema até então proibido", afirma.

Visibilidade

Fischer e outros especialistas destacam ainda uma conquista importante ocorrida nas últimas duas décadas: a visibilidade. "A comunidade LGBT saiu das sombras, deixou ser quase invisível para ser protagonista de seriados, novelas", afirma o empresário.

"Isso mostra a uma pessoa que ela não está sozinha e que ela não precisa ficar trancada no armário. Por isso, é mais comum hoje ver casais homossexuais nas ruas sem medo de serem felizes."

Lopes, da USP, argumenta que a visibilidade "rompe com o gueto" e aproxima a comunidade LGBT da sociedade em geral. "Quanto mais esse público é familiar, há menos medo e preconceito."

Por sua vez, Helena Vieira afirma que, ao deixar de ser uma figura marginalizada, o público LGBT ganha status de "minoria social a ser defendida". "Entramos na agenda pública e do Estado, e isso reverbera na sociedade, mudando a forma que a homossexualidade é retratada. Até então, era apenas pelo viés da comédia ou da tragédia."

Mas quem acompanha essas mudanças ressalta que ainda são frágeis. "Não temos no Brasil, por exemplo, uma emenda constitucional sobre o casamento gay ou uma lei criminalizando a homofobia. Se não houver garantias, pode haver retrocesso", diz Vieira.

Lopes nota que, muitas vezes, essas mudanças vêm do Judiciário e não de parlamentares, e existem hoje discursos "muito fortes" de "grupos significativos" contra direitos já obtidos. "Por isso, é importante ter o reconhecimento pleno, pela via legislativa, da igualdade LGBT, que ainda está vulnerável a ataques violentos."

Em seu retorno, Will & Grace tentará contribuir, disse a atriz Debra Messing ao site Huffington Post, ampliando a forma como retrata esse público, falando de questões "trans, queer e de todos esses novos debates sobre identidade de gênero".

"Hoje, é um mundo novo em que ser gay e lésbica não é algo que as pessoas escondem como há quase 20 anos. Temos a oportunidade de celebrar todas as outras letras da sigla LGBT. Será incrível chegar ao fim dessa nova temporada e sentir que estamos tornando normal um grupo ainda pouco representado na televisão."