Fungo que inspirou 'The Last of Us' existe mesmo ? e apareceu em documentário da BBC
Ideia que deu origem à franquia de jogos para videogame e para o lançamento recente da HBO surgiu a partir de um episódio da série documental 'Planet Earth', que mostra cenas de um fungo capaz de transformar insetos em zumbis.
Nas últimas semanas, a série The Last of Us, da HBO, virou sucesso de público e crítica. Mas você sabia que a história foi inspirada num fungo que existe de verdade?
Ele até já foi retratado num dos episódios do documentário Planet Earth, da BBC Studios, narrado pelo naturalista britânico David Attenborough.
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Na ficção, a história se passa num futuro pós-apocalíptico, em que a civilização entrou em colapso depois de uma pandemia causada por um fungo capaz de controlar a mente das pessoas e transformá-las em zumbis.
Na vida real, os gêneros Cordyceps e Ophiocordyceps são capazes de invadir o organismo de insetos, como algumas formigas, controlar o sistema nervoso deles e levá-los para um lugar mais alto, onde os esporos do microrganismo se espalham com facilidade.
As similaridades, porém, ficam por aí. Esse patógeno em específico não consegue fazer o mesmo com seres humanos ? embora outros representantes do reino dos fungos estejam se tornando uma preocupação nas últimas décadas.
A origem da ideia
No trecho do documentário Planet Earth que inspirou a história, as cenas retratam formigas que estão numa situação complicada: elas tiveram contato com o fungo parasita Cordyceps, capaz de se infiltrar no sistema nervoso delas.
"O cérebro infectado direciona a formiga para cima. Então, totalmente desorientada, ela agarra um galho com a mandíbula", narra Attenborough.
As formigas vítimas desse fungo são rapidamente identificadas pelas companheiras que compartilham o mesmo ninho. Na sequência, elas são expulsas da colônia.
"A atitude pode parecer extrema, mas há uma razão para isso. Como numa peça de ficção científica, o corpo frutífero do Cordyceps surge a partir da cabeça da formiga", continua o naturalista.
"Ele pode demorar até três semanas para crescer. Quando finalizado, os esporos são liberados. Daí, qualquer formiga nas proximidades estará sob um grande risco de morte."
O documentário ainda destaca que as formigas não são as únicas vítimas. Há vários tipos de Cordyceps, e cada um deles se especializou em atacar uma espécie de inseto em específico.
Embora essa ação pareça dramática, vale ressaltar que o papel desses fungos não é de todo mau: ao afetar alguns insetos, o patógeno garante um equilíbrio da natureza, de modo que nenhuma espécie ganhe vantagem sobre as outras.
Da realidade para a ficção
A série The Last of Us é inspirada numa franquia de jogos de videogames que foi lançada na última década pela produtora Naughty Dog.
Em entrevistas, os criadores da história, Bruce Straley e Neil Druckmann, disseram que esse episódio do documentário Planet Earth da BBC serviu de inspiração para o desenvolvimento do universo pós-apocalíptico.
Nos jogos e na série de ficção da HBO, porém, o Cordyceps sofreu uma mutação e passou a afetar seres humanos.
O problema, na trama, começou em setembro de 2013, a partir de alimentos contaminados com o fungo que vinham da América do Sul. Em poucos meses, mais de 60% da humanidade foi morta ou infectada.
No mundo da fantasia, a infecção pelo Cordyceps tem quatro estágios. No primeiro, logo após o contato com os esporos do fungo, a vítima perde o controle sobre o cérebro e fica super agressiva. Duas semanas depois, há uma perda da visão.
Se o indivíduo sobrevive, o fungo destrói a face (mais ou menos como acontece com as formigas).
Para compensar, o zumbi desenvolve um tipo de ecolocalização: ele é capaz de se guiar pelos barulhos e por pequenos cliques que emite ? não à toa, esses seres são chamados de "clickers" pelos sobreviventes saudáveis.
Nessas fases, a mordida de um infectado é capaz de transmitir o patógeno adiante.
Na fase quatro, que pode demorar até uma década, o fungo mata o hospedeiro e libera os esporos, que podem infectar outras pessoas.
Da ficção para a realidade?
Com o sucesso da série, muitos fãs começaram a se perguntar: será que um cenário no estilo de The Last of Us pode acontecer de fato?
A resposta mais simples para essa pergunta é não, garantem os cientistas.
"Na série, você tem aquele quadro que coloca os infectados num estado de zumbis, como se o fungo tivesse tomado o controle do sistema nervoso deles", contextualiza o microbiologista Marcio Lourenço Rodrigues, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) no Paraná.
"De fato, infecções do sistema nervoso central causadas por fungos existem, e podem até induzir alterações comportamentais nas pessoas", continua.
"Mas a glamourização da série acontece quando o fungo toma controle das pessoas. Isso já é ficção científica mesmo", completa o pesquisador.
O médico Flávio Telles, da Sociedade Brasileira de Infectologia, reforça o potencial de alguns fungos de invadir o sistema nervoso dos seres humanos.
"Os Cryptococcus, por exemplo, podem provocar uma neuromicose muito séria e com alta taxa de mortalidade", diz.
"Mas eles só causam esses quadros em pacientes que estão com o sistema imunológico muito comprometido", complementa o especialista, que também é pesquisador da Universidade Federal do Paraná.
Os Cordyceps, portanto, só são uma ameaça para formigas e alguns outros insetos ? e não há nada indicando que eles se transformarão num perigo para outras espécies, como os próprios seres humanos.
No entanto, um fenômeno retratado na série é real e já acontece na prática com outros representantes desse reino de seres vivos: o desenvolvimento de uma resistência ao calor e aos remédios disponíveis hoje.
"A nossa temperatura corporal média, em torno de 37 graus, é uma barreira para os fungos, pois a maioria absoluta deles não consegue crescer nessas condições", ensina Rodrigues.
"Mas a diversidade de espécies fúngicas na natureza é enorme, e vamos supor que todas se desenvolvam bem nos 30 graus. Agora, imagine que essa temperatura média aumente um pouco, como de fato vem ocorrendo. A grande maioria dos fungos vai sumir, mas aqueles que tiverem capacidade de resistir um pouquinho mais vão prevalecer e ter à disposição uma enorme quantidade de nutrientes", continua.
"Ou seja, de pouco a pouco, os fungos resistentes ganhariam a capacidade de sobreviver a temperaturas cada vez mais próximas à do nosso corpo."
Com isso, explica o pesquisador, um micro-organismo que não tinha um potencial patogênico passa a ser um problema.
Foi mais ou menos isso o que aconteceu com a Candida auris, hoje conhecida como um superfungo que sempre vira notícia quando aparece em algum hospital.
Para completar, muitos desses micro-organismos estão se tornando resistentes aos poucos medicamentos e produtos agrícolas que temos disponíveis para combatê-los ? e criar novos compostos antifúngicos não é uma tarefa fácil.
"Isso é um problema gravíssimo, porque os fungos são seres muito parecidos com os animais e os vegetais. Com isso, é muito difícil desenvolver uma molécula que seja tóxica para eles e não provoque os mesmos efeitos em nós mesmos", diz a farmacêutica Kelly Ishida, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.
Apesar das evidentes diferenças entre vida real e ficção, Rodrigues acredita que séries como The Last of Us jogam luz sobre um perigo pouco conhecido.
Ele é um dos autores de um trabalho que revela como as infecções por fungo são ao mesmo tempo comuns e negligenciadas.
"Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas ficam cegas todos os anos por causa de ceratite fúngica [uma infecção ocular]. Aproximadamente 1 bilhão de indivíduos têm micoses de pele, o que faz essa doença ser apenas um pouco menos comum do que a dor de cabeça e as cáries. Os esporos de fungos contribuem para o aparecimento de quadros respiratórios em 10 milhões de pacientes. No total, 300 milhões sofrem de infecções fúngicas sérias todos os anos no mundo. Desses, 1,5 milhão morrem", calcula o texto.
"Mesmo assim, o apoio financeiro aos estudos sobre as doenças causadas por fungos é extremamente baixo em comparação com outras enfermidades que têm uma mesma mortalidade. Por exemplo, para cada indivíduo que morre por malária, US$ 1.315,00 são investidos em pesquisa e desenvolvimento. O valor fica em 334,00 para tuberculose, 276,00 para doenças diarreicas e apenas 31,00 para meningite provocada pelo Cryptococcus", estimam os autores.
"Reportagens, documentários e séries ajudam a chamar a atenção para o problema e permitem reconhecer que os fungos têm um grande impacto na saúde pública", opina Rodrigues.
"Uma pandemia por fungos é improvável, mas não impossível. Por isso, devemos estar sempre preparados", conclui o pesquisador.
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