Brasileiro acha que artesanato é coisa de pobre, diz Ronaldo Fraga
O trabalho de bordadeiras da região da tragédia ambiental de Mariana (MG) é o foco da nova coleção do estilista mineiro Ronaldo Fraga, apresentada na 45ª edição da São Paulo Fashion Week, que acontece nesta semana.
Considerado um dos mais críticos estilistas brasileiros, ele defende a moda como "um ato político" e já trabalhou com outros temas atuais em suas coleções, como a questão dos refugiados, da transfobia e da sustentabilidade.
Na edição 2017 da semana de moda de São Paulo, em agosto, ele chegou a usar uma camiseta criticando as políticas ambientais do presidente Michel Temer. E, em edições anteriores do evento, recebeu tanto elogios por incentivar a diversidade ao levar idosos, deficientes e pessoas acima do peso para desfilar moda praia, como críticas dos que consideraram racista e de mau gosto o fato de ele ter enfeitado o cabelo de modelos com palha de aço.
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Pioneiro em desenvolver parcerias com comunidades artesãs para a produção de suas roupas, Fraga critica, em entrevista à BBC Brasil, o que vê como preconceito com os produtos artesanais nacionais. "O artesanato brasileiro é visto como coisa de pobre, feito para comprar para ajudar gente pobre", diz.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Sua nova coleção traz trabalhos das bordadeiras da região de Barra Longa, atingida diretamente pela tragédia em Mariana (em 2015, o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco inundou de lama diversas comunidades da cidade mineira). Há uma preocupação de que esse ofício se perca nesse local? Qual seu objetivo com isso?
Ronaldo Fraga - Gerar emprego e renda com reafirmação e apropriação cultural. É isso que faz com que mantenha-se o corpo e a musculatura do saber. E mais: que estimule a geração que está por vir a enxergar isso como valor.
BBC Brasil - Mas o artesanato brasileiro é visto dessa forma pela nossa sociedade? Há algum tipo de preconceito?
Fraga - Claro. Há muito preconceito do brasileiro com nosso artesanato. O artesanato brasileiro é visto como coisa de pobre, feito para comprar para ajudar gente pobre. As pessoas não têm a educação, o saber e a boa vontade para poder ter o mínimo de esforço em enxergar a ancestralidade, a formação de um povo ali. Isso é muito característico de um país colonizado, porque eternamente vai achar uma renda europeia infinitamente mais bonita do que uma renda brasileira, quando essa renda brasileira conta a história desse povo.
Esse bordado de Barra Lagoa por exemplo, ele veio para o Brasil através dos portugueses no século 18, nos áureos tempos (das cidades mineiras) de Mariana e Ouro Preto. E Barra Lagoa era o polo dessa produção. Após essa tragédia ambiental nós corremos o risco de uma tragédia cultural porque, estigmatizadas, essas pessoas estão largando suas terras, mudando de cidade. Corremos o risco de esse saber desaparecer. Então é preciso que as novas gerações entendam esse valor.
(...) Quando resolvi trabalhar com esse grupo de Mariana, falei: não quero reportar a tinta da tragédia. A marca da tragédia já está aí, você não precisa ir até lá. Mas nós vamos falar de uma população que, passada a tragédia, é estigmatizada por ter feito parte daquilo. As pessoas estão recebendo dinheiro para ir embora e deixar sua terra. Por isso, o risco de esses saberes desaparecerem é muito grande.
BBC Brasil - Você trata da moda como um vetor cultural. Mas a semana de moda de São Paulo também olha para o mercado. Há uma divisão entre a moda mais conceitual, artística e cultural e essa mais comercial?
Fraga - As pessoas costumam dizer: "moda é arte". E eu digo: "alto lá!". Nem sempre a moda é arte, nem sempre a gastronomia é arte, nem sempre a arquitetura é arte. Dependendendo de quem a faz ou a forma como é feita, ela pode ser arte. Mas nem é essa a questão que interessa. O que interessa é a moda ser entendida como cultura - isso é indiscutível. Então a moda que está sendo feita nas lojas de departamento, a moda que é feita por X ou Y: o que está sendo feito ali é cultura, porque o vestir é um documento eficiente do tempo.
(...) E em um país tão diverso como o Brasil é importante que uma semana de moda tenha essa diversidade. Eu acharia ruim se houvesse só o aspecto comercial e acho que as novas marcas que estão entrando na SPFW têm um apelo bem comercial, mas isso também é uma cara desse tempo. Basta olhar as escolas de moda, onde você esperaria ver algo novo, (mas) acontece o contrário: é justamente ali que os alunos estão reproduzindo vitrines de lojas internacionais.
BBC Brasil - Você já fez uma coleção inspirada na Zuzu Angel, estilista que usou a moda não apenas como cultura, mas como uma forma de fazer política, crítica. Hoje em dia, pensando no momento de crise que o Brasil enfrenta em diversos segmentos, inclusive o político, há espaço para essa discussão na nossa moda?
Fraga - Eu sempre defendi que o ato de vestir é um ato político, tanto para quem cria como para quem veste. E as minhas coleções têm delineado uma linha trajetória política.
Nós estamos vivendo um momento de ebulição, de mudança, de desenho de uma nova época, então acho quase impossível ignorar isso. E entender que não é essa política que fica em briga de partido não, entendeu? Temos que pensar a política de uma forma mais ampla.
BBC Brasil - Há uma outra questão "política" no universo da moda que é o consumo exacerbado, influenciado pelas marcas de fast fashion, muitas denunciadas por trabalho escravo. Você acha que isso vem sido discutido da maneira como deve na moda aqui do Brasil?
Fraga - Claro que não! E é muito difícil que seja porque a gente tem um déficit de educação e de cultura geral gigantesco. Como você vai dizer para uma menina pobre de 15 anos que quer um sapato de uma loja onde o par custa 20 reais e um vestidinho 30 reais que essas peças podem até não terem sido produzidas com mão de obra escrava no Brasil, mas na Ásia? Ela quer simplesmente esse vestido com o pouco dinheiro que tem.
(...) E mais: a gente não precisa de mais roupa. Se o mundo parasse de produzir roupas, a gente teria roupa para mais 300 anos. Então é preciso que a gente compre menos e de forma mais consciente. Quanto mais se produz, mais se polui, e esse é o impacto que a gente está gerando.
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