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'Não temos para onde ir': as famílias em ocupação de SP que temem o despejo no auge da pandemia

Terreno baldio da prefeitura de São Paulo começou a ser ocupado por pessoas que, no início da pandemia de covid-19, perderam seus empregos e foram despejadas - André Neves Sampaio
Terreno baldio da prefeitura de São Paulo começou a ser ocupado por pessoas que, no início da pandemia de covid-19, perderam seus empregos e foram despejadas Imagem: André Neves Sampaio

Manuela Azenha - De São Paulo para a BBC News Brasil

19/03/2021 16h50

Todo dia chega mais gente na ocupação Jardim Julieta. Há cerca de um ano, o terreno baldio na Zona Norte de São Paulo começou a ser ocupado por pessoas que perderam seus empregos e foram despejadas durante a pandemia de covid-19.

Valdirene Ferreira Frazão, de 48 anos, mudou-se para lá em maio. Carpiu e limpou o terreno acompanhada dos filhos, um rapaz de 25 anos e uma menina de 12.

Com o dinheiro do auxílio emergencial dado pelo governo federal, levantou em dois dias um barraco de madeira com cobertura de lona.

"Foi um sofrimento. Era um frio desgraçado ou um sol infernal sem ter onde se abrigar. A primeira noite passamos em claro porque chovia muito e entrava água dentro de casa. Agora, já está bonitinha, com telhas e piso", conta Valdirene.

Mas, em julho do ano passado, a Prefeitura, que é a dona do terreno, pediu na Justiça a reintegração de posse da área.

"Hoje tenho um abrigo, será que vou ter a semana que vem? Hoje, tenho comida pra alimentar minha família, será que vou ter no próximo mês?", diz Valdirene. "Se eu tiver que sair daqui, não tenho qualquer outra perspectiva."

valdirene - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Valdirene mudou-se para a ocupação em maio de 2020: 'A primeira noite passamos em claro porque chovia muito e entrava água dentro de casa. Agora já está bonitinha'
Imagem: Arquivo pessoal

Justiça pode julgar pedido de remoção a qualquer momento

Hoje, vivem no local 840 famílias, segundo a última contagem feita pela associação de moradores. A maioria é chefiada por mulheres.

O terreno pertence à SP Urbanismo, empresa da Prefeitura de São Paulo. A área e seus arredores foram incorporados a um projeto municipal que pretende construir empreendimentos residenciais e não residenciais em parceria com empresas privadas.

A Prefeitura diz que os terrenos serão destinados à construção de 1.580 unidades habitacionais, das quais 71% serão destinadas a famílias de baixa renda, além de "infraestrutura pública, equipamentos públicos, empreendimentos não residenciais privados (visando gerar emprego e renda na região) e prestação de serviços".

O Ministério Público de São Paulo enviou na época para a Prefeitura um documento no qual defendeu que as remoções e outras medidas administrativas e judiciais poderiam colocar nas ruas milhares de pessoas vulneráveis, contrariando as determinações de autoridades de saúde no combate à pandemia.

"Não se trata aqui de legitimar ocupações de áreas públicas, mas de salvaguardar vidas em tempos de epidemia letal de larga escala", disse o órgão na época.

Foi também o que recomendou o especialista da Organização das Nações Unidas em direitos para moradia, Balakrishnan Rajagopal.

"A atual crise de saúde exige medidas de emergência, incluindo uma moratória imediata em todos os despejos e remoções", afirmou ele.

Em agosto, a Prefeitura pediu o adiamento da reintegração de posse da área, devido à gravidade da pandemia de covid-19.

Mas, há um mês, o poder público pediu de novo à Justiça a remoção dos moradores. O caso pode ser julgado a qualquer momento pela juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda Pública, no pior momento da pandemia no país.

O que diz a Prefeitura

A advogada Fabiana Alves Rodrigues, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, representa os moradores da ocupação e diz que várias ações de reintegração de posse foram suspensas em 2020.

Mas depois elas foram cumpridas, quando a cidade de São Paulo saiu da fase vermelha do plano de combate à pandemia, a etapa que prevê as medidas mais rígidas, para quando o surto está crítico.

A cidade voltou para a fase vermelha no início de março, junto com todo o Estado. "Isso talvez faça com que as reintegrações sejam suspensas, assim como a recente decisão do Conselho Nacional de Justiça, que recomendou evitar despejos de vulneráveis durante a pandemia", diz Rodrigues.

"Mas já existe decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo para o cumprimento de liminar de reintegração de posse durante a pandemia, então acho difícil a juíza ir contra essa decisão."

A Prefeitura de São Paulo disse à BBC News Brasil que não fará a reintegração de posse do Jardim Julieta enquanto durar a situação emergencial causada pela pandemia, período estabelecido por decreto municipal e sem prazo para ser extinto.

Em nota, afirmou que os moradores do Jardim Julieta foram orientados sobre a desocupação pacífica da área e que há famílias em "situação de extrema vulnerabilidade" aguardando a construção das unidades habitacionais.

"A ocupação não gera prioridade de atendimento habitacional em detrimento de outras famílias que aguardam moradia", disse a Prefeitura.

Debora Ungaretti, pesquisadora do Observatório de Remoções, projeto mantido por pesquisadores para monitorar remoções em diferentes regiões metropolitanas do país, avalia que as unidades habitacionais que serão construídas não atendem a população removida.

"São para várias faixas de renda, inclusive de renda alta", afirma Ungaretti. Muitos imóveis terão que ser adquiridos por meio de empréstimos bancários com requisitos que impedem o acesso da maioria da população que mora ali, diz a pesquisadora.

"A PPP leva esse carimbo da habitação, de interesse público, para viabilizar outros projetos que não têm interesse público, como a concessão de áreas públicas para a concessionária definir qual o uso mais lucrativo. O edital é amplo, então, pode ser a construção de um shopping, por exemplo", argumenta.

Remoções na pandemia

Um levantamento da campanha Despejo Zero aponta que ao menos 9.155 famílias foram removidas durante a pandemia no Brasil e mais de 64.546 estão sob essa ameaça.

Os números são referentes apenas a remoções coletivas, como comunidades e ocupações, e não inclui casos individuais de despejo, como por falta do pagamento de aluguel, por exemplo.

O Estado com maior número de remoções foi o Amazonas, com 3.004 famílias. Isso porque em março de 2020 houve a desocupação do Monte Horebe, ocupação onde viviam 2.260 famílias na Zona Norte de Manaus. Em segundo lugar vem São Paulo, com 2.852 famílias.

A engenheira Talita Gonsales, uma das participantes da Despejo Zero, destaca que apenas Rio de Janeiro e Paraná conseguiram aprovar leis estaduais que suspendem as reintegrações.

Ainda de acordo com o levantamento, ao menos 31 comunidades tiveram as remoções suspensas, mas elas podem ser retomadas a qualquer momento.

Andreia Aparecida Castilho da Silva, de 46 anos, hoje vive no Jardim Julieta com as quatro filhas e o neto. Ela diz que não consegue cogitar a possibilidade de ter de sair dali.

"Não temos pra onde ir", diz Andreia. Ela conta que estava em depressão quando foi viver na ocupação. Cabeleireira há 25 anos, ficou sem trabalho na pandemia porque os salões fecharam. Pouco antes, o marido morreu de um infarto.

Andreia diz que gastou o que não tinha para enviar o corpo ao Piauí, onde a família do marido vive. "Eu não tinha um real. Estava no desespero de não saber se teria comida para dar pras minhas filhas no dia seguinte."

Ela morava de favor na casa de familiares e decidiu ir para a ocupação. Nos primeiros dias, Andreia diz que ficou sem comer e tomar banho.

"Só bebia café e água. Perdi 15 kg em 5 dias. Dormia num colchão com um cobertor ao relento enquanto construía a casa. Foi uma dificuldade conseguir madeira: se saísse pra pegar, outra pessoa já estava no terreno."

Depois de nove meses, construiu um banheiro. Até então, fazia as necessidades num balde e tomava banho de canequinha. "O que mais senti falta por meses foi de ter um chuveiro, lavar a cabeça, sentir a água correndo", conta.

Hoje, ela sobrevive com os R$ 130 que ganha do Bolsa Família e com salgadinhos e refrigerantes que vende.

Convive também com o temor da pandemia. "Minha família só tem a mim, a fortaleza de todos sou eu. Eu não posso ficar doente, senão tudo desmorona."

Andreia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Andreia sobrevive do Bolsa Família e da venda de salgadinhos e refrigerantes numa barraca montada por ela
Imagem: Arquivo pessoal

Incêndios, péssimas condições sanitárias e medo de pegar covid

Conforme mais gente foi chegando e o Jardim Julieta cresceu, começou a faltar espaço para tanta gente. A solução foi passar a acomodar nos terrenos de 50 m² duas famílias em vez de uma como antes.

A ocupação do Jardim Julieta já teve dois incêndios: um por causa de uma vela e que atingiu três barracos, e outro por um curto circuito em uma fiação e que destruiu duas casas com tudo que havia dentro.

"Foi tão triste, justo na véspera do Natal. Só não foi pior porque os barracos ao redor eram de alvenaria e seguraram o fogo", conta Valdirene, que faz parte da associação de moradores.

"Foi um desespero total. Ligamos pros bombeiros, mas eles não vinham. E não temos água forte o suficiente para apagar o fogo. Começamos a pegar areia do pessoal que estava construindo casa."

Valdirene diz que outra dificuldade é a infestação de animais peçonhentos, como aranhas e escorpiões. Ela conta ao menos seis pessoas até agora que foram hospitalizadas por causa de picadas de escorpião.

Apesar das condições sanitárias precárias, Valdirene diz não ter notícia de contaminados pela covid-19 na ocupação. Os moradores receberam 50 testes do posto de saúde mais próximo em outubro. Todos deram negativo.

Ela diz sentir muito medo de se infectar. Valdirene e o marido são diabéticos e têm pressão alta, dois fatores de risco para a covid-19. A isso se soma à incerteza quanto ao futuro.

"Temos centenas de crianças aqui, fora os idosos, transplantados e deficientes físicos. Se fizerem a reintegração de posse, o que farão com essas quase 2 mil pessoas?"