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"Cuba precisa de revolução da liberdade"

Astrid Prange

30/11/2016 16h02

Em entrevista à DW, Leonardo Boff relembra seus encontros com Fidel Castro, a quem criticava por fazer revolução da fome, mas não da liberdade. Teólogo também comenta eleição de Trump nos EUA e crise no Brasil.O teólogo brasileiro Leonardo Boff, de 77 anos, recebeu neste domingo (27/11), pelo conjunto de sua obra, a medalha Carl-Friedrich-von-Weizsäcker em Berlim, na Alemanha. Ao conceder a honraria, a sociedade nomeada em homenagem ao físico e filósofo alemão Carl Friedrich von Weizsäcker destacou Boff por seu "forte compromisso" com a Teologia da Libertação.Em entrevista à DW, o estudioso fala sobre a presença da religião no líder cubano Fidel Castro e em Cuba e sobre as perspectivas para a ilha caribenha após a morte do revolucionário. O teólogo também comenta a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA, classificando-o como "o pior que a cultura americana pode produzir". Boff aborda ainda o tema da religião como mercadoria e sua influência sobre a política e o atual cenário político no Brasil.DW: O senhor é um revolucionário teológico. Fidel Castro foi um revolucionário político. Ambos lutaram contra a pobreza na América Latina. O senhor conheceu Fidel pessoalmente?Leonardo Boff: Estive muitas vezes com ele, mais de dez. Quando tive aquele castigo de Roma [em 1985, Boff foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso", sendo proibido de lecionar], ele me pediu para passar 15 dias de férias com ele em Cuba. Então, tivemos a oportunidade de discutir muitas coisas, o futuro de Cuba, da democracia, da humanidade. Ele se interessou muito pela teologia da libertação, leu vários livros meus, do Gustavo Gutiérrez e do Frei Betto. E daí surgiu uma amizade muito forte. Até os primeiros meses da Revolução Cubana, ele sempre carregava uma cruz no peito. Ele disse muitas vezes que, se tivesse existido a Teologia da Libertação na época, ele iria assumi-la, e não o marxismo.Depois da Revolução Cubana, muitos católicos fugiram de Cuba. A Igreja era considerada contrarrevolucionária. Só em 1992, Fidel mudou a Constituição, e Cuba se transformou num Estado laico. Assim, era possível ser cristão e membro do Partido Comunista ao mesmo tempo. Os seus encontros com Fidel contribuíram para essa abertura?Frei Betto e eu trabalhamos durante cinco anos para reconciliar a Conferência dos Bispos de Cuba com o governo cubano. Promovendo o diálogo entre as duas partes, tentando desmontar o ateísmo. A frase que mais impactou Fidel foi quando Frei Betto disse: "Não podem existir Estados confessionais. Cuba é um Estado confessional porque impôs a confissão marxista." Fidel levou um susto. Depois de cinco anos de diálogo, Cuba foi declarada um Estado laico. Assim, Fidel abriu as portas para que padres e freiras pudessem voltar a Cuba. O mérito desse trabalho é de Frei Betto. O que de fato mudou a situação foi o livro dele [do Frei Betto] Fidel e a religião [1985]. O livro vendeu um milhão de exemplares em Cuba. Agora saiu uma nova edição, outra vez com uma tiragem de um milhão de exemplares. Então, o povo percebeu que não há contradição entre cristianismo e socialismo. A partir disso, Fidel aceitou e convidou o papa João Paulo 2º, depois o papa Bento 16, e agora o papa Francisco, duas vezes. Como o senhor vê o futuro político de Cuba? O país vai se transformar numa ilha caribenha sem grande significado político?Não acredito nisso. A cultura socialista entrou no povo. Eles sentem orgulho de ter conseguido resistir diante do gigante, que como um leão queria engoli-los. Agora, nós sempre fazíamos essa crítica pessoalmente ao Fidel. Não basta fazer revolução da fome, tem que fazer revolução da liberdade. E ele não fez a revolução da liberdade. Manteve o partido único e sempre argumentou: "Vocês não podem imaginar o que significa a pressão que sinto dos EUA, que querem retomar a ilha, então, eu não posso afrouxar. Porque há muita espionagem, muita penetração por parte dos americanos. Por isso, tenho que manter a mão firme".Muitos cubanos bem formados não veem mais futuro em seu país e emigram. Eles querem liberdade, e o Partido Comunista quer permanecer no poder. Os dias do socialismo estão contados?Acho que a evolução vai ser progressiva, abrindo cada vez mais. Mais e mais vai se desenvolvendo um socialismo de liberdade, mas mantendo a dimensão econômica e social no sentido de que o importante não é a propriedade privada, mas a propriedade comum. É o que o socialismo afirma, como uma alternativa ao capitalismo.Falando em capitalismo, qual foi o seu primeiro pensamento quando soube da eleição de Donald Trump como novo presidente dos EUA?Trump é o pior que a cultura americana pode produzir. Não sabemos qual é o projeto dele. Não sabemos, é um mistério como ele vai conduzir a maior potência do mundo. Então é algo perigoso. A humanidade está temerosa.A influência da religião sobre a política está aumentando? Nos EUA, acredita-se que os evangélicos tenham tido grande influência sobre a eleição presidencial. No Brasil, os evangélicos e seu lobby político estavam entre os defensores do controverso impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff...As religiões, especialmente as pentecostais, seguem a lógica do mercado. Elas ganham muito dinheiro com seus programas de televisão, apoiam aqueles que defendem seus interesses e privilégios. Então elas não respeitam o caráter laico do Estado. Elas mobilizam e manipulam os fiéis. Há vários pastores que fazem campanha política e utilizam a religião de uma forma perversa. Está dentro da lógica do capitalismo, em que tudo é uma mercadoria. A religião também é uma mercadoria.Como o senhor vê a situação política atual no Brasil? O país tem que esperar até as eleições de 2018 para sair da crise? Acho que esta semana vai ser importante porque virão grandes manifestações e, possivelmente, se Temer tiver que renunciar, haverá uma nova eleição. Mas é uma eleição indireta, feita pelo Parlamento. Aí é possível que o PSDB ganhe e assuma. Alguns querem que Fernando Henrique Cardoso seja o presidente da transição. Seria a forma mais suave de superar a crise porque há o risco de uma grande convulsão social. Como está agora, o país não aguenta.