4 falas de Bolsonaro sobre a ditadura que são refutadas por documentos oficiais
A ditadura militar produziu uma grande quantidade de documentos - antes sigilosos e hoje públicos - que confirmam as torturas e assassinatos cometidos pelo próprio Estado no Brasil entre 1964 e 1985.
"E eu não estou nem falando da Comissão da Verdade", diz o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em referência à fala do presidente Jair Bolsonaro que questionou o trabalho do colegiado que entre 2012 e 2014 ouviu testemunhas, vítimas e agentes da repressão e analisou documentos com o intuito de investigar as violações aos direitos humanos cometidas durante o regime.
Nesta terça-feira (30), Bolsonaro foi questionado sobre a conclusão da comissão a respeito da morte do pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que apontou que ele foi executado pelo regime ditatorial em 1974.
Antes disso, o presidente havia afirmado que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, então militante do grupo Ação Popular, fora morto pelos próprios correligionários.
Questionado então sobre as evidências que contrariam sua versão - para a qual não apresentou provas -, Bolsonaro respondeu: "Você acredita em Comissão da Verdade?".
Fico pontua que o presidente não é o primeiro a relativizar os abusos cometidos pela ditadura. A propaganda política e a censura durante o regime, ele ressalta, tinham entre os objetivos justamente esconder a violência cometida pelo Estado.
O material da época, que o historiador avaliou em sua pesquisa, mostra que 80% do conteúdo vetado pelos militares dizia respeito à repressão.
Ao lado da propaganda política do regime, que "vendia a imagem de um país próspero, do boom econômico", a censura teve influência direta na constituição da memória brasileira sobre a ditadura e explica, para o historiador, porque a lembrança do período não é tão traumática quanto é para os argentinos, por exemplo.
"Na Argentina, os militares falavam nos jornais que iam matar até o último comunista, enquanto os brasileiros tentavam negar a repressão e usavam a censura para isso."
Para ele, essa característica também ajuda a explicar porque as declarações do presidente - que chegou a afirmar, em entrevista ao programa Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, que o regime militar não foi ditadura e que a censura buscava evitar transmissão de ordens para crimes por grupos de esquerda - não geram uma comoção social e repúdio mais amplos entre os brasileiros.
A "negação da realidade" pelo presidente, diz o especialista, reforça o autoritarismo que ainda marca as relações sociais no Brasil e dificulta a consolidação da democracia no país, especialmente porque vem acompanhada de uma apologia à violência - como no caso da defesa ao coronel Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-CODI de São Paulo, elogiado por Bolsonaro.
A seguir, quatro falas do presidente que são refutadas por fatos históricos:
Morte de Vladimir Herzog
Em 2018, Bolsonaro disse em entrevista à RedeTV que não há provas de que o jornalista Vladimir Herzog tenha sido assassinado.
Herzog morreu nas instalações do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Internado) do Exército, em São Paulo, em outubro de 1975. Ele havia comparecido voluntariamente ao órgão para prestar esclarecimentos sobre seu vínculo com o PCB (Partido Comunista Brasileiro).
O Exército afirmou à época que Herzog se suicidou em sua cela e divulgou uma foto na qual o jornalista aparecia pendurado por uma corda.
Mas peritos a serviço da Comissão Nacional da Verdade examinaram os laudos da morte do jornalista. Eles analisaram a "existência de dois sulcos, ambos com reações vitais, no pescoço" de Herzog. Os peritos concluíram que Herzog foi inicialmente estrangulado e, em seguida, fixado em uma forca para simular um suicídio.
Membros da Congregação Israelita Paulista, responsáveis pelo funeral de Herzog, também foram ouvidos pela CNV e "atestaram evidências concretas da existência de torturas no corpo de Vladimir".
Desaparecimento de Fernando Santa Cruz
Na última segunda-feira (30/7), Bolsonaro disse que o então estudante Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB, foi morto por militantes do grupo esquerdista Ação Popular.
O presidente da República afirmou que membros da Ação Popular do Rio de Janeiro desconfiaram da decisão de Fernando de sair do Recife para se encontrar com a cúpula do grupo, já que ele era um afiliado menor, e, por isso, resolveram matar o jovem.
Mas um documento de 1978, originário do Ministério da Aeronáutica, reconhece que Santa Cruz foi preso no dia 22 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro. Ele havia sido visto pela última vez por sua família ao deixar a casa do irmão, o advogado Marcelo de Santa Cruz Oliveira, durante o carnaval de 1974.
Uma das hipóteses da comissão para o sumiço do corpo é que ele tenha sido incinerado em uma usina de açúcar em Campos dos Goytacazes (RJ) - versão endossada por um depoimento de Claudio Guerra, ex-delegado do DOPS-ES.
Desaparecimento de Rubens Paiva
Em 2012, quando era deputado federal, Bolsonaro disse no plenário da Câmara dos Deputados que o engenheiro e político Rubens Paiva foi morto por membros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo guerrilheiro que tinha entre seus comandantes o militar desertor Carlos Lamarca (1937-71).
Segundo Bolsonaro, os guerrilheiros suspeitaram que Rubens Paiva houvesse os denunciado ao ser preso pelo Exército. Quando ele foi solto, "foi capturado e justiçado (morto) pelo bando do Lamarca", disse Bolsonaro.
Porém, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), Rubens Paiva foi "executado em janeiro de 1971 por agentes de repressão do Estado".
Ele foi capturado em sua casa por seis militares armados com metralhadoras e levado para o Quartel da 3ª Zona Aérea, no Rio de Janeiro - um documento do DOI do 1º Exército confirma a passagem do engenheiro pelo local.
Cinco ex-militares (José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos) que atuaram na ocultação do cadáver de Rubens Paiva estão respondendo pelo crime, mas o processo foi suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Tortura sofrida por Miriam Leitão
Em 19 de julho, Bolsonaro comentou a prisão da jornalista Míriam Leitão durante a ditadura militar.
"Ela (Leitão) estava indo para a guerrilha do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira, mentira", afirmou o presidente.
A Comissão da Verdade, no entanto, diz que Leitão foi vítima de tortura com animais, "incluindo a utilização de uma jiboia pela equipe de interrogatório do DOI-CODI do 1º Exército, comandada pelo coronel Paulo Malhães".
Quando foi presa, Leitão era estudante universitária e militante do PCdoB. Ela diz que nunca integrou e nem considerou integrar a guerrilha do Araguaia, limitando-se a participar de reuniões, distribuir panfletos e pichar muros com mensagens contra a ditadura militar.
Leitão estava grávida quando sofreu as torturas.
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