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Cinemateca, para onde Bolsonaro quer enviar Regina Duarte, teve 113 mil DVDs danificados em enchente neste ano

Juliana Gragnani - @julianagragnani - Da BBC News Brasil em Londres

21/05/2020 15h14

Presidente e atriz anunciaram que ela deve ir para a instituição responsável por preservar acervo audiovisual brasileiro que sofre desmonte desde 2013.

A Cinemateca Brasileira, para onde o presidente Jair Bolsonaro quer enviar a atriz Regina Duarte, teve ao menos 113 mil cópias de DVDs danificadas em uma enchente que atingiu uma unidade da instituição em fevereiro deste ano.

A BBC News Brasil pediu via Lei de Acesso à Informação a quantidade de itens danificados pela enchente que em 9 e 10 de fevereiro deste ano atingiu um galpão da Cinemateca na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo.

Ali, há salas com parte do acervo da instituição, como cópias de longas e curtas-metragens de várias épocas. A Cinemateca é responsável por guardar, preservar e difundir a produção audiovisual brasileira.

A Secretaria do Audiovisual respondeu que 113.917 DVDs da Programadora Brasil sofreram danos. A coleção foi criada entre 2007 e 2013 para difundir o cinema brasileiro em pontos de exibição fora do circuito comercial, como escolas e cineclubes. Na época, em 2007, custou R$ 1,2 milhão para ser implantada, com orçamento de R$ 1,5 milhão no ano seguinte.

Foram danificados, por exemplo, 382 cópias de São Paulo, S/A (1965), de Luis Sérgio Person, 270 cópias de Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, 198 DVDs contendo O Homem do Sputnik (1959) e 250 cópias de Assim era a Atlântida (1975), ambos de Carlos Manga. Também foram danificadas 396 cópias de Os Óculos do Vovô, um filme mudo e o mais antigo de ficção brasileiro ainda preservado, de 1913.

Cópias de obras mais recentes também sofreram danos: 178 DVDs de Durval Discos (2002), de Anna Muylaert, 50 de Houve uma Vez Dois Verões (2002), de Jorge Furtado, 98 de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, entre outros.

A secretaria afirmou que, devido à pandemia do coronavírus, o processo de avaliação dos materiais danificados ainda estava em curso, "e mais detalhes dos materiais deteriorados demanda mais tempo e condições de trabalho que não coloquem em risco a saúde dos profissionais envolvidos".

Na época da enchente, a Secretaria do Audiovisual não divulgou quais e quantos itens haviam sido danificados. Na resposta agora à BBC News Brasil, informa que a água com esgoto do rio Pinheiros atingiu cerca de "1,08 metros de altura no primeiro galpão e salas, afetando várias áreas".

Essa unidade afetada pela enchente, na Vila Leopoldina, é um anexo da instituição. A sede principal da Cinemateca fica na Vila Clementino, zona sul de São Paulo.

"O investimento do dinheiro público foi para a enchente", diz Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Ohtake que dirigiu a instituição de 1992 a 1993, ao ser informado sobre os danos.

"É uma bruta perda, perdemos cópias de 100 mil filmes que o público poderia estar vendo. Um produto pronto, na caixa, dentro de uma Cinemateca, sem ser usado para um trabalho de difusão do cinema brasileiro. É jogar comida fora."

Nesta quarta (20/05), Bolsonaro anunciou o afastamento da atriz Regina Duarte do comando da Secretaria Especial de Cultura, e os dois comunicaram juntos que ela iria para a Cinemateca Brasileira.

Questionada via assessoria de imprensa pela BBC News Brasil, a Secretaria Especial da Cultura afirmou que os materiais atingidos na enchentes "não danificaram os originais, apenas cópias, não causando prejuízo dos acervos".

Programadora Brasil

A Programadora Brasil é um catálogo que foi produzido pela Secretaria do Audiovisual, a Cinemateca e o Centro Técnico Audiovisual entre 2006 e 2013 para ser distribuído pelo país, criando uma espécie de rede alternativa de cinema.

Consiste em um conjunto de 970 títulos de todas as regiões do Brasil, organizados em 295 DVDs com encartes. Alguns desses DVDs tiveram até quase mil cópias feitas.

O objetivo do projeto era difundir o cinema brasileiro, distribuindo os DVDs desses filmes - documentários, animações, filmes experimentais e de ficção - a centros culturais, escolas, universidades, cineclubes, espaços administrados por prefeituras, entre outras.

Segundo um relatório da Cinemateca de 2012, o projeto reuniu ao menos meio milhão de espectadores em sessões com títulos do seu catálogo. No final daquele ano, a Programadora Brasil contava com 1.848 pontos de exibição em mais de 850 municípios do país. O projeto, no entanto, foi interrompido em 2013.

Segundo a resposta da Secretaria do Audiovisual ao pedido da BBC News Brasil via Lei de Acesso à Informação, todo o catálogo da Programadora Brasil guardado na unidade da Vila Leopoldina pela Cinemateca foi comprometido na enchente. Apesar de afirmar que 113 mil cópias de DVDs foram danificadas, os números na planilha enviada como resposta ao pedido somam, na verdade, 120.012 DVDs afetados.

Desmonte

Os danos aos DVDs da Cinemateca em fevereiro deste ano ilustram o sucateamento da instituição para onde Regina Duarte será enviada.

A Cinemateca sofre um desmonte desde 2013, quando a então ministra da Cultura, Marta Suplicy, exonerou Carlos Magalhães, que dirigia a instituição. Na época, uma auditoria fez paralisar os repasses à SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca), organização que recebia repasses do governo por um convênio que previa gestão conjunta.

Neste meio tempo, a Cinemateca passou meses sem diretor, funcionou em épocas com um quinto do número original de funcionários, teve o laboratório de imagem e som (que faz preservação e restauração) parado, funcionários sem salário e uma gestão organizada a partir de remendos.

Quando ainda havia Ministério da Cultura, por exemplo, a pasta recorreu a convênios com organizações sociais ligadas a outros ministérios para gerir a Cinemateca, como a RNP (Rede Nacional de Ensino e Pesquisa), que tinha parcerias com o Ministério de Ciência e Tecnologia.

No meio disso tudo, a Cinemateca foi alvo de um incêndio, em fevereiro de 2016. Segundo o site da instituição, o fogo destruiu 731 dos 44 mil títulos guardados na Cinemateca.

Então, em 2018, durante a gestão de Sérgio Sá Leitão, ministro da Cultura do governo Michel Temer (PMDB), a administração da Cinemateca foi totalmente transferida para a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, que geriu a emissora pública TVE no Rio de Janeiro), em um ato que rompeu o vínculo direto com o governo federal.

Em dezembro do ano passado, no entanto, o contrato da Acerp com o Ministério da Educação foi interrompido, deixando a Cinemateca gerida por uma organização social ligada ao governo apenas por meio de um contrato emergencial.

Um abaixo-assinado de 15 de maio com 10 mil assinaturas até agora, entre elas ex-conselheiros da Cinemateca, como Lygia Fagundes Telles, Ismail Xavier e Carlos Augusto Calil, pede "socorro" à Cinemateca. "Sem os cuidados dos técnicos e as condições de conservação, todo o acervo se deteriorará de modo irreversível", diz o documento, citando esse processo por qual a Cinemateca vem passando desde 2013.

Os signatários também reclamam da enchente que deteriorou o acervo da Cinemateca: "A Secretaria do Audiovisual se absteve de suas responsabilidades, não esclareceu eventuais perdas, nem adotou medidas para proteger as coleções em perigo".

Regina na Cinemateca

Quando anunciou a ida de Regina à Cinemateca nesta quarta, Bolsonaro disse que a instituição era ao lado do apartamento da atriz, em São Paulo, e que lá ela seria feliz.

"Acabo de ganhar um presente, que é um sonho de qualquer pessoa de comunicação, de audiovisual, de cinema, de teatro... Um convite para fazer Cinemateca", disse Regina. "Ficar ali secretariando o governo dentro da Cultura na Cinemateca. Pode um presente melhor que esse? Obrigada, presidente", afirmou, dizendo que sentia falta da família, em São Paulo.

Não está claro como será a ida de Regina Duarte à Cinemateca - se ela será indicada a um cargo de confiança ou se será contratada pela OS para gerir a Cinemateca.

Organizações sociais são entidades privadas com autonomia administrativa que fazem acordos de gestão com governos, então a OS que gere a Cinemateca não precisaria contratar Regina, em teoria.

"A saída da Secretária Especial da Cultura do cargo se dará em Diário Oficial da União. No momento ainda não há confirmação oficial de que posição ela irá assumir, na possível ida à Cinematéca (sic)", respondeu a Secretaria Especial da Cultura por meio de sua assessoria de imprensa.

A pasta também informou que o processo de chamamento público que irá selecionar uma OS para manter e gerir a Cinemateca "encontra-se em andamento, finalizando a fase interna para publicação em breve" e que "ações nesse período serão atendimentos, no que couber, via contratos emergenciais, sem prejuízo ao acervo, bem como a continuidade de trabalho". A secretaria não respondeu sobre os prazos para tanto.

A notícia da ida de Regina Duarte à Cinemateca pegou contratados e antigos gestores da instituição de surpresa.

"Sem pensar muito, minha ideia inicial é que uma gestão de Regina Duarte à frente da Cinemateca não vai ser boa", diz Ohtake. "Eu não sei como vai ser com a Regina, mas se depender do Bolsonaro, vai ser absolutamente horroroso."

Para o cineasta João Batista de Andrade, que assumiu interinamente a pasta da Cultura durante o governo Temer, Regina "não tem nada a ver com a Cinemateca". "Ela não entende nada do que é cinema, do que a Cinemateca faz, e não tem prestígio do próprio governo que ela representa", diz.

"Vai fazer o que na Cinemateca, que está precisando de força? Ela não tem a menor força, nem perante o próprio governo. Regina e todos vão ser responsabilizados pelas perdas da Cinemateca nesse período. Por essa falência a que estão levando a Cinemateca."


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