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O mundo assiste a uma nova Guerra Fria entre Rússia e Ocidente?

Jonathan Marcus - Especialista da BBC em defesa e segurança

08/04/2018 10h31

As relações entre a Rússia e o Ocidente vivem um dos momentos mais tensos dos últimos anos, sobretudo após o Reino Unido acusar Moscou pelo envenenamento de um ex-espião russo com gás nervoso em solo britânico.

A onda de apoio a Londres por parte de outros países ocidentais, que expulsaram diplomatas russos, despertou especulações a respeito de uma "nova Guerra Fria" --comparando o cenário atual à rivalidade militar e ideológica entre a União Soviética e os EUA entre os anos 1950 e 80.

Mas tal comparação pode ser enganosa.

"A Guerra Fria era uma competição resultante de um sistema (de mundo) bipolar, em que duas superpotências, ambas com vantagens militares e econômicas, competiam para moldar a política internacional", diz à BBC Michael Kofman, pesquisador-sênior do Centro de Análises Navais (CNA) e do centro de estudos Wilson Center.

Em contraste, segundo Kofman, a competição atual não deriva de um balanço de poder ou de uma ideologia por si só, mas sim de "decisões conscientes tomadas por líderes, das estratégias que eles perseguiram e de uma série de desentendimentos específicos na política internacional".

'Soft power limitado'

Então, ainda que Kaufman acredite que as tensões atuais possam ter desdobramentos significativos, a escala e a natureza do estremecimento não têm semelhança com a Guerra Fria - além disso, a Rússia não se encontra mais na posição de conseguir fundamentalmente alterar o equilíbrio de poder ou a estrutura dos atuais sistemas internacionais.

"Em resumo, as causas e características do conflito são diferentes", diz o pesquisador.

Durante a verdadeira Guerra Fria, havia uma paz armada na Europa, enquanto as batalhas corpo a corpo eram lutadas em locais como Angola, Cuba e Oriente Médio. Hoje, as linhas de batalha estão, em geral, muito mais próximas das fronteiras russas --em especial a Geórgia e a Ucrânia.

Vigora atualmente um equilíbrio de forças bem diferente entre Rússia e Ocidente. E Moscou tem um "soft power" (poder de persuasão e diplomacia) bastante limitado, desprovido de uma ideologia internacionalista atrativa para "vender" ao redor do mundo.

Se a Guerra Fria foi uma batalha de duas ideologias universalistas --o capitalismo e o comunismo-- pela dominação global, então como definir a competição atual entre Moscou e o Ocidente?

Kofman afirma que, para a Rússia, "a questão é a sobrevivência como potência na ordem internacional, além de um apego aos resquícios do império russo".

"Os líderes da Rússia estão desesperados para evitar mais fragmentação da influência e dos territórios russos", avalia Kofman. "Eles não veem forma de conseguir isso sem manter Estados-tampões e sem impor sua vontade aos vizinhos, de modo a garantir a segurança de sua fronteira."

Fica cada vez mais claro que a Rússia (assim como a China) não subscreveu aos alicerces liberais da ordem mundial pós-Guerra Fria. E não há forma de o Ocidente impor sua vontade a essas duas potências. Nesse sentido, a grande "política de potências" está de volta.

O papel do Ocidente

Mas muitos observadores afirmam que o Ocidente também tem responsabilidade pelas tensões atuais - e que difundir a ideia de uma nova Guerra Fria pode apenas piorar as coisas.

Lyle Goldstein, professor e pesquisador da Faculdade Naval de Guerra dos EUA, afirma que "muitos no Ocidente parecem ter sucumbido à chamada 'síndrome de ausência de inimigos' após a Guerra Fria. Muitos especialistas em segurança nacional parecem ansiar por ir além quando há uma ameaça simples e fácil de ser caracterizada".

A situação na Geórgia e na Ucrânia "parece oferecer a narrativa para uma nova Guerra Fria", diz Goldstein. "No entanto, essas situações são incrivelmente complicadas. E quem está familizarizado com a região entende que isso é resultado do rápido colapso da União Soviética com relação a sua identidade e questões de fronteira."

Nesse caso, que tipo de potência é a Rússia atualmente? Para Kofman, trata-se de "uma grande potência fraca". Ele diz que o país é "consistentemente subestimado por historicamente ficar para trás do Ocidente em tecnologia e sofisticação político-econômica, mas Moscou geralmente bate mais forte do que sua capacidade econômica pressupõe no que diz respeito ao sistema internacional".

Kofman não acha que a Rússia seja uma potência regional em decadência.

"Pelo contrário. De fato, após um período de balanceamento interno, reformas militares e modernização, a Rússia está mais capaz de resguardar seu 'quintal' histórico, projetando poder a outras regiões adjacentes e, como tem sido visto, avançando para impor castigos a adversários distantes por vias não militares."

Nos países da Otan (a aliança militar ocidental), fala-se muito em voltar a gastar mais em defesa para combater a chamada "concorrência dos colegas" --em outras palavras, a Rússia.

Mas em que sentido a Rússia é uma ameaça militar à Otan? Para Goldstein, as tropas russas são substancialmente mais fracas do que as de EUA e Otan. No entanto, ele acrescenta que "a Rússia investiu sabiamente nos últimos 15 anos, de modo a preservar alguns nichos de especialidade nos quais tem algumas vantagens".

Por exemplo, a Otan não tem uma contrapartida equivalente ao sistema tático nuclear russo Iskander, o que pode deixar comandantes ocidentais entre o dilema de capitular ou escalonar um eventual conflito. Moscou tem ainda impressionantes capacidades de artilharia e guerra eletrônica.

'Guerras cibernéticas e de escolha'

Mas é na área cibernética e na guerra de informações que as habilidades russas estão mais aparentes, configurando alguns dos principais desafios da atualidade.

Novamente, a imprensa e centros de estudos estão inundados de discussões sobre esse aparentemente novo fenômeno - a tal "guerra híbrida" (que vai além do conflito militar para empregar táticas como manipulação de informação, ataques cibernéticos ou financeiros, por exemplo), que deixa ainda mais difusas as linhas entre guerra e paz e virou algo em que Moscou é visto como o novo mestre.

Como nota Kaufman, "nenhuma grande potência é uma ameaça monocromática".

"A Rússia é tanto uma potência militar forte nos países vizinhos como tem a habilidade comprovada de conduzir uma guerra política e cibernética", diz.

Mas o pesquisador rechaça a fixação com a guerra híbrida, defendendo que o conceito é "apenas uma reação ininteligível do Ocidente, após décadas de guerras de escolha contra adversários irrisórios, para confrontar outra potência que tem habilidades no espectro completo de conflito".

Goldstein também acha problemática a fixação com a guerra híbrida. "O perigo real é o erro de cálculo que pode desencadear uma guerra incontrolável seja na Síria ou, mais perigosamente, na Ucrânia (ambos polos de influência russa)", opina ele.

'Ferramentas corretas'

Na Ucrânia, o conflito recente (opondo forças pró e contra Rússia no país e levando à anexação da Crimeia por parte de Moscou) acabou se mostrando uma "guerra real, com uso convencional da força", diz Goldstein.

De fato, ele argumenta que o motivo pelo qual a Otan e os EUA não contestaram a anexação não teve a ver com uma "guerra híbrida", mas sim com o equilíbrio militar em vigor e com o fato de a Crimeia e o leste da Ucrânia serem vistos como parte dos "interesses cruciais" da Rússia. O Kremlin, diz Goldstein, simplesmente desafiou a Otan.

Outro problema é que o Ocidente pode não estar usando as ferramentas corretas em seu esforço de influenciar o comportamento da Rússia. De fato, não há clareza quanto o que é esperado de Moscou.

"Simplesmente tentar conseguir que a Rússia 'pare' o que está fazendo ou se retire da política internacional, ou que capitule na Ucrânia, não é uma expectativa séria, para dizer o mínimo."

As recentes expulsões de diplomatas russos enviam uma mensagem de unidade e determinação no Ocidente, mas é improvável que elas mudem a opinião pública em Moscou. A maioria dos especialistas consultados pela BBC acredita que apenas questões de interesse econômico podem levar a Rússia a pesar o real custo de suas ações externas.

Mas, para além disso, a política ocidental ante Moscou tem de ser pensada desde o aspecto mais elementar, tendo em mente que as repercussões do colapso caótico da União Soviética ainda estão tendo desdobramentos, cerca de três décadas depois.