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Por ciúme, diarista tem corpo queimado e hoje ajuda outras mulheres: 'É importante ver sem o olhar do amor'

Simone Machado - De São José do Rio Preto (SP) para BBC News Brasil

16/12/2022 08h44

No primeiro semestre de 2022, foram registradas 31,3 mil denúncias e 169,6 mil violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres brasileiras

Era tarde 8 de setembro de 2018, uma sexta-feira. A diarista Marciane Pereira dos Santos, à época com 36 anos, chegava cansada do trabalho acompanhada dos dois filhos, de dois e cinco anos.

Antes mesmo de entrar na casa onde morava, no bairro Jardim Tropical, em Serra (ES), ela foi abordada pelo ex-marido, com quem foi casada por sete anos e havia se divorciado havia três meses após sucessivos episódios de violência psicológica.

Inconformado com o fim da relação, e morando ainda na mesma rua, o homem quis explicações de Marciane ao saber que ela estava iniciando uma nova relação. Para evitar discutir com o ex-companheiro na presença dos filhos, a diarista conta que foi até a casa de uma vizinha, onde deixou as crianças.

"Quando eu voltei para a minha casa, ele estava me esperando na porta e nós começamos a discutir. Ele veio para cima de mim com uma faca, jogou solvente em mim e ateou fogo. Não tive tempo de ter nenhuma reação, só me lembro de ver um clarão e meu corpo começou a pegar fogo", conta.

A diarista recorda que se jogou no chão e começou a rolar no asfalto na tentativa de apagar as chamas e logo em seguida, ao ouvir seus gritos de desesperos, vizinhos tentaram ajudá-la jogando água em seu corpo.

A doméstica teve queimaduras de segundo e terceiro graus no rosto, pescoço, tronco, pernas e braços. Cerca de 40% do seu corpo foi queimado.

"Eu fiquei consciente a todo tempo e só pensava nos meus filhos", diz.

Cinco meses de internação

Devido à gravidade das queimaduras, Marciane permaneceu três meses internada em coma na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), onde ficou entre a vida e a morte. Após acordar, ela ainda permaneceu mais dois meses internada em estado grave no centro de tratamento do Hospital Estadual Doutor Jayme Santos Neves.

A diarista passou por 18 cirurgias e teve a perna esquerda amputada devido à gravidade das queimaduras no local, por isso hoje ela se locomove com o auxílio de cadeira de rodas.

"Ainda devo passar por cirurgias plásticas para refazer o nariz, boca e orelhas. Além de procedimentos nos braços e mãos que vão ajudar a melhorar os meus movimentos, que ainda são bastante limitados. Já era para ter feito a cirurgia nos braços, mas na data do procedimento eu tive covid-19 e ainda não consegui remarcá-lo", explica.

"Apesar de o meu corpo estar diferente, eu nunca tive dificuldades em me olhar no espelho. A maior dificuldade são as limitações físicas que esse crime me trouxe, principalmente as dificuldades para cuidar de duas crianças", acrescenta.

Marciane é mãe de um menino, de seis anos, filho do homem que ateou fogo em seu corpo e de uma menina de 9 anos, fruto de um relacionamento anterior. No início da recuperação de Marciane, as crianças ficaram sob cuidado de familiares, mas atualmente moram com a diarista.

Crime motivado por ciúmes

Logo após o crime, o ex-marido de Marciane foi preso pela polícia e disse em depoimento que o ocorrido foi motivado por ciúme. Em agosto, o homem foi julgado e condenado a 32 anos de prisão.

O julgamento durou mais de oito horas e o júri foi formado por sete jurados, sendo eles quatro homens e três mulheres. Marciane fez questão de acompanhar o júri de perto e ficar frente a frente com seu ex-marido pela primeira vez após o crime.

"Quando o vi eu perguntei se ele tinha noção do jeito que ele havia me deixado e ele respondeu que não. Foi um momento muito doloroso e por mais que eu tivesse consciência de que não seria fácil, eu acho que nunca estamos preparados para esse tipo de situação", recorda a diarista.

Era um homem carinhoso, mas ficou agressivo

Segundo a doméstica, no início da relação, o ex-companheiro era um homem carinhoso e tinha comportamento tranquilo. Apesar de nunca ter sofrido nenhuma agressão física antes do crime, Marciane conta que, com o passar do tempo, o homem começou a demonstrar comportamento possessivo e passou a agredi-la psicologicamente.

"Ele me xingava, gritava e eu aceitava porque o amava e também porque achava que era um momento de raiva dele, não via como uma agressão. As pessoas falavam que aquilo não era correto. Mas, eu não conseguia enxergar o que realmente acontecia na minha vida. Por isso, é importante ouvirmos quem está fora da relação, porque eles veem a situação sem o olhar do amor", diz.

Sem poder trabalhar, Marciene se dedica aos cuidados com os filhos e em ajudar outras mulheres que foram vítimas de violência doméstica ou vivem em relacionamentos abusivos.

"Faço palestras sobre violência doméstica, converso com as mulheres que enfrentam alguma situação semelhante e uso as redes sociais para chamar a atenção sobre o tema e passar mensagens de apoio àquelas que vivem em uma relação abusiva. Uso o que aconteceu comigo para conscientizá-las sobre os riscos desse tipo de relacionamento", conta Marciane.

Voltando a sonhar

Marciane sempre teve o sonho de estudar, mas devido às condições financeiras, nunca conseguiu cursar o ensino superior. Situação que mudou este ano após ela ganhar bolsa integral em uma faculdade da cidade e começar a cursar a graduação de Serviço Social.

"Há uns 20 anos, quando eu trabalhava como doméstica, um dia meu patrão me disse que eu era uma simples empregada e não deveria perder tempo estudando. Eu acabei acreditando naquilo e deixei meu sonho de lado. Mas, hoje eu vejo que eu posso estudar e posso ser o que eu quiser", conta.

"Minha missão aqui é ajudar e sendo assistente social vou poder contribuir na vida das pessoas", acrescenta.

Dados da violência

No dia 25 de novembro é celebrado o Dia Internacional de Luta contra a Violência à Mulher, instituído em 1999, pala ONU (Organização das Nações Unidas) para chamar a atenção do mundo para o tema.

No entanto, apesar dos esforços em conscientizar mulheres e também homens para o assunto, os números de violência contra a mulher ainda são alarmantes.

Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), mostram que no primeiro semestre de 2022, data da última atualização disponibilizada pelo órgão, a central de atendimento registrou 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres - uma denúncia pode conter mais de uma violação de direitos humanos.

Além disso, o Ministério, por meio da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), acompanha o número de atendimentos das Casas da Mulher Brasileira (CMB) em funcionamento. Em 2022 as unidades já realizaram mais de 300 mil atendimentos. Desde 2019, quando o monitoramento foi implementado, já são mais de 1 milhão de atendimentos realizados.

"O Ligue 180 oferece atendimento confidencial e qualificado por uma equipe formada somente por mulheres. O serviço acolhe denúncias de violações dos direitos das mulheres, encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes e monitora o andamento dos processos. A Central pode ser acionada por qualquer mulher que esteja sofrendo violência ou por terceiros que tenham conhecimento. O sigilo do denunciante é sempre resguardado", explicou o órgão em nota.

As denúncias são encaminhadas para cerca de 50 mil destinos, incluindo tanto órgãos assistenciais como penais, como: conselhos tutelares, CRAS, CREAS, delegacias de polícia e Ministério Público.

Tipos de violência

Se engana quem pensa que violência contra a mulher é apenas física, ela também pode ser: psicológica, sexual, moral e patrimonial.

  • Violência física: qualquer ação que ofenda a integridade ou a saúde do corpo, como bater, empurrar, atirar objetos, chutar, apertar, queimar, cortar e ferir.
  • Violência sexual: as violações sexuais consistem em qualquer ação que force a mulher a fazer, manter ou presenciar ato sexual sem que ela queira, por meio de força, ameaça ou constrangimento físico ou moral.
  • Violência psicológica: qualquer conduta que cause dano emocional e a autoestima da vítima. Como situações de constrangimento, humilhação, manipulação, perseguição, ameaças, insulto, chantagem, ridicularização e limitação do direito de ir e vir.
  • Violência patrimonial: é aquela em que o agressor retira o dinheiro conquistado pela mulher com seu próprio trabalho ou destrói qualquer patrimônio, bem pessoal ou instrumento profissional da vítima. Entre as ações estão: destruir material profissional para impedir que a mulher trabalhe; controlar o dinheiro gasto, queimar, rasgar fotos ou documentos pessoais.
  • Violência moral: ela é caracterizada por ações que desonre a mulher com mentiras ou ofensas. Os exemplos incluem xingar na frente de outras pessoas, acusar a mulher de algo que ela não fez e falar coisas que não são verdadeiras sobre ela para os outros.

Ciclo de agressão

Segundo especialistas, as situações de agressões físicas envolvendo mulheres e seus companheiros raramente acontecem do dia para a noite. Geralmente, a vítima já sofreu algum outro tipo de violência praticada por ser parceiro - sendo a violência psicológica a mais comum.

Na tentativa de quebrar esse ciclo de violência doméstica, a promotora de Justiça de São Paulo, Gabriela Manssur, criou uma "rede de justiceiras", que oferece ajuda à essas mulheres vítimas de algum tipo de violência praticada por seus companheiros.

De forma voluntária, 11.866 mulheres de diferentes profissões (advogadas, psicólogas, assistentes sociais e médicas), oferecem apoio a mulheres de todo o país e também do exterior, de maneira online através do WhatsApp (11) 99639 1212. De março de 2020, quando o projeto foi criado, até novembro deste ano foram 11.457 casos atendidos no Brasil e em outros 27 países.

"A violência psicológica é a maioria dos casos, representando 82,37% das situações que recebemos, seguido de ameaça (52,97%), violência sexual (52,97%), violência patrimonial (67,97%) e violência física (59,43%). O que mais preocupa é que 73,72% dos pedidos de ajuda, os crimes ocorrem na casa da vítima", explica Manssur.

Após os atendimentos os casos são enviados para a Ouvidoria das Mulheres, no Conselho Nacional do Ministério Público e as vítimas são encaminhadas para os centros de referência da mulher do município em que residem para continuidade dos atendimentos psicológicos e socioassistenciais.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63985183