Topo

O drama de Juan e das centenas de crianças venezuelanas que cruzam sozinhas a fronteira com o Brasil

Quase 400 crianças e adolescentes cruzaram a fronteira da Venezuela com o Brasil totalmente sozinhos entre agosto de 2018 e junho deste ano - CECLILIA TROMBESI/BBC
Quase 400 crianças e adolescentes cruzaram a fronteira da Venezuela com o Brasil totalmente sozinhos entre agosto de 2018 e junho deste ano Imagem: CECLILIA TROMBESI/BBC

Nathalia Passarinho

Da BBC News Brasil em Londres

08/09/2019 08h10

Com hematomas e arranhões, Juan*, de 9 anos, chegou completamente sozinho a Pacaraima, em dezembro, e foi encaminhado para um abrigo em Boa Vista. Ele é um dos 1.896 menores de idade que chegaram ao Brail desacompanhados ou sem o responsável legal de agosto de 2018 a junho deste ano.

Era 16 de dezembro de 2018. Cheio de hematomas e arranhões, Juan* apareceu desacompanhado no Centro de Triagem do Ministério do Desenvolvimento Social, em Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela.

Era a segunda vez que o garoto de nove anos tentava migrar sozinho para o Brasil. À funcionária brasileira que o atendeu ele contou que morava nas ruas da Venezuela, em Santa Elena de Uiarén, com os pais, em situação de miséria.

O que mais temia era voltar ao convívio dos parentes que, segundo o menino, o agrediam e lhe "negavam comida".

Juan  - CECILIA TROMBESI/BBC - CECILIA TROMBESI/BBC
Juan tentou por duas vezes migrar sozinho para o Brasil, fugindo da miséria na Venezuela e das agressões dos pais
Imagem: CECILIA TROMBESI/BBC

Juan foi encontrado vagando pelas ruas de Pacaraima, após cruzar a fronteira "sozinho e faminto", segundo relatório da equipe que atendeu a criança. Um senhor venezuelano o resgatou, deu abrigo e comida por uma noite e levou o menino ao centro de triagem, onde defensores públicos da União entrevistam e analisam cada caso de criança e adolescente que chega ao Brasil.

Encaminhado depois ao Conselho Tutelar de Pacaraima, o menino foi reconhecido por uma conselheira que confirmou que ele tentava migrar sozinho para o Brasil pela segunda vez, "pedindo ajuda para fugir dos maus-tratos dos pais".

Na primeira tentativa, foi devolvido à Venezuela e encaminhado ao Conselho Tutelar da cidade de Santa Elena, após os conselheiros venezuelanos garantirem às autoridades brasileiras que ele seria encaminhado para um abrigo.

Pelo visto, foi devolvido aos pais e à vida na rua.

"Observa-se inúmeras marcas no corpo da criança e ele afirma que são todas causadas pelas agressões físicas cometidas por seus pais", diz o relatório do comitê de triagem a que a BBC News Brasil teve acesso.

Para impedir que o menino fosse entregue novamente aos pais, os defensores federais o encaminharam para uma casa de acolhimento de crianças e adolescentes na capital de Roraima, "para que seja cuidado pela legislação brasileira".

Quase 2.000 crianças

Juan é uma das 1.896 crianças e adolescentes que, para fugir da violência e da miséria na Venezuela, cruzaram a fronteira até o Brasil sozinhos ou acompanhados de pessoas que não são seus responsáveis legais, entre agosto de 2018 e junho deste ano.

Quase 400 deles chegaram à cidade de Pacaraima totalmente desacompanhados, segundo dados inéditos obtidos pela BBC News Brasil junto à Defensoria Pública da União.

Esses números impressionam porque representam 52,8% do total de jovens venezuelanos com menos de 18 anos que migraram ao Brasil no período e foram atendidos pela Defensoria.

Destes, 11,8% são crianças e adolescentes que chegaram a Pacaraima completamente sozinhos. O restante, 41,7%, são menores que vieram acompanhados de adultos que não são seus responsáveis legais, como tios, irmãos, avós ou pessoas que simplesmente se apresentam como conhecidos ou amigos dos pais deles.

Desenhos feitos pelas criancas - Defensoria Pública - Defensoria Pública
Desenhos feitos pelas crianças acabaram pregados nas paredes do escritório onde defensores públicos atuam no atendimento aos venezuelanos que pedem refúgio no Bra
Imagem: Defensoria Pública

Enquanto são atendidas pelos funcionários do setor de triagem na fronteira do Brasil com a Venezuela, as crianças recebem papel e lápis de cera. Grande parte dos desenhos mostra o amor desses pequenos refugiados pela Venezuela e pelo Brasil, o país que escolheram como acolhida.

Mas a tarefa dos defensores em identificar a real situação da criança e o melhor destino para elas não é fácil. A falta de documentação é citada pelos funcionários brasileiros como uma das maiores dificuldades no atendimento dos menores que chegam ao Brasil.

"Mesmo nos casos em que a criança vem acompanhada dos pais, há a dificuldade de falta de documentação que comprove o parentesco. Nesses casos, é feito um trabalho de diálogo com as crianças e adolescentes, verificação e interlocução com outras pessoas para confirmar as informações", diz a secretária de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União, Lígia Prado da Rocha.

No total, 3.597 crianças e adolescentes venezuelanos cruzaram a fronteira até Pacaraima e foram atendidos pela Defensoria Pública da União de agosto de 2018 a junho de 2019.

Desses, 28% não carregavam qualquer documento ou cópia de identidade e 47% das crianças e adolescentes acompanhados do suposto pai ou mãe não tinham documentos que pudessem comprovar esse parentesco.

Especializado no atendimento de jovens refugiados, o juiz Paulo Fadigas, da Vara da Infância e Juventude de São Paulo, explica que a falta de documentação é um problema grave, porque há o risco de o adulto que se diz parente da criança não ter qualquer vínculo com o menor.

Na Venezuela, a escassez de produtos e a deterioração dos serviços públicos tem tornado a espera por um passaporte ou segunda via de documento extremamente longa. Além disso, o país não emite carteira de identidade para crianças menores de 9 anos.

"Quando o fluxo de migrantes e refugiados é muito grande, corre-se o risco de estabelecer casamentos ilegais ou adoções ilegais. Há casos de casamentos infantis. O homem diz que é tio, primo ou irmão, mas está explorando a criança ou adolescente", disse Fadigas à BBC News Brasil.

Qual é o perfil do menor que migra sozinho?

A defensora federal Lígia Prado da Rocha afirma que a maioria dos menores que chegam ao Brasil sozinhos, sem qualquer parente ou adulto responsável, tem entre 15 e 17 anos, e vem em busca de trabalho. Alguns moravam nas ruas ou em situação de miséria, enquanto outros querem juntar dinheiro para ajudar a família.

Mas há também alguns casos como o de Juan, de crianças com menos de 12 anos. "São casos mais pontuais. Algumas dessas crianças relatam maus tratos ou trabalho em condições desumanas", explica Rocha.

Outra situação delicada é quando a criança chega acompanhada de um adulto com quem não tem qualquer parentesco.

"É difícil apurar a intenção desse adulto com essa criança muito pequena. Nesse caso, a gente procede com a institucionalização da criança e, com relação ao adulto, é feito um procedimento de investigação para apurar as circunstâncias que o levaram ao convívio com a criança", diz a defensora.

Também chama a atenção o grande número de casais de adolescentes ou de garotas menores de idade em "união estável" ou "casadas" com homens mais velhos.

"Em Pacaraima, observa-se no dia a dia situações de adolescentes entre 14 e 16 anos acompanhados de supostos parceiros com grande diferença geracional ou de terceiros que não demonstram afeto ou vínculo familiar", diz relatório deste mês da Defensoria Pública da União.

Nesses casos, o trabalho dos defensores públicos e conselheiros tutelares é verificar se o adolescente não está sendo explorado, traficado ou submetido a uma relação contra a sua vontade.

"A gente conversa com o casal, verifica se há um vínculo afetivo. Se desconfiarmos da situação, principalmente se houver discrepância de idade, encaminhamos a menor para casas de acolhimento", explica Lígia Prado da Rocha.

Mariana, 16, 'mulher' de José, 34

Adolescentes no Brasil - REUTERS/GUADALUPE PARDO - REUTERS/GUADALUPE PARDO
Uma preocupação comum entre os adolescentes de 14 a 17 anos que chegam sozinhos ao Brasil é arrumar emprego para "sustentar" os pais e irmãos que ficaram na Venezuela
Imagem: REUTERS/GUADALUPE PARDO

Foi o caso de Mariana*, de 16 anos, que chegou grávida de sete meses ao posto de triagem de Pacaraima acompanhada do "suposto companheiro"- um homem de 34 anos. Logo as autoridades brasileiras perceberam algo estranho.

O homem disse aos funcionários da defensoria pública que os dois moravam em Caracas, capital venezuelana, e que estavam juntos havia oito meses. Segundo ele, o plano no Brasil era encontrar amigos em Manaus que haviam prometido ajudá-los a encontrar emprego.

Mas a história era repleta de lacunas e o casal não demonstrou ter um vínculo afetivo. "Quando questionados sobre os nomes dos familiares e amigos que iriam ajudá-los em Manaus, observa-se pequenas pausas, forte indício de história inverídica", diz o parecer da defensoria pública.

"Observa-se grande distância entre os dois. É importante relatar também que a adolescente está sempre buscando esperar o suposto companheiro falar e apenas concorda com as falas do mesmo", diz o relatório.

Os funcionários da defensoria também perceberam certo "temor" por parte da jovem em relação ao homem de 34 anos. "Quando é solicitada uma resposta, Mariana fala com dificuldades, outro indício de medo."

Neste caso, foi tomada a decisão de separar o casal e encaminhar a adolescente para o Conselho Tutelar de Pacaraima, para que fosse acolhida num abrigo de menores.

Mas há situações em que a diferença de idade não é grande e os defensores conseguem identificar vínculo afetivo.

Foi o que ocorreu quando entrevistaram Joana*, de 17 anos, e Mário*, de 18, no dia 22 de junho deste ano. Os dois disseram que estão casados há três anos e demonstraram naturalidade e afeto um com o outro.

As autoridades brasileiras decidiram, então, recomendar a emancipação da jovem para que, junto ao marido, pudesse fazer o pedido de refúgio e buscar trabalho no Brasil.

Adolescentes em busca de emprego

Uma preocupação comum entre os adolescentes de 14 a 17 anos que chegam sozinhos ao Brasil é arrumar emprego para "sustentar" os pais e irmãos que ficaram na Venezuela.

Nesses casos, os defensores avaliam a maturidade do adolescente para decidir se devem ser encaminhados para casas de acolhimento de menores de idade ou se podem ser emancipados. Também é feita uma busca por parentes que possam se responsabilizar pelo jovem no Brasil.

Juan*, de 15 anos, disse aos defensores, em 15 de outubro de 2018, que cruzou a fronteira para se juntar ao irmão, Marcos, de 20 anos. Ele relatou que a mãe "sofre violência doméstica do atual esposo", que é padrasto dos dois.

Adolescentes no Brasil - REUTERS/GUADALUPE PARDO - REUTERS/GUADALUPE PARDO
Uma preocupação comum entre os adolescentes de 14 a 17 anos que chegam sozinhos ao Brasil é arrumar emprego para "sustentar" os pais e irmãos que ficaram na Venezuela
Imagem: REUTERS/GUADALUPE PARDO

A vontade de se mudar para o Brasil é motivada pela vontade de "estudar e futuramente trabalhar e ajudar a mãe e os irmãos", conforme informações do relatório do subcomitê de triagem que atendeu o jovem.

Nesse caso, a defensoria recomendou que o irmão de 20 anos assumisse a guarda do menino de 15, para que os dois pudessem pedir refúgio e buscar oportunidades no Brasil.

"Os adolescentes, em geral, vêm buscar melhores condições de vida, trabalho, formas de sustentar a família que ficou na Venezuela", diz Lígia Prado da Rocha.

"Esse interesse por trabalhar tem que ser considerado, mas observando a legislação brasileira, que permite trabalho como menor aprendiz para maiores de 14 anos."

Alguns jovens, no entanto, enfrentam grande dificuldade para conseguir emprego formal no Brasil, especialmente porque a porta de entrada, Pacaraima, é uma cidade pobre de Roraima, que oferece poucas oportunidades de trabalho.

Para seguir viagem para outras regiões do Brasil, é preciso dinheiro e, em alguns casos, documentação.

Miguel*, de 17 anos, esbarrou nessas dificuldades quando cruzou a fronteira no início deste ano. Ele deixou, na cidade venezuelana de Anaco, os pais, irmãos e a esposa grávida de três meses.

O objetivo era trabalhar em Boa Vista, capital de Roraima, para enviar dinheiro para casa e "comprar o enxoval do bebê".

Mas, sem condições financeiras de seguir viagem nem documentação, passou a trabalhar como carregador no centro de Pacaraima.

"Durante a noite, ele dorme encima de um bilhar de um comércio, onde estão vivendo outros migrantes venezuelanos", diz relatório de 4 de março de 2019 da Defensoria Pública da União.

Dificuldade de acomodar tantos adolescentes

A defensora Lígia Prado da Rocha diz que Pacaraimba não possui casas de acolhimento de menores de idade. Portanto, as crianças desacompanhadas são encaminhadas para instituições em Boa Vista.

O número de migrantes continua a crescer e, segundo ela, será preciso ampliar a infraestrutura de acolhimento em Roraima para abrigar todos os menores que chegam via Pacaraima.

"Em Pacaraima, não tem acolhimento institucional. Tudo é feito em Boa Vista. Nosso maior desafio é a capacidade de o Estado atender essa quantidade de crianças e adolescentes", diz Rocha.

Um dos caminhos, diz ela, é tentar ampliar a rede de "famílias acolhedoras", que são brasileiros que se dispõem a receber jovens venezuelanos em suas casas.

O númer de migrantes venezuelanos em todo o mundo chegou a 4 milhões em junho de 2019. É a segunda população com maior diáspora, seguida pelos sírios. A Colômbia já recebeu mais de 1,3 milhão de migrantes. O Brasil recebeu 168 mil segundo dados da Organização Internacional para Migrações (OIM).

Antes africanos, agora Venezuelanos

Em São Paulo, há um departamento vinculado ao Tribunal de Justiça de São Paulo inteiramente dedicado a cuidar de crianças e adolescentes refugiados ou vítimas de tráfico de pessoas.

Criado em 2015, o órgão coordenado pelo juiz da Vara da Infância e Juventude Paulo Fadigas tem um nome grande: chama-se Setor Anexo de Atendimento de Crianças e Adolescentes Solicitantes de Refúgio e Vítimas Estrangeiras de Tráfico Internacional de Pessoas (Sancast).

Em quatro anos, ele atendeu 420 crianças estrangeiras que pediram refúgio no Brasil.

Até a crise venezuelana estourar, a grande maioria dos menores de idade que chegavam ao Brasil desacompanhados vinha da África, principalmente de Angola, Nigéria e da República Democrática do Congo disse o juiz à BBC News Brasil.

"Geralmente chegam indocumentados e em situação de grande vulnerabilidade, por vezes vítimas de traficantes internacionais de pessoas, que retêm seus documentos durante a jornada", conta Fadigas.

"Esses jovens de Angola, Nigéria e da República Democrática do Congo vêm de zonas de conflito armado, de escravidão, servidão. Uma das meninas foi estuprada 20 vezes. São crianças que carregam traumas muito diferentes dos jovens brasileiros e, por isso, é preciso tratamento psicológico especializado."

Os jovens encaminhados ao Sancast são levados a um abrigo no bairro da Penha, na capital paulista. Lá recebem tratamento psicológico e fazem aulas de português. Muitos querem começar a trabalhar o quanto antes para conquistar autonomia e sustentar as famílias nos seus países de origem.

Por isso, a Vara da Infância firmou parcerias com organismos internacionais e organizações não-governamentais para que ajudem a proporcionar treinamento e trabalho como menores aprendizes aos adolescentes com mais de 14 anos.

São Paulo, por ser a maior cidade brasileira, acaba sendo um dos destinos mais procurados pelos refugiados. Mas, diante da crise na Venezuela, o fluxo de adolescentes desacompanhados que migram e buscam refúgio no Brasil se deslocou para Roraima.

Fadigas explica que não há previsão legal para a transferência de jovens e adolescentes do sistema de Conselho Tutelar de um Estado para outro.

"Sem lei, nenhum município é obrigado a receber os refugiados que entraram por outro canto do país. E a tendência é não receber se não houver um aumento de receita. Isso cria empecilhos para o reassentamento de refugiados".

O juiz defende que a estrutura de assistência a refugiados criada em São Paulo seja replicada em outras partes do país onde há migração de crianças desacompanhadas, como Roraima.

"Nós não tivemos nenhum gasto financeiro adicional com essa estrutura. Criamos uma especialização no atendimento e firmamos parcerias com diferentes órgãos e organizações. É possível replicar o modelo", diz.

Fadigas destaca que as crianças e adolescentes que escolhem o Brasil como refúgio costumam demonstrar grande carinho e apreço pelo novo país. E esse afeto é visível na forma como se dedicam na escola, no trabalho e no trato com as pessoas ao redor.

"O pessoal gosta muito dos solicitantes de refúgio. Esses jovens consideram o Brasil a terra de acolhida, então costumam ser muito prestativos e colaborativos apesar de toda a violência e trauma que sofreram."

* Os nomes das crianças foram trocados a fim de proteger a identidade delas.