'Eu nasci em um país que não existe mais'
Eu sou de um país que não existe mais. No outono de 2011, duas décadas após seu colapso no início dos anos de 1990, eu parti em uma jornada para reencontrar a Iugoslávia. O fato de que o país onde eu nasci e me criei não existia no mapa não importava.
Na época, Nova York era minha base. Eu era uma andarilha incessante e profissional que ganhava a vida indo embora dos lugares. Havia um aparente glamour na minha vida de jornalista de viagens: num dia eu velejava em Galápagos, no próximo eu descansava em um bangalô construído sobre a água em Bora Bora.
Eu podia andar por uma viela de Lisboa ou viajar por estradas empoeiradas da Bolívia. Minha vida se voltou a ter experiências únicas na vida, mas de maneira bem regular.
E o que estava por trás das seguidas viagens era uma incômoda sensação de deslocamento. Eu pertencia a todo e nenhum lugar. E mesmo que soubesse que era uma benção não pertencer, não ficava em paz com aquilo. Por todas as minhas jornadas, sempre havia duas angustiantes perguntas: onde é meu lar? Este é o lugar?
Essa busca foi o que soprou vento às minhas velas. Em algum lugar distante, lá seria "O Lugar". Lá seria o "Meu Lar".
Crescendo em Zagreb - que foi a segunda maior cidade da Iugoslávia, hoje capital da Croácia - eu colecionava Smurfs. Eu tinha sete Barbies, todas com um longo cabelo loiro e brilhante, com exceção de uma que eu decidi que não seria loira, então, eu cortei seu cabelo com tesoura e pintei-o de preto com caneta.
Eu tinha um par de Nike rosa que meu pai trouxera de uma viagem de negócios ao México, em 1984, uma valorizada commodity. Na adolescência, assistia à série Barrados no Baile e me apaixonei pelo Dylan. Eu lia poesia de TS Eliot e escutava The Smiths. Meus pais discutiam muito, mas, apesar disso, eu tinha uma infância perfeitamente normal.
Decisão de partir
Quando a Iugoslávia entrou em colapso numa guerra cruel que durou boa parte dos anos 1990, o mundo encolheu ao meu redor. Com os desdobramentos do conflito, parecia que o teto estava a poucos centímetros de mim, e à medida que eu crescesse, ele bateria na minha cabeça, e não haveria outro lugar para ir.
Eu poderia bater, tentar fazer um buraco no teto, mas ao final não funcionaria. Eu ficaria presa, o topo da minha cabeça seria pressionado contra o teto. E em vez passar por isso, eu queria crescer sob o céu aberto, então, eu parti.
Não era uma refugiada. Não fui forçada a sair. Meu exílio em 1993 era auto-imposto. No entanto, mais de 15 anos depois, tendo vivido e viajado ao redor do mundo, eu sabia que não ficava em paz com partidas. Eu sentia que, de repente, da noite para o dia, alguém puxava o tapete sob meus pés e eu não tinha onde permanecer. Tudo o que eu tinha para me equilibrar era uma mistura de memórias desse país quase mítico, algumas das quais eu sequer tinha certeza se eram reais.
Então, tive uma ideia numa noite fria no meu apartamento do Brooklyn. Eu iria retraçar as fronteiras da minha antiga nação. Eu tentaria entender a sucessão de conflitos que começaram com a Eslovênia declarando a independência em 1991, a luta da Croácia pela independência que durou até 1995, a brutal guerra da Bósnia que oficialmente terminou com a assinatura do Acordo de Dayton, em 1995, e, em seguida, o bombardeio da Otan à Sérvia em 1999, devido à guerra no Kosovo.
Mas tantos anos e uma vida inteira depois, esse era um terreno desconhecido, uma antiga entidade política para a qual meu passaporte havia expirado há muito tempo. De qualquer forma, eu não estava interessada em mergulhar na política do passado. Eu queria capturar a emoção de um país perdido e seu legado deixado a seu povo, e a mim.
Eu tinha um orçamento limitado, grandes planos e medo do que eu poderia encontrar. Estava assustada de abrir a Caixa de Pandora cheia de ressentimentos e perdas trazidas pela guerra.
Voei para Zagreb em uma noite fria de outubro. Lá, eram 18h quando sentei no assento 39 da janela de um cambaleante ônibus de turismo em direção a Skopje, capital da Macedônia. Estava prestes a viajar 12 longas horas para onde ninguém esperava minha chegada no início da manhã seguinte.
Muitas pessoas acharam estranha minha viagem a todas as ex-repúblicas da Iugoslávia. "O que está te motivando nesta jornada?", perguntavam.
Conversas de café
Viajei por seis semanas, como planejado, quase uma semana em cada ex-república da Iugoslávia, agora países independentes: Croácia, Eslovênia, Sérvia, Montenegro, Bósnia e Herzegovina e Macedônia. (Pulei Kosovo, ex-província autônoma da Iugoslávia, por conta de restrições de tempo, orçamento e logística, não como uma afirmação política).
Eu levava alguns guias antigos, publicados antes da guerra civil que levou à queda da Iugoslávia. No caminho, conheci pessoas para o que chamava de "conversas de café". Tomar um kava (café) com alguém era o melhor ritual social da Iugoslávia. Na minha jornada, eu queria honrar essa tradição.
Depois de um dia e meio, eu logo fiquei mais interessada nas histórias que as pessoas compartilhavam comigo, e os guias turísticos foram para o fundo do meu mochilão.
Durante a viagem, eu esperei que ao longo do caminho alguém dissesse uma coisa que cristalizasse tudo: minha vida à deriva sem raízes e a morte cruel e lenta da Iugoslávia, que deixou uma geração inteira com uma sensação de persistente deslocamento.
Eu sabia que não estava sozinha em me sentir perdida, mas tinha de entender como os outros processavam a mesma experiência coletiva da nação fragmentada.
Certamente, alguém diria a frase surpreendente que eu buscava, com todas as pequenas sabedorias nela contidas. Eu olharia para uma rua, uma vilarejo ou uma clareira na floresta, e tudo se encaixaria. Eu finalmente teria a permissão de seguir em frente.
Nada disso aconteceu. Mas algo, sim. As histórias dos outros se tornaram a espinha dorsal da minha viagem.
Ao longo da minha jornada, conheci mais de 50 pessoas e gravei nossas "conversas de café". Sentei-me com paramilitares, filósofos, políticos e poetas. Tomei café com ativistas, artistas e atores. Joguei conversa fora com músicos, professores e trabalhadores de ONGs.
"Tenho que admitir, a Iugoslávia nunca terminou para mim. Tive um caso de nostalgia iugoslava", disse meu primeiro "encontro de café", Danche Chalovska, na minha primeira noite em Skopje. "A Iugoslávia é simplesmente parte do meu crescimento, é parte do que eu sou, e isto vai permanecer dessa forma".
Eu cheguei a Chalovska por meio de um amigo em comum em Nova York. Filha de Todor Chalovski, um famoso poeta macedônio, ela tinha sua própria presença poética. Cabelos descoloridos, rosto largo com feições fortes e olhos brilhantes, ela falava draga (querida) com frequência e logo colocou o braço sob o meu, como se fôssemos amigas que não nos víamos há muito tempo.
Numa noite excepcionalmente quente, eu vaguei pelas ruas de Stara ?aršija (Bazar Antigo), em Skopje. Vi quando um velho enxotou duas crianças ciganas e atravessei uma comunidade com construções de pedras onde artesãos estavam em frente às suas lojas de couro, cobre a tecidos; passei por tendas que vendiam apenas vestidos de casamento brilhantes e opanci - sapatos de couro tradicionais usados por camponeses do Sudeste da Europa.
Prato típico
De um pátio surgiu um cheiro tão forte que eu tive de segui-lo. Sob a sombra de plátanos e figueiras, duas mulheres de lenço na cabeça mexiam, com uma enorme colher de pau, um purê vermelho em uma panela grande.
Sabrije Elezi e Usnije Fetahi preparavam avjar, o onipresente relish balcânico feito de pimentões vermelhos assados. Tradicionalmente feito em meados do outono, a estação da pimenta, esse é um processo trabalhoso que envolve horas de preparação.
Sentamos no pátio sob as figueiras, revezando-nos para mexer a panela.
Usnije fez café turco, e, numa bandeja esculpida em madeira, Sabrije trouxe-nos slatko, a tradicional e extremamente doce compota de frutas ('slatko' literalmente significa doce). Essa foi feita de framboesas. Perguntei a Sabrije o que lembrava da Iugoslávia. "A vida era muito melhor antes", ela disse.
Enquanto minhas companhias de café falavam, eu escutava. Como uma terapeuta viajante, eu era cativada por seus contos, dando bicadas em meu 14º café do dia e perguntando sobre a Iugoslávia. Escutando, gravando, testemunhando emoções que surgiam, dando-lhes atenção…
Algumas conversas se tornaram políticas e acusatórias, oferecendo sua própria teoria sobre o colapso da Iugoslávia. Outras focaram em pedaços de vida pessoal: um amigo de infância que nunca mais viram; um membro distante da família. Havia raiva, melancolia, frustração, decepção, traição e uma sensação geral de que todos perdemos algo precioso. Eu continuava a ter relances de respostas, mas não "A Resposta".
Quando voltei para Nova York, peneirei todas as histórias. Como alguém que vasculha a praia em busca de itens valiosos, eu encontraria conchas que ainda guardavam o ruído do mar. Mas suas histórias me congelaram. Eu de repente fui tomada pela responsabilidade de ter que passar adiante o que eles compartilharam.
Às vezes na vida você começa a perseguir aquela grande história. Sete anos se passaram desde a busca que pensava ser capaz de curar minha condição de curiosa. Ao retraçar minhas raízes, encontraria aquela fugaz sensação de pertencimento. Encontraria uma conclusão para minha história com meu ex-país.
Mas sou basicamente a mesma (embora, claro, tenha mudado - e envelhecido). A jornada não apagou meu desejo de viajar, como esperava. Em vez disso, abriu-me uma janela íntima para a vida das pessoas antes, durante e depois da Iugoslávia.
E sete anos depois, estou começando a aceitar que meu lar é uma coisa que muda de forma, que pertencer é simplesmente ilusório e que o país que me criou é uma terra imaginária que foi, e não é mais, exceto na memória coletiva.
E às vezes a jornada é simplesmente isso, uma jornada. De volta para onde você começou.
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