Bolsonaro como Trump futuro só tem passado e pagará por ele. É pauta errada
Enquanto era presidente da República, Jair Bolsonaro se dedicava a organizar manifestações de caráter golpista contra o Supremo, a combater a vacina e a atacar a imprensa. Nos folguedos para incitar a caserna contra os civis, chegou a discursar em frente ao QG do Exército, em Brasília, no dia 19 de abril de 2020, a um público que pedia um novo AI-5:
"Eu tou aqui porque acredito em vocês. Vocês tão aqui porque acreditam no Brasil. Não vamos negociar nada. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas e acreditar e fazer sua parte para que possamos colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. O povo no poder. Fazer tudo o que for necessário."
A retórica fascista não muda desde que o primeiro fascista deu o primeiro suspiro como... fascista. Pouco mais de um mês depois, em 28 de maio, reagindo a uma operação da PF contra criminosos que eram seus aliados, lançou um grito de guerra:
"Acabou, porra!".
O tratamento à imprensa, sabemos, era feito na base do cercadinho, para que seus paus-mandados impedissem o trabalho dos jornalistas, que eram tratados aos pontapés. Se homem, dizia ter cara de homossexual, o que considerava e considera, obviamente, uma ofensa. Se mulher, tecia considerações sobre orifícios. Era seu modo de exercer o que a fascistada chama "a nossa liberdade", que, como sabemos, é tão agredida pelo Supremo, não é mesmo?
OS "SOMMELIERS DE FASCISTAS"
Certos vadios encamparam a pauta, sob o pretexto de defender direitos fundamentais. A esses se juntaram os "sommeliers" de fascista, que se apresentam como pessoas autorizadas a emprestar o selo de DOC (Denominação de Origem Controlada) aos brucutus. Sem uma vinculação direta com os "Fasci Italiani di Combattimento" ou com o golpista da cervejaria, não se deve chamar um fascista de fascista... No máximo, saltando pocinhas, escreva "extremistas" ou "direitistas radicais".
Os marginais da institucionalidade, é fato, estão por aí. Disputam e ganham eleições, nas franjas da tolerância da lei. Pode ocorrer, felizmente, de haver gente ousada que decide cumprir o que está escrito, a exemplo de alguns ministros do Supremo, aplicando-lhes as punições previstas quando agridem o Código Penal, a Lei Eleitoral ou a Constituição. Sim, tais magistrados o fazem sob o ataque dos "sommeliers"... Estes se declaram isentos como se habitassem o pináculo da neutralidade. Por alguma estranha razão, estão sempre a demonstrar que os progressistas não são tão bons como se julgam nem os reacionários tão maus como parecem. E devem se considerar superiormente transgressivos por isso. Deixemos a súcia de lado, por ora ao menos.
DE TIGRÃO A GATINHO FELPUDO
A eleição de Trump transformou Bolsonaro, o Tigrão dos vitupérios contra a imprensa, o golpista do comício do AI-5, o fortão do "acabou, porra!", num bichano felpudo e pensador. Na entrevista à Folha, suponho que tenha falado sem as devidas balizas dadas por seus defensores. E de lá saíram preciosidades como a suposição de que Alexandre de Moraes não ousaria lhe recusar o passaporte para acompanhar a posse Trump porque não teria coragem de desafiar o homem país poderoso do mundo. Ou por outra: como considera certo que será convidado para a cerimônia, e pode mesmo acontecer, tal convite seria, para Moraes, sinônimo de uma ordem.
Na mesma conversa, expressando o puro sumo do "bolsonarismo segundo Bolsonaro", disse saber muito bem o seu lugar na relação com Trump. Para que os entrevistadores entendessem direito o que dizia, resolveu recorrer a uma metáfora, ciente de que "uerba mouent, exempla trahunt", e disparou:
"E eu sei o meu lugar perto dele. Eu estou para ele como o Paraguai está para o Brasil."
Obra de gênio.
Já a entrevista ao Globo pode ter tido alguma orientação de seus doutores, sei lá. Ao defender a anistia aos golpistas e a si mesmo, criou o Poder Legislativo Autocrático:
"O Congresso é o caminho para quase tudo. O Poder mais importante é o Legislativo. Depois, o Executivo... O Congresso é o Poder mais importante. Ninguém votou em pessoal do Supremo. Ninguém votou em ministro da República. O Poder mais importante é o do Congresso. A Constituição que entende dessa maneira. O Poder Judiciário é para dirimir conflitos."
Não sei o que andaram a lhe dizer seus universitários. É provável que não tenha entendido direito. A Constituição que tem na cabeça é diferente daquela que está aqui numa das minhas janelas, onde reluz o Artigo 102, caput: "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição". Só a Carta fascista de 1937 dava ao Congresso, que estava fechado, o poder de revisar decisões do tribunal. Logo, fazia-o ditador... Nunca ninguém tinha tido antes a ideia de transformar a corte em mera mediadora de conflito de vizinhos... É um disparate!
Num outro momento, este cômico, falou o grande organizador da oposição. Ao se referir a conflitos no PL para definir quem comandaria o partido, saiu-se com esta:
"Quando vi na imprensa que o Valdemar iria passar o PL para o Eduardo [Bolsonaro], perguntei: 'Eduardo, que trem é esse?'. Ele falou: 'Estou sabendo agora também'. Eu não posso falar com o Valdemar. Pedi para perguntar para ele se procedia. No dia seguinte, disseram que sim. Eduardo falou que não se interessava por vários motivos, porque é uma dor de cabeça enorme. Então, daí o próprio Valdemar falou que seria o senador [Rogério] Marinho, que também falou que não queria. Depois, o Valdemar falou que jamais deixaria a presidência do partido. Puta que pariu, não entendi porra nenhuma."
Nem aquele sábio florentino conseguiria registro tão refinado.
MAS POR QUÊ?
Mas por que Bolsonaro está falando, ou está sendo convidado a falar, mais do que o homem da cobra? Ora, Reinaldo, porque diz a doxa do Almanaque Biotônico Fontoura de Política que, com a eleição no Trump (não fascista, naturalmente), outros "não fascistas" como ele podem se eleger na América Latina. Bolsonaro, embora inelegível, é o "não fascista" trumpista por aqui. Ainda segundo o almanaque, isso reforça a pressão por sua anistia. Pergunta: reforça junto a quem? Ainda que o troço venha a ser aprovado no Congresso, alguém seria capaz de apontar um vaso comunicante que seja entre o triunfo do caçador de imigrantes e os ministros do STF?
O conjunto da obra nasce de uma incompreensão fundamental — e não custa recomendar, de novo, que os interessados leiam "Como Salvar a Democracia", de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt — os autores se referem especificamente à democracia americana.
Trump só estava elegível porque as instituições americanas, dependentes em boa parte da "confiança" dos americanos em seu sistema — a mesma que Kamala Harris e Joe Biden exaltaram ao reconhecer a derrota dos democratas —, não estavam preparadas para responder a quem as desafiasse abertamente. Da inexistência de uma lei clara de inelegibilidade, num país que não dispõe de Justiça Eleitoral, a um federalismo que pode assumir uma feição liberticida, passando pela brutal dificuldade para emendar a Constituição, tem-se um modelo muito mais poroso à pisotolagem fascistoide do que, ora vejam!, aquele construído pelos brasucas.
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Os americanos deixaram o seu Bolsonaro habilitado para disputar de novo a Presidência da República. Os brasileiros tinham instrumentos legais para inabilitar o seu Trump. Aquele restará impune. Este vai pagar por seus crimes. E a inelegibilidade, estejam certos, será o menor seus problemas.
O Bolsonaro convidado a falar por aí como se fosse o Trump de amanhã não tem futuro. Essa pauta não existe. Ele só tem passado. E pagará caro por ele.
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