'Erga omnes' ou 'Stare decisis'? Um manual para entender a língua do STF
Foram mais de 10 horas de muitos "data venia" para tomar uma decisão que não seria "erga omnes" sobre se era "teratológico" o pedido da defesa do ex-presidente Lula por um habeas corpus, para evitar que ele fosse preso por corrupção e lavagem de dinheiro após ser condenado em segunda instância.
(Quer entender a frase acima? Vá ao final da reportagem!)
A decisão dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que negaram o habeas corpus a Lula, era aguardada por milhões de brasileiros, mas, na hora H, foi difícil entender exatamente o que eles queriam dizer.
Mas no Twitter, onde o julgamento foi transmitido ao vivo, as opiniões sobre o caso muitas vezes deram lugar a reclamações sobre a duração e o rebuscamento dos pronunciamentos. Alguns votos chegaram a durar uma hora e meia, e versões "reduzidas" para acelerar a sessão tinham pelo menos 40 minutos.
"Mesmo para nós que somos acostumados com a linguagem e estávamos sentados no sofá, foi difícil acompanhar. Os votos foram muito repetitivos", disse à BBC Brasil o escritor e juiz aposentado Albino de Brito Freire, autor do livro Manual do Juridiquês.
"E os ministros têm uma preocupação muito grande em não ofender os outros, ficam pedindo desculpas para discordar, usam termos em latim pra enfeitar o texto. É desnecessário."
O "juridiquês", segundo o professor de Direito Constitucional da FGV-SP Rubens Glezer, define não apenas os termos técnicos do Direito, mas também os vícios de linguagem de advogados, juízes, desembargadores e promotores.
"Eles usam frases invertidas, expressões antigas, palavras que nem estão nos textos das leis. Tem a ver com um certo elitismo que é comum já nas faculdades de Direito. Isso é um desserviço à qualidade do Judiciário", disse à BBC Brasil.
Mas será que daria para traduzir e resumir os posicionamentos dos ministros do Supremo em um parágrafo ou um tuíte, como sugerem alguns?
"Bastaria que eles dissessem: 'Eu acompanho o voto do relator' ou 'Sou sensível aos argumentos contrários, mas acompanho o voto do relator'. Não precisaria de toda aquela cena, aquela demonstração de erudição. Acho que essa publicidade toda inspira as vaidades", diz Freire.
Glezer, no entanto, discorda: "Acho que no Direito, tão importante quanto a decisão são as razões que aquele magistrado tem para se posicionar. O público em geral quer saber o resultado, mas, para o sistema jurídico, é preciso saber por que cada um votou daquele jeito. Porque você quer exigir que todos os casos semelhantes sejam tratados da mesma maneira".
"O problema é que os próprios ministros não são claros sobre sua argumentação para tomar uma decisão. Falam sobre assuntos irrelevantes, divagam. Às vezes uma fala de uma hora e meia só trata do caso nos últimos 10 minutos. É uma ineficiência do uso do tempo que é absurda", afirma.
Com a ajuda dos especialistas, a BBC Brasil esclareceu alguns dos termos e expressões usados no julgamento do STF:
Erga Omnes
Em latim, "para todos os homens". É uma decisão que vale para todos os casos semelhantes.
Em seu voto, a ministra Rosa Weber disse que se, o tribunal estivesse discutindo uma decisão válida para todos, ela seguiria a convicção. Ou seja, votaria para manter o acusado em liberdade até o fim de todos os recursos. Mas como este era apenas o caso de Lula, ela teria que seguir a decisão anterior do tribunal, que, em 2016, permitiu a prisão após a condenação em segunda instância.
Data venia
É uma espécie de "com a sua licença" em latim. Os magistrados costumam usar a expressão como "um modo educado de discordar" dos colegas, segundo Rubens Glezer.
Mas a expressão se tornou tão comum - e até um vício - que se transformou em outras como "pedindo venia" ou "com todas as venias". E até mesmo "Datíssima venia", uma mistura do latim com o português.
Habeas corpus
"Em latim, ao pé da letra, significa 'que tenhas o corpo', diz Albino Freire. É o pedido para evitar que uma pessoa o seja presa - como no caso de Lula, que pediu um habeas corpus preventivo - ou para soltá-la, se ela já estiver detida.
Stare decisis
A expressão, utilizada pela ministra Rosa Weber, vem da frase em latim "stare decisis et non quieta movere" (respeitar o que foi decidido e não mexer no que foi estabelecido).
"É uma cultura jurídica, muito comum nos EUA, em que um juiz respeita uma decisão pelo fato de que ela já foi tomada antes, não necessariamente porque concorda com ela. Porque considera que é mais importante ter estabilidade do que mudar toda hora", explica Glezer.
Teratologia
Na linguagem jurídica, significa "absurdo" ou "que não tem lógica". Muitos ministros do STF usaram a expressão para dizer que "não viam nada demais" na possibilidade de o ex-presidente ser preso, já que ele foi condenado em segunda instância.
Trânsito em julgado
Um processo que já teve decisão até a última instância, ou seja, não cabe mais recurso algum.
A decisão do tribunal foi justamente sobre se Lula poderia ser preso a partir de agora, quando seus advogados ainda podem recorrer de sua condenação pelo TRF-4, ou se ele poderia esperar o fim de todo o processo em liberdade. Algo que poderia levar anos.
Embargos declaratórios
Um recurso pedindo que um tribunal esclareça contradições ou pontos obscuros que existam em uma decisão.
Embargos dos embargos
Se a resposta que o tribunal der aos embargos declaratórios ainda for considerada contraditória ou pouco clara, os advogados podem pedir, em outro recurso, que eles também esclareçam esta resposta.
Acórdão
Documento que reúne a íntegra dos votos de cada ministro durante a decisão de um grupo de magistrados como o STF.
Colegiado
Órgãos em que as decisões sejam tomadas em grupos, como conselhos e comitês, são colegiados.
A ministra Rosa Weber disse que "respeitaria o colegiado" ou a "colegialidade", para sinalizar que seu voto obedeceria à decisão anterior dos magistrados do STF sobre a prisão após a segunda instância, em 2016.
Jurisprudência
É o histórico de decisões de uma Corte que vão em determinado sentido, ou seja, da interpretação que aquele tribunal deu a determinadas leis.
Por exemplo, se o STF decidiu em outros casos que um condenado em segunda instância poderia ser preso, esta é a jurisprudência da questão.
Súmula
É um apanhado da jurisprudência de uma questão. O ministro Dias Toffoli usou a expressão "súmula vinculante", para se referir a um resumo das decisões de um tribunal que obriga outros tribunais e juízes a seguir o mesmo entendimento.
Sua frase, no entanto, pode ser um pouco confusa: "Quando o tema volta ao plenário maior, ao pleno, eu entendo sempre reaberta a tese e a questão. Eu entendo que não há vinculação deste plenário sequer à súmula vinculante".
Isso quer dizer que, em sua opinião, a decisão anterior do STF pode ser revista e modificada, sem a obrigação de mantê-la no caso de Lula.
Estamento
"As prisões automáticas empoderam um estamento que já está por demais empoderado. O estamento dos delegados, dos promotores, dos juízes", disse o ministro Gilmar Mendes.
Ele votou a favor de conceder o habeas corpus a Lula, e usou, entre outras, a justificativa de que prendê-lo agora daria mais poder aos agentes da lei envolvidos na Lava Jato.
A expressão significa uma categoria de pessoas com grande influência e poder.
Fumus boni juris
A expressão em latim, que significa "fumaça do bom direito", foi usada inúmeras vezes pelo ministro Marco Aurélio Mello
"É o mínimo de possibilidade de que aquilo que se pede seja concedido, ou seja, de que a pessoa tenha direito ao que pede", explica Albino Freire.
Marco Aurélio, assim como os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello, argumentou a favor de conceder o habeas corpus a Lula.
*A primeira frase do texto, simplificada, diz: "Foram mais de 10 horas de muitos 'com licença' para tomar uma decisão que não seria 'para todos' sobre se era 'absurdo' o pedido da defesa do ex-presidente Lula por um habeas corpus, para evitar que ele fosse preso por corrupção e lavagem de dinheiro após ser condenado em segunda instância".
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