'Temo por uma guerra civil': os eleitores de Trump que saem armados para enfrentar protesto
Candidato à reeleição, republicano tenta virar desvantagem nas pesquisas acusando Joe Biden e os democratas de se aliarem a manifestantes que promoveriam caos nas cidades.
Aos 47 anos, o americano Robert Leeds é um homem com medo.
"Todo mundo teme que isso acabe em guerra civil. É o momento mais tenso da minha vida. Antigamente minha maior preocupação era se teríamos uma grande tempestade de neve", afirmou ele à BBC News Brasil, pouco depois de mencionar cenas que viu pela TV de violência em Portland, Oregon, onde no último fim de semana manifestantes por justiça racial e apoiadores do presidente Donald Trump se enfrentaram nas ruas.
Enquanto os primeiros lançavam objetos e queimavam bandeiras da campanha à reeleição do republicano, os militantes pró-Trump atiravam na multidão com armas de paintball e spray de pimenta. No fim da noite de sábado, 29, Aaron Danielson, integrante de um movimento de extrema direita, acabou assassinado a tiros, em condições ainda não esclarecidas pela polícia.
O presidente americano passou a fazer das imagens um de seus mais fortes argumentos para vencer a disputa eleitoral, marcada para 3 de novembro.
Trump acusa o prefeito democrata de Portland de ser incapaz de conter o caos, propala que o partido de seu adversário Joe Biden quer desmontar as forças policiais e se coloca como o único capaz de manter a lei e a ordem no país.
Em suas declarações, rarearam temas impopulares como a pandemia de coronavírus - que já matou 180 mil pessoas no país - ou a recessão econômica - com desemprego na casa de dois dígitos.
Assim como aconteceu na convenção republicana na última semana, o presidente tem se dedicado a propagar uma sensação de que os Estados Unidos vivem uma espécie de estado de sítio. Uma impressão falsa e baseada em episódios esparsos e geograficamente localizados de violência nas manifestações, apontam os especialistas.
Não é o que sente o eleitor do republicano.
"Eu acho que está fora de controle por causa desses políticos (democratas) que estão tentando fazer um acordo, diante de tudo que está acontecendo agora, com os manifestantes ou os saqueadores ou como você quiser chamá-los. Não acho que tentar ser legal com eles e dar tudo que eles querem vai funcionar. Obviamente não funcionou, você só vê mais e mais (violência), estão indo para os subúrbios e, você sabe, está chegando ao ponto onde, sem a polícia, porque querem tirar recurso da polícia, as únicas pessoas que serão capazes de te proteger são outras pessoas em sua comunidade", afirma Leeds, que admite que suas palavras ressoam as de Trump.
Em meados de junho, dia após a morte de George Floyd, quando o movimento Black Lives Matter já ocupava as ruas de mais de cem cidades americanas - de modo pacífico, na maior parte das vezes -, ele criou uma página no Facebook chamada "Cidadãos armados protegendo suas comunidades".
Ali, passou a compartilhar táticas de defesa armada com outros americanos ao redor do país.
Vigilantismo
Branco, sem diploma universitário, marceneiro que faz bicos como motorista de aplicativo e morador do subúrbio em uma cidade de 25 mil habitantes do Alabama, Leeds é o típico eleitor de Trump.
É também um exemplo das reações aos rumos que a disputa política tem tomado. Dono de uma pistola e de um fuzil AR-10, ele afirma estar disposto a sair de casa armado pra defender sua família, sua casa e seu bairro de saques e depredações.
E diz que não iria sozinho: "Eu conseguiria arregimentar algumas centenas de vizinhos", afirma o americano, que pretende votar em Trump mais uma vez e não vê no racismo um problema estrutural da sociedade americana.
Se Leeds até agora só ficou nos planos de reação, a 1,3 mil quilômetros ao norte dali, em Kenosha, Wisconsin, um advogado dono de um fuzil que teve ideia semelhante à de Leeds, de reunir homens armados para defender a cidade de um protesto Black Lives Matter, produziu um resultado trágico.
Kenosha vivia um repique dos protestos depois que um policial branco atirou sete vezes nas costas de Jacob Blake, negro e desarmado.
Nesse contexto, o post do advogado Kevin Mathewson obteve mais de três mil likes antes de ser retirado do ar pelo Facebook, mas efetivamente atraiu menos de 30 pessoas, conforme mostra a foto que ele mesmo postou em seu perfil em 25 de agosto. Uma das pessoas que se juntaram ao grupo era um adolescente de 17 anos.
Com um fuzil AR-15, ele atirou em ao menos três pessoas naquela noite, duas delas morreram. A BBC entrou em contato com Mathewson, mas ele não retornou os pedidos de entrevista da reportagem.
Mais armas do que pessoas
"É um fenômeno cada vez mais difundido que as pessoas em pequenas comunidades e cidades, como Kenosha, acabem contaminadas por este sentimento de ameaça racial. As cidades não estão conflagradas. Mesmo em Portland, onde tivemos essas questões, se você andar fora dos poucos locais do centro com manifestantes, você nem percebe que houve algum tipo de confronto ali", afirma Tarso Ramos, diretor-executivo do think tank Political Research Associates, em referência aos quase 4 mil episódios de linchamentos de pessoas negras nos Estados Unidos entre 1882 e 1968, acusadas na comunidade de algum crime ou malfeito e sumariamente assassinadas.
"Mas há um comportamento de multidão, uma histeria coletiva que pode levar a uma tragédia séria. É uma reminiscência de certa forma das mobilizações de multidões pró-linchamentos de negros que vimos na história americana."
O Political Research Associates têm feito um monitoramento da atuação de grupos armados de direita que ameacem ou coajam manifestantes por justiça racial.
Entre junho e julho desse ano, o grupo comprovou ao menos 187 situações de confronto parecidas com as vistas em Portland e Kenosha na última semana.
De acordo com Ramos, no entanto, o número de casos só aumenta e a própria organização tem tido dificuldade de dar conta do volume de ocorrências para checar e catalogar.
Segundo Alexander Ross, professor da Universidade Estadual de Portland que se dedica a analisar atividades da direita radical, entre os grupos armados nas ruas há desde organizações de extrema direita bem conhecidas e estabelecidas, como os paramilitares patrióticos Three Percenters ou o grupo de egressos das forças militares americanas Oath Keepers, passando por milícias recentemente criadas mas já permanentes, como o Defend East County, a cidadãos que possuem armas e se unem via redes sociais para uma ou algumas ações pontuais. Para ele, uma mistura explosiva que deve levar à escalada da violência.
"Se você está saindo com armas e não conhece as outras pessoas que estarão lá com você, e não há nenhum treinamento conjunto e uma organização real, então você é um amador e está apenas procurando problemas. Uma situação como essa tem todo o potencial para repetir o que houve em Kenosha ou ser ainda pior", avalia Ross.
De acordo com a pesquisa Small Arms Survey de 2018, os Estados Unidos têm mais armas do que habitantes: são 120,5 armas de fogo para cada 100 residentes, a maior taxa do mundo.
É o dobro do segundo país com maior concentração de armas, o Iêmen, que vive uma guerra civil e tem 52,8 armas para cada 100 pessoas. Comprar armas nos Estados Unidos é relativamente simples e, diferentemente do Brasil, todos os 50 Estados permitem o porte de arma a praticamente qualquer pessoa, embora alguns obriguem o cidadão a fazer um registro e a manter a arma oculta.
Em 25 Estados, qualquer americano pode, por lei, andar pela rua com sua arma carregada e exposta ao público.
O medo que move e o efeito multidão
Na interpretação de Ross e Ramos, por trás das ações desses homens, há sentimentos históricos que glorificam a ação de xerifes e a noção de que não há outra opção de vida para o americano a não ser manter sua própria comunidade segura, como afirmou Leeds.
Exemplar dessa ideia é uma anedota que o ex-presidente Ronald Reagan contou durante a convenção republicana de 1964.
"Dois amigos meus estavam conversando com um refugiado cubano, um homem de negócios que fugiu do regime de Fidel Castro. No meio da conversa, um dos meus amigos olhou pro outro e disse: 'nós (americanos) não sabemos como somos sortudos'. E o cubano parou e respondeu: 'Vocês são sortudos? Eu que tive um lugar para onde escapar'."
A mobilização desses sentimentos pelo partido republicano não é uma novidade. Quatro anos depois desse discurso de Reagan, Richard Nixon venceu as eleições de 1968 mobilizando a bandeira da lei e da ordem e da proteção dos subúrbios brancos contra manifestações eventualmente violentas que eclodiram no país após o assassinato do líder negro Martin Luther King em abril daquele ano.
O próprio Nixon definiu a estratégia: "As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa".
É esse o mecanismo que estaria em curso novamente agora, dessa vez pelas mãos de Trump.
"Existe um forte sentimento de insegurança que Trump está tentando mobilizar. E não apenas agora, na convenção, mas coisas que ele tem feito há anos e certamente nos meses desde o assassinato de Floyd (em maio)", afirma Ramos.
Uma das primeiras reações de Trump aos protestos, ainda em maio, foi retomar uma frase usada pelo comandante da polícia em Miami nos anos 1960 e considerada racista e insufladora de violência. "Quando os saques começam, os tiroteios começam", postou Trump.
Publicamente, Trump não tem condenado abertamente as ações violentas de grupos de direita. No Twitter, ele chamou seus apoiadores que participaram de atos violentos em Portland de "grandes patriotas".
Na convenção republicana, convidou o casal Mark e Patricia McCloskey, que empunhou armas contra manifestantes pacíficos em St. Louis, no Missouri, para chamá-los "esquerdistas e extremistas"e afirmar que a América precisa de "lei e ordem". Em entrevista coletiva nesta segunda-feira, Trump sugeriu que o adolescente em Kenosha pode ter agido em legítima defesa e não condenou sua ação.
"Foi uma situação interessante. Você viu a mesma filmagem que eu. E ele estava tentando fugir deles (manifestantes do Black Lives Matter). Eu acho que parece que ele caiu e então eles o atacaram com muita violência. E é algo que estamos analisando agora e que está sendo investigado. Mas acho que ele estava em apuros. Ele teria sido, provavelmente, teria sido morto, mas está sob investigação", afirmou Trump.
Logo após o incidente, Tucker Carlson, comentarista de política da rede Fox News e um dos apoiadores de Trump afirmou:
"Ficamos chocados com o fato de jovens de 17 anos com rifles terem decidido que precisavam manter a ordem quando ninguém mais o faria?" Seu comentário era uma repreensão aos prefeitos das cidades, comumente democratas.
Na mesma linha, nesta terça-feira (01/08), Trump disse:
"Muitas pessoas estão olhando para o que está acontecendo nessas cidades governadas pelos democratas e estão enojadas. Elas veem o que está acontecendo e não podem acreditar que isso está acontecendo em nosso país. Eu também não posso acreditar".
A declaração foi dada momentos antes de o presidente rumar para Kenosha, para visitar a área onde protestos ocorreram. Lá, ele parabenizou as forças policiais e não se encontrou com a família de Jacob Blake.
A visita aconteceu à revelia tanto do prefeito de Kenosha quanto do governador de Wisconsin, que expressaram publicamente o temor de que a presença de Trump alimentasse mais violência.
Paradoxalmente, enquanto se diz preocupado com a escalada de violência e de caos, Trump acredita ser o maior beneficiário eleitoral desses acontecimentos.
Na última quinta-feira, ao programa televisivo Fox and Friends, a então assessora de Trump, Kellyanne Conway, admitiu que o staff republicano vê vantagem nas agitações: "Quanto mais o caos, a anarquia, o vandalismo e a violência reinam, melhor é para a escolha muito clara de quem é o melhor em segurança pública, lei e ordem", afirmou Kellyanne.
Do lado democrata, a aposta é que a estratégia do presidente possa ser um tiro no próprio pé. Ao defender apenas um lado na disputa, ele alienaria todo o resto da população que gostaria de ver o presidente tomar medidas mais moderadas, para pacificar o ambiente.
Nos últimos meses, as pesquisas mostraram que quase 90% dos americanos acreditava que as palavras de Trump tendiam a criar mais tensão do que a dissipá-la.
O plano de Biden é óbvio: responsabilizar Trump pela situação de desordem social. "Alguém acredita que haverá menos violência na América se Donald Trump for reeleito? Estamos enfrentando várias crises - crises que, sob Donald Trump, continuaram se multiplicando", questionou Biden na segunda-feira.
Nos últimos sete dias, desde que o republicano colocou em marcha esse plano eleitoral, o agregado de pesquisas nacionais do site FiveThirtyEight mostra que a vantagem de Biden sobre ele caiu de 9,3 pontos percentuais para 7 pontos percentuais. Uma variação que pode se dever ou não à mudança de rota, dizem os especialistas.
Mas ao menos no eleitorado que lhe é mais fiel, o discurso de Trump já ganhou. Na segunda-feira, ele afirmou que poderia pacificar Portland, que já comparou à Venezuela, "em menos de uma hora", assim como faria com outras cidades, mas acusou prefeitos democratas de recusarem a presença da Guarda Nacional e do Exército, que Trump tem tentado enviar às cidades.
Para Leeds, o país viverá situações como essa por pelo menos mais dois meses, até a eleição.
"Parece que os prefeitos odeiam tanto o Trump que talvez seja só por causa do ódio que eles não querem aceitar qualquer ajuda e resolver o problema nas cidades", diz.
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