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Coronavírus: por que os EUA estão 'fracassando' no combate à covid-19 

Lioman Lima - @liomanlima - BBC News Mundo

16/03/2020 08h32

O chefe do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA admitiu que o sistema de saúde do país "está fracassando" na forma como está respondendo aos novos casos de coronavírus.

Um homem que voltou aos Estados Unidos após uma viagem à China, em fevereiro, sentiu-se resfriado. Foi a uma sala de emergências em Miami, temendo ter sido contagiado pelo novo coronavírus durante sua viagem.

Depois de algumas análises, os médicos lhes deram uma boa notícia: era só um resfriado comum. Receitaram-lhe alguns medicamentos para o mal-estar e disseram que ele poderia ir para casa.

Mas uma carta que recebeu duas semanas depois quase o fez ficar doente de novo: ele devia ao hospital mais de US$ 3 mil (R$ 15 mil) pelos gastos com os exames que eles haviam feito.

À medida que o vírus se espalha pelo país e os contágios aumentam, acadêmicos, especialistas em saúde e organizações civis temem que o caso ? reportado primeiro pelo jornal Miami Herald ? não seja único.

O pior: a própria forma como o sistema de saúde americano ? o mais caro do mundo ? é desenhado contribui de forma indireta a uma maior expansão de covid-19.

Nesta quinta, 12, o médico Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, admitiu que o sistema de saúde do país "está fracassando" na forma como está respondendo aos novos casos de coronavírus.

"O sistema não está realmente orientado ao que precisamos neste momento. É um fracasso. Vamos admiti-lo", disse a principal autoridade em infectologia do país em um audiência no Congresso.

Na semana passada, o governo de Donald Trump pediu mais de US$ 8 bilhões ao Congresso para enfrentar os efeitos do vírus, enquanto o Departamento de Saúde pediu mais de US$ 2,5 bilhões para monitorar e detectar os contágios, apoiar as gestões governamentais e locais e desenvolver vacinas e tratamentos.

Trump designou seu vice-presidente, Mike Pence ? sem nenhuma experiência em assuntos de saúde ? para comandar uma "tropa de choque" que executará as tarefas para combater o vírus no país.

No entanto, apesar da data, embora Trump tenha anunciado o veto à chegada de estrangeiros de 26 países europeus e numerosas medidas econômicas tenham sido adiantadas para tentar acalmar os mercados e estabilizar a Bolsa, não se sabe qual é o plano concreto do governo para tentar lidar com o vírus a partir de seu sistema de saúde pública.

"Nunca se está preparado para um vírus como esse, e creio que nenhum país estava. Mas é certo que no caso dos Estados Unidos a resposta não foi suficientemente rápida", diz à BBC Alex Greninger, especialista em virologia da Universidade de Washington.

O problema com o número de casos

Um dos fatos mais desconcertantes para a comunidade científica americana é o número de casos reportados oficialmente pelas autoridades de saúde.

"O que acontece agora é que não sabemos quantos casos realmente há no país", diz William Schaffner, professor de Medicina Preventiva e Doenças Infecciosas da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, nos EUA.

Segundo os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a organização de saúde pública estatal encarregada do monitoramento do vírus, até esta sexta, 13 de março, 1,7 mil novos casos de coronavírus haviam sido reportados nos EUA. No total, 41 pessoas morreram.

Para especialistas, os problemas que os CDC apresentaram desde o início para monitorar os casos fazem com que os números não sejam confiáveis.

"Os números que os CDC dão são precisos, mas a pergunta é se eles refletem realmente a distribuição do coronavírus pelo país", sinaliza Schaffner.

Números compilados pela Universidade Johns Hopkins, no Estado de Maryland, divergem das estatísticas dos CDC. Para a JHU, o total de contaminados no país já chega a 3,7 mil com 69 mortes.

"Somos uma nação enorme. A doença está em apenas alguns lugares, como indicam os dados? Ou foi amplamente distribuída pelo país? É algo de que não temos certeza", afirma.

O problema com os exames

Os especialistas em saúde consultados pela BBC concordam que a principal causa pela qual não se tem estatísticas mais confiáveis da situação do coronavírus nos EUA está vinculada à escassez de exames para detectar os doentes de covid-19.

"O primeiro elemento para a contenção é ter disponíveis os testes que nos permitam isolar a população doente. É algo que demoramos muito a fazer", considera Greninger.

Krys Johnson, professora de Epidemiologia da Universidade de Temple, lembra que o problema começou quando os CDC decidiram que seriam eles quem fabricariam os dispositivos para examinar os potencialmente infectados.

"O resultado foi que, quando começaram a enviar os kits dos exames aos Estados, descobriu-se que não funcionavam bem, estavam defeituosos, e foi necessário mudá-los. Foi um processo que demorou e, portanto, grande parte dos Estados não pode começar a fazer esses exames até pouco tempo atrás", afirma.

Durante mais de um mês, cada Estado devia enviar as amostras de possíveis contágios por correio à sede dos CDC em Atlanta, os únicos autorizados para realizar os exames.

Assim, não foi até essa semana que os 50 Estados contaram com a capacidade técnica para realizar os exames, embora o número ainda seja limitado.

Segundo números oficiais, até terça passada só 79 laboratórios estatais ou de sistema de saúde pública contavam com a capacidade para fazer as provas em um país com mais 327 milhões de habitantes.

Enquanto isso, territórios ultramar, como Porto Rico, ainda não contavam com os dispositivos para oferecer esse serviço à população.

O governo de Porto Rico confirmou essa semana que na ilha há várias pessoas "potencialmente contagiadas", mas por que que tiveram que enviar as amostras à sede dos CDC em Atlanta, não puderam confirmar os casos à espera dos resultados oficiais.

Mais de três dias depois do anúncio, Porto Rico ainda estava esperando pela confirmação.

Johnson lembra que outra das limitações foi que os laboratórios privados não obtiveram as permissões federais para realizar as provas até o último 29 de fevereiro, o que limitou também o número de pessoas que poderiam acessar os exames para o coronavírus.

"Creio que, à medida que os exames começarem a se estender mais pelo país nos próximos dias, isso conduzirá a um aumento no número de casos positivos nos EUA", opina.

O problema com o acesso a exames

Schaffner, por sua vez, comenta que os problemas não terminaram com a distribuição dos kits dos exames.

"Infelizmente, o teste não está acessível para todas as pessoas suspeitas de terem o vírus. Até agora, existe uma lista de critérios determinados pelos CDC que um paciente deve cumprir para ser submetido a um exame para detectar a presença do coronavírus", indica.

Assim que Trump anunciou na semana passada que qualquer pessoa com suspeita de ter se contagiado poderia realizar um teste, o secretário de Saúde, Alex M. Azar, disse que, na verdade, só aqueles que foram previamente a um especialista poderiam fazê-lo.

De acordo com Schaffner, sob esse critério os médicos só poderiam prescrever os exames a pessoas com quadros clínicos de tosse, febre e problemas respiratórios notáveis, mas não a quem não apresente sintomas, embora tenham se encontrado em situações de risco.

"Na parte privada, os laboratórios já aceitam especímes de qualquer pessoa para sua análise de forma muito fácil, mas logicamente isso não é acessível a toda população porque tem um custo elevado para os planos de saúde", diz.

Em grande parte dos países da Europa e da Ásia afetados pela epidemia, os exames para detectar o vírus são feitos de forma gratuita a todas as pessoas suspeitas de terem se contagiado, inclusive antes de apresentar sintomas.

Em alguns países, como a Coreia do Sul ou a Alemanha, criou-se um mecanismo onde inclusive é possível fazer o exame nas pessoas dentro de seus carros.

"A ideia de que alguém poderia fazer os exames facilmente como fazem pessoas em outros países... Não estamos preparados para isso. Creio que deveríamos estar? Sim. Mas não estamos", disse Fauci, do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, nesta quinta.

De acordo com os epidemiologistas, esse fato em si poderia tornar-se um problema para conter o vírus.

"Um dos problemas com esse vírus é que ele tem um período de incubação de até duas semanas em que nem sempre as pessoas manifestam sintomas, mas é transmissível. Então, se for possível fazer exames para casos sobre os quais existam suspeitas sólidas, seria uma medida que poderia servir para deter a propagação do vírus", considera Greninger.

Até esta quarta se desconhecia o número de pessoas nos EUA que foram submetidas a exames para detectar o coronavírus.

Os CDC deixaram de publicar, sem explicação, no começo de março os números a respeito, mas então o número rondava apenas os 1,5 mil, quando havia passado mais de um mês depois dos primeiros contágios serem reportados.

Agora, só se publica o número dos exames analisados (até esta quarta, eram mais de 11 mil), mas esse dado não indica, no entanto, o número de pessoas, já que só um paciente pode fazer vários exames.

Para termos de comparação, a Coreia do Sul, onde os primeiros casos foram reportados na mesma data que nos EUA, foram testadas mais de 210 mil pessoas: uma média de 20 mil exames de coronavírus todos os dias, quantidade superior ao total de amostras que os EUA analisaram em mais de um mês.

No Reino Unido, onde 35 mortes em decorrência da doença foram reportadas, quase 40 mil contágios em potencial foram avaliados. Uma média de mais de mil exames por dia foram feitos.

A BBC tentou entrar em contato com os CDC para obter o número total de pessoas que foram testadas e os motivos para deixar de oferecer essa informação em sua página, mas não obteve resposta.

O problema com os seguros

O tema do acesso às provas para detectar o coronavírus nos EUA é acompanhado de outro mais complexo: seus custos em potencial e o acesso ao sistema de saúde dos que requerem atenção médica.

Mais de 27,5 milhões de americanos não têm acesso a seguros de saúde, segundo dados do Censo, o que poderia fazer com que muitos que apresentam os sintomas ou requerem tratamento não recorram a hospitais por medo dos custos elevados.

Mas inclusive para muitos que têm plano de saúde, o dinheiro com a "coparticipação" que devem desembolsar ? uma quantidade de dinheiro que as seguradoras não cobrem e que em algumas ocasiões pode ser de milhares de dólares ? também pode fazer com que muitos descartem a possibilidade de ir ao médico.

Segundo dados da ONG Commonwealth Fund, mais de 44 milhões de pessoas encontram-se neste último grupo de "seguro insuficiente".

"Alguns Estados estão cobrindo os custos associados aos exames. Se os pacientes apresentarem sintomas respiratórios graves como resultado de covid-19, aqueles que não têm plano de saúde ou têm mas em bases insuficiente serão os mais afetados pelas repercussões financeiras do tratamento", indica Johnson.

Uma pesquisa realizada em 2019 pela organização Gallup and West Health indicou que 26% dos americanos teriam adiado tratamentos médicos nos últimos 12 meses devido aos custos e que 19% deixaram de comprar os remédios indicados por motivos semelhantes.

Quase metade dos entrevistados responderam que estavam "preocupados" ou "extremamente preocupados" de que uma potencial situação de saúde em suas casas poderiam levá-los à falência.

Além disso, nos EUA há 10 milhões de imigrantes sem documentos e uma nova norma do governo de Trump que entrou em vigor no mês passado limita a possibilidade de residência no país a quem utilizar os seguros do governo ou outros benefícios de saúde.

"Nesse ponto da doença, creio que é importante que tomem as medidas para que toda a população suspeita de haver sido infectada possa fazer exames e recorrer ao autoisolamento para evitar contágios", opina Greninger.

Os problemas com o isolamento

De acordo com Johnson, o aumento potencial dos casos que serão registrados nos próximos dias deve requisitar não só ações do governo federal e dos Estados, senão também ações a nível individual.

"Nós, como nação, deveríamos fazer o que podemos fazer individualmente para proteger a saúde dos demais. Os que podem trabalhar de casa deveriam fazê-lo. Os que estão doentes deveriam optar por autoisolamento", indica.

As recomendações da especialista coincidem com as dos CDC, que sugerem que as empresas orientem seus empregados a ficarem em casa e trabalharem de forma remota ou a tirarem dias de licença se apresentarem os sintomas.

No entanto, segundo dados do Departamento do Trabalho, um quarto da força de trabalho não tem acesso a dias de doença remunerados.

A situação fica mais crítica para aqueles que não têm contratos fixos ou que são empregados de serviços como restaurantes e hotéis. E são, de forma contraditória, pessoas que têm contato direto com o público.

"A orientação de autoisolamento não se aplica às pessoas que não podem trabalhar de forma remota ou que não têm férias pagas, que, se fizessem isso, não teriam como manter-se economicamente", comenta Johnson.

A consequência, segundo a especialista, é que muitos continuarão trabalhando inclusive se tiverem sintomas respiratórios, o que só deve agravar a crise de saúde pública.

"Se toda a população dos EUA se contagiar de coronavírus nas próximas duas semanas, nosso sistema de atenção médica não poderá lidar com a enorme quantidade de hospitalizações e mortes que ocorrerão entre os mais suscetíveis ao vírus", opina.

Congressistas do partido Democrata pediram que o governo tome medidas para garantir dias de enfermidade aos doentes. Em sua mensagem de sexta, Trump indicou que anunciaria "medidas de emergência" nesse sentido, embora não tenha dito que tipo de trabalhadores seriam beneficiados.

"Para garantir que os trabalhadores americanos afetados pelo vírus possam ficar em casa sem temor ou dificuldades financeiras, tomarei medidas de emergência de imediato, sem precedentes, para proporcionar ajuda financeira. Isso será dirigido aos trabalhadores doentes, em quarentena ou atendidos por conta do coronavírus", afirmou.

O médico Joshua Sharfstein, de Prática de Saúde Pública na Universidade Johns Hopkins, diz à BBC que a situação atual requer atenção máxima, já que, se agora o sistema de saúde conta com os recursos para fazer frente à epidemia, o imprevisível do vírus faz com que não seja possível saber o que acontecerá em um futuro próximo.



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