Brasil recebe apenas 2% dos 2,3 milhões de venezuelanos expulsos pela crise
Ao longo dos últimos meses, a tensão entre moradores de Pacaraima (RR), de 10 mil habitantes, e migrantes venezuelanos escalou rapidamente. Fugindo da miséria deixada pela crise econômica da Venezuela, cerca de 500 pessoas chegam a cada dia na cidade brasileira que faz fronteira com o país governado por Nicolas Maduro, segundo estimativa da Polícia Federal. Pode parecer bastante, especialmente quando se considera a falta de infraestrutura em Pacaraima - uma das cidades mais pobres do país. Mas a realidade é que o Brasil não está entre os principais destinos dos migrantes venezuelanos.
Segundo a Organização Internacional para Migrações (OIM) - Agência das Nações Unidas para Migrações -, o Brasil recebeu apenas 2% dos 2,3 milhões de venezuelanos que deixaram o país fugindo da crise, que piorou significativamente a partir de 2015.
Relatório de julho de 2018 da OIM aponta que pelo menos 50 mil pessoas se fixaram no Brasil vindas da Venezuela até abril de 2018, um aumento de mais de 1.000% em relação a 2015. O número leva em conta pedidos de asilo e residência.
Apesar disso, o número de venezuelanos que o Brasil recebeu até agora é bem menor que o de nações que sequer fazem fronteira com a Venezuela. O Peru, por exemplo, recebeu 354 mil pessoas vindas da Venezuela até julho de 2018. O Chile, que é ainda mais distante geograficamente, abrigou 105,7 mil, e a Argentina, 95 mil.
Conforme a agência da ONU, mais da metade dos venezuelanos que cruzam a fronteira com o Brasil - 52% - pretendem ficar apenas transitoriamente. O destino final é algum outro país da América Latina.
Entre 25 de janeiro a 08 de março de 2018, a equipe da OIM realizou 3.516 entrevistas com migrantes nas cidades de Pacaraima e Boa Vista - as que concentram a maior parte de cidadãos venezuelanos. Dos que pretendem deixar o Brasil, 58% disseram que querem chegar à Argentina. E maioria dos que pretendem ficar no Brasil segue viagem para outras cidades do país.
Mais recentemente, alguns países da América do Sul anunciaram regras mais rígidas para a entrada de venezuelanos. Na semana passada, os governos do Peru e do Equador anunciaram que passarão a exigir apresentação de passaporte para a entrada dos migrantes. Até agora, era possível entrar apenas com documento de identidade.
O problema é que, por causa da crise e da carência de produtos básicos, obter um passaporte na Venezuela pode levar meses.
Os principais destinos dos venezuelanos
Colômbia, Estados Unidos e Espanha concentram 68% dos emigrantes venezuelanos, segundo o relatório da OIM.
A Colômbia que, assim como o Brasil faz fronteira com a Venezuela, é o destino mais procurado. O país já recebeu 870 mil venezuelanos até abril de 2018. Em 2015, o número era de 48 mil, o que mostra um aumento exponencial do fluxo migratório.
Até recentemente, os Estados Unidos eram um dos destinos preferidos dos venezuelanos - haviam recebido 290 mil pessoas vindas da Venezuela até 2016.
Ainda no governo de Hugo Chávez, diversos venezuelanos com recursos financeiros, principalmente empresários e profissionais liberais, passaram a planejar a saída do país diante da perspectiva de maior intervenção estatal e mudança para um regime de orientação socialista.
Grande parte deles foi para os Estados Unidos e para a Espanha (208 mil). "Entre as razões para isso está o fato de os Estados Unidos oferecerem oportunidades de trabalho para venezuelanos com qualificação profissional", explica o relatório da OIM assinado pelos pesquisadores Vanina Volodo e Ezequiel Toxidó.
"Já a Espanha garante canais legais para a obtenção de cidadania a cidadãos venezuelanos descendentes de espanhóis."
Os representantes da OIM destacam ainda que EUA e Espanha são destinos históricos de venezuelanos. A crise econômica do governo de Nicola Maduro está "diversificando" os destinos procurados por nacionais da Venezuela, daí o aumento do fluxo para nações da América do Sul.
A explicação dos pesquisadores para a preferência pela Colômbia é o fato de o país ser vizinho da Venezuela e ter políticas migratórias que facilitam a inserção dos migrantes. A Colômbia também leva vantagem na preferência dos venezuelanos que migram por terra por ser um país de língua espanhola, diferentemente dos outros dois países fronteiriços - Brasil e Guiana (onde a língua oficial é o inglês).
Além disso, há três cidades de fácil acesso pela fronteira colombiana - Cúcuta, Vila do Rosário e Arauca. No início do mês de agosto, o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, assinou um decreto concedendo permissão de permanência por dois anos a 442 mil imigrantes venezuelanos.
Concentração em uma única cidade
O acesso de migrantes venezuelanos por terra ao Brasil é mais difícil pela densidade de floresta amazônica na fronteira. A cidade mais acessível é Pacaraima (Roraima), que acaba concentrando a grande maioria dos migrantes que cruzam a linha entre Venezuela e Brasil.
O professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Maurício Santoro destaca que o número de venezuelanos recebidos pelo Brasil é menos de 10% que o recebido pela Colômbia. O problema, ele aponta, é que a porta de chegada dos migrantes é uma região pouco habitada e com ausência de infraestrutura adequada.
"Por azar, a nossa fronteira com a Venezuela se dá numa região onde a infraestrutura e muito precária e numa área pouco povoada. Então, a entrada de 50 mil venezuelanos cria um tipo de pressão política e sobre a infraestrutura que nunca aconteceria se eles estivessem chegando por São Paulo ou o Rio de Janeiro", disse.
"Isso também acontece em escala menor em algumas cidades da fronteira da Colômbia e do Equador."
Para Santoro, uma das medidas necessárias para reduzir a tensão na fronteira é dar agilidade ao programa federal de interiorização dos migrantes, para que sejam levados a outras cidades do país e tenham acesso a serviços de saúde e educação.
"A solução de médio prazo é a interiorização, para que sigam para as grandes cidades e os países vizinhos, já que muitos querem isso (seguir para um país hispânico). O programa de interiorização tem que ser algo mais constante, com fluxo maior de ônibus e aviões, porque senão a região de fronteira não vai dar vazão ao fluxo migratório."
O perfil do venezuelano que vai ao Brasil
Segundo Santoro, muitos venezuelanos que conseguem chegar a São Paulo e ao Rio de Janeiro têm boa qualificação profissional. Mas poucos conseguem trabalhar em suas áreas de especialização por causa da dificuldade em validar os diplomas universitários no Brasil.
"Vários venezuelanos que chegam aqui são pessoas que tinham os próprios negócios, que eram professores ou funcionários públicos. São pessoas que têm vontade de trabalhar e de abrir o próprio negócio. Alguns abriram serviços de alimentação para oferecer comida típica em eventos", conta.
"O grande desafio é a questão burocrática do reconhecimento do diploma, de fazer com que os títulos sejam reconhecidos."
Entre os venezuelanos que chegam por via terrestre a Pacaraima, 51% completaram o ensino médio e 26% possuem diploma universitário, segundo a Organização Internacional para Migrações. A maioria desses migrantes é relativamente jovem - 71% têm entre 20 e 49 anos - e do sexo masculino (quase 60%).
A OIM também destaca que, ao chegar ao Brasil, mesmo os mais qualificados profissionalmente enfrentam dificuldade para encontrar emprego.
Conforme a pesquisa da agência da ONU para migração, 82% das pessoas empregadas estão em postos de trabalho informais. E 83% recebem menos que um salário mínimo. "Percebe-se que o nível de escolaridade faz pouca diferença na empregabilidade em Roraima", diz a OIM.
Também há um número considerável de indígenas warao que cruzaram a fronteira entre 2015 e 2018 e estão em abrigos de Roraima, Amazonas e Pará.
Estimativa de janeiro de 2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos mostra que 370 indígenas warao estão em Boa Vista; outros 370, em Pacaraima (RR); 150, em Manaus (AM); 110, em Santarém; e 100, em Belém (PA).
Argentina, Uruguai e Chile têm recebido grande parte dos venezuelanos com maior nível de escolaridade, conforme o relatório da OIM. Já que nenhuma dessas três nações faz divisa com a Venezuela, a principal rota utilizada neste caso é a aérea.
"Mas muitos deles são explorados, em parte por conta da falta de reconhecimento dessa qualificação profissional e por causa do status legal deles, entre outras razões", afirmam os pesquisadores da OIM.
Medo da fome
O principal temor dos venezuelanos diante da perspectiva de ter de voltar para a Venezuela é a fome. Perguntados sobre o que aconteceria se retornassem ao país, 42% dos entrevistados na pesquisa feita pela OIM citaram a possibilidade de não ter acesso a alimentos. Outros 32%, citaram desemprego.
Mas a realidade no Brasil até agora não é muito melhor para quem chega a Pacaraima e Boa Vista. Quase 40% dos imigrantes ouvidos na pesquisa consomem menos de três refeições por dia. E menos de 50% têm acesso à educação no Brasil. O principal motivo mencionado para isso é a falta de documentação.
E os episódios de agressão e discriminação são cada vez mais frequentes. Conforme o levantamento da OIM, 38% dos entrevistados mencionaram terem sofrido algum tipo de violência - em 81% dos casos, foram atos de violência verbal, seguida por violência física (16%), e violência sexual (2%).
O estudo foi feito antes da pior fase da crise na fronteira, portanto, não levou em conta os episódios do último fim de semana, em que dezenas de venezuelanos tiveram pertences queimados e foram expulsos de Pacaraima.
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