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Por que parte da direita americana questiona veracidade do número de mortes por covid-19

Alessandra Corrêa - De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil

24/05/2020 14h52

Segundo pesquisa do Instituto Ipsos e do site Axios, 40% dos eleitores republicanos acreditam que o total de vítimas é menor do que o divulgado oficialmente.

À medida que aumenta a devastação causada pelo novo coronavírus nos Estados Unidos, e em um momento em que o país começa a reabrir sua economia, alguns setores da direita americana passaram a colocar em dúvida o número oficial de mortos.

Principal epicentro da pandemia no mundo, os Estados Unidos já registram mais de 1,6 milhão de casos e mais de 96 mil mortes por covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

Alguns círculos conservadores, porém, têm propagado a ideia de que os números estão sendo inflados, com a inclusão de qualquer pessoa que tenha morrido enquanto tinha covid-19, mesmo que a causa da morte não tenha sido a doença. Assim, doentes com sintomas leves, mortos por outras causas, estariam sendo incluídos nas estatísticas.

Essa teoria é amplamente rejeitada por especialistas em saúde, que ressaltam que as estatísticas provavelmente não refletem a magnitude da crise e que o número real de mortos deve ser ainda maior, já que muitos doentes morreram em casa, sem nunca terem sido diagnosticados nem incluídos nos dados oficiais.

"Há consenso no mundo médico e de saúde pública que as estimativas de mortalidade por covid-19 estão subestimadas", diz à BBC News Brasil o epidemiologista Felipe Lobelo, que atuou durante anos no CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) e hoje é professor de saúde global da Universidade Emory, em Atlanta.

Na semana passada, o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, Anthony Fauci, considerado o mais importante especialista em doenças infecciosas do país e um dos principais integrantes da força-tarefa criada pela Casa Branca para responder à pandemia, disse em depoimento ao Senado que o número real de mortos é "quase certamente mais alto" do que o registrado nas estatísticas oficiais.

Mas muitos conservadores e apoiadores do presidente Donald Trump vêm ignorando as afirmações dos especialistas médicos. Segundo pesquisa do Instituto Ipsos e do site Axios, 40% dos eleitores republicanos acreditam que o número de mortos por covid-19 é menor do que o divulgado oficialmente. Entre os democratas, o percentual é de apenas 7%.

Desconfiança

Alguns insinuam que os dados estariam sendo manipulados por motivos políticos, com o objetivo de prejudicar Trump, que busca a reeleição em novembro. Muitos desconfiam da cobertura da mídia ou da própria classe médica e científica.

Assim como ocorre em outros países, inclusive no Brasil, o argumento de que o número de mortes está sendo exagerado vem sendo adotado por muitos dos que se opõem às medidas de isolamento social e que pressionam pelo relaxamento das restrições impostas para conter o avanço do coronavírus.

Trump vem incentivando manifestantes que têm protestado em vários Estados pedindo a reabertura rápida da economia - alguns deles armados, e muitos com cartazes e camisetas com mensagens de apoio ao presidente.

Mas especialistas em saúde ressaltam que a pandemia ainda não está controlada, e que o afrouxamento das restrições cedo demais aumenta o risco de uma explosão no número de novos casos.

Desde o final de março, vários comentaristas de TV conservadores vêm lançando suspeitas sobre os números e as projeções de mortes nos Estados Unidos e insinuando que as regras federais para contabilizar esses dados estariam levando médicos ao redor do país a classificar como covid-19 mesmo mortes causadas por outros motivos.

No início de abril, o analista político Brit Hume, da Fox News, tuitou que os números de mortes em Nova York, o maior epicentro de covid-19 no país, eram inflados. "Eles não distinguem entre os que morrem com a doença e os que morrem da (doença)", escreveu, retuitando dados que mostravam que muitas das vítimas tinham também outras doenças consideradas de risco (que poderiam, portanto, ter sido a causa real da morte).

Dias depois, Hume tocou no assunto no programa do colega Tucker Carlson. Diante dos dados mencionados por Hume, Carlson insinuou que deveria haver um motivo pelo qual "as pessoas buscam um número de mortes incorreto" e disse que "quando jornalistas trabalham com números, eles às vezes têm uma agenda (política), infelizmente".

Laura Ingraham, também da Fox, recebeu em seu programa o médico e senador estadual republicano Scott Jensen, de Minnesota, que havia insinuado em redes sociais que o número de mortos estaria sendo aumentado, afirmando que alguns hospitais podem ganhar bônus financeiro para tratar de casos classificados como covid-19.

Metodologia

No início deste mês, Ingraham e outros colunistas conservadores também chamaram atenção nas redes sociais para o fato de que o CDC havia divulgado um número total de mortos no país menor do que o noticiado pela mídia e por outras fontes. Segundo esses comentaristas, o CDC havia "reduzido" sua estimativa.

Na verdade, o próprio CDC esclarece em seu site que essa disparidade é temporária e normal, porque seus números demoram mais do que os de outras fontes para serem atualizados, já que as certidões de óbito devem ser "processadas, codificadas e tabuladas" para serem incluídas nas estatísticas da agência.

Apesar desses esclarecimentos, a disparidade foi usada por muitos comentaristas para alimentar a desconfiança de que o coronavírus talvez não fosse tão mortal. Outro ponto citado é a recomendação do governo federal de que sejam incluídas nas estatísticas também as mortes cuja causa "presumida" seja covid-19.

No início da epidemia, somente eram incluídas nos dados oficiais mortes de pessoas testadas e com resultado positivo para covid-19. Mas, como havia escassez de testes na época, muitos óbitos não eram contabilizados, já que os pacientes não haviam sido testados. Doentes que morriam em casa, sem ter ido ao hospital, não eram incluídos.

Diante dessas falhas, em abril o CDC estabeleceu novas regras determinando que os Estados passassem a incluir nas estatísticas as vítimas que não haviam sido testadas, mas cuja causa provável de morte fosse covid-19.

As mudanças fizeram com que o número de mortes fosse revisado para cima em vários locais. Somente na cidade de Nova York, dados atualizados divulgados em abril incluíam mais de 3,7 mil mortes por covid-19 que antes haviam sido deixadas de fora.

Mortes em excesso

Quando o número total de mortes (por qualquer causa) desde o início da epidemia é comparado com o número de mortes historicamente registrado nesses mesmos meses, em anos anteriores, há um excesso de milhares de óbitos que, segundo especialistas, só é explicado por causa do coronavírus, mesmo que não esteja incluído nas estatísticas.

"Estamos vendo uma mortalidade em excesso (a princípio) inexplicada, que é claramente por causa da covid-19", diz Lobelo.

O epidemiologista observa que, em determinados casos, a certidão de óbito pode não refletir completamente a verdadeira razão da morte. Muitas vezes, em pessoas mortas por doença cardíaca, AVC, embolia pulmonar e outras causas, esses problemas podem ter sido provocados pelo coronavírus.

"Nós agora sabemos que (covid-19) não é apenas uma doença respiratória, mas também afeta o coração, a coagulação, afeta diferentes sistemas no corpo", ressalta Lobelo.

Apesar de, em algumas ocasiões, elogiar a contagem do número de mortes nos Estados Unidos como "muito correta", Trump tem demonstrado frustração com aumento no número oficial ocorrido após a mudança nas regras.

No mês passado, o presidente chegou a retuitar um comentário que mencionava "tentativas fracassadas de golpe", entre elas o processo de impeachment, e perguntava: "Vocês realmente pensam que esses lunáticos não iriam inflar a taxa de mortalidade subnotificando as taxas de infecção em uma tentativa de roubar a eleição?"

Segundo a imprensa americana, internamente Trump e alguns membros de sua equipe vêm questionando o cálculo das mortes por covid-19 e demonstrando preocupação de que os altos números possam prejudicá-lo politicamente. Segundo esses relatos, haveria pressão para que o CDC trabalhe com os Estados para revisar a metodologia.

Pelo menos dois Estados (Colorado e Virginia) já mudaram as regras nos últimos dias, passando a incluir somente pacientes cuja certidão de óbito estabeleça covid-19 como causa de morte.

Brasil

As suspeitas de alguns grupos em relação à taxa de mortalidade do coronavírus não é um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos. Alemanha, Inglaterra e Polônia estão entre os países que registraram, nos últimos dias, protestos em que parte dos manifestantes expressava desconfiança sobre a gravidade da pandemia.

No Brasil, que já é o terceiro país do mundo mais atingido pelo coronavírus, com mais de 310 mil casos confirmados e mais de 20 mil mortes, muitos manifestantes que se opõem ao isolamento social questionam a letalidade do vírus. O próprio presidente Jair Bolsonaro já acusou Estados de "inflarem o número de mortes".

Houve também casos recentes no Brasil de boatos falsos espalhados na internet para gerar dúvidas sobre a taxa de mortalidade. Uma dessas acusações falsas dizia que caixões vazios estavam sendo sepultados em alguns Estados.

Assim como nos Estados Unidos, especialistas médicos alertam que é provável que haja subnotificação de casos no Brasil e que o número real de mortos seja maior do que o registrado nas estatísticas oficiais.

Lobelo critica o fato de políticos em várias partes do mundo muitas vezes tentarem guiar "a interpretação de dados que talvez não entendam ou nos quais talvez não queiram acreditar porque é ruim para a sua agenda".

"Política não deve ser misturada com a resposta médica de saúde pública em uma pandemia. Mas, infelizmente, isso é o que estamos vendo em muitos países. Especialmente naqueles países que estão indo mal", afirma.


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