"Brasil não pode perder a oportunidade de mudar após a Lava Jato"
Numa palestra em São Paulo para importantes executivos com negócios no país, o presidente e CEO da Siemens do Brasil, Paulo Ricardo Stark, propôs um engajamento do setor privado para que se busque um novo modelo de desenvolvimento para o país, com foco na sustentabilidade e na ética. "Quem, se não nós, vai promover as mudanças que o país precisa? Há um espírito de mudança no ar", disse, apostando muito mais na reação do setor privado e da sociedade do que numa atitude de governo.
Indiretamente, Stark citou o escândalo de corrupção que jogou na lama a reputação da empresa, em 2006, quando foram descobertas práticas da Siemens semelhantes ao que se vê hoje na Lava Jato: pagamento de propinas entre 2001 e 2007, em vários lugares do mundo, em troca de negócios e contratos com o poder público. "Pessoas sem escrúpulos usaram a empresa para beneficiarem a si próprias", disse na palestra.
Em 2013, a Siemens do Brasil assinou um contrato de leniência com o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em que admitiu a prática de cartel, fraude em licitação e pagamento de propinas a agentes políticos em São Paulo em contratos do setor de transporte com o governo paulista – para fornecimento de trens à Companhia Paulista de trens e ao Metrô.
A denúncia do Ministério Público foi aceita pela Justiça no ano passado, e espera-se que neste ano ocorram os primeiros julgamentos de ex-executivos envolvidos no caso.
"A corrupção transforma a infraestrutura brasileira numa das mais caras e ineficientes do mundo", disse Stark. Ao final da palestra, ele concedeu uma rápida entrevista exclusiva à DW Brasil e falou sobre a Lava Jato e o sistema de compliance da Siemens. As empresas envolvidas no atual escândalo, diz, só vão restabelecer a reputação se seguirem esse caminho.
DW Brasil: Considerando a grave situação do país, numa crise que envolve a classe política e o setor privado, como o senhor enxerga o momento atual, até pela experiência da Siemens, que enfrentou sérios problemas de corrupção na Alemanha e no Brasil?
Paulo Stark: Eu sou um otimista por natureza. Costumo buscar enxergar oportunidades em toda crise. Acho que esta crise que o Brasil está passado, relacionada à Lava Jato, traz uma oportunidade única para o país e as empresas aqui presentes, os agentes públicos e políticos, passarem a limpo essa história, virarem essa página. Não para esquecê-la: deixá-la escrita na história para que as próximas páginas sejam uma evolução a partir daqui. Isso aconteceu com a Siemens a partir do instante em que os 360 mil colaboradores da empresa se depararam pela primeira vez com aquele escândalo, em número e fatos. Foi uma grande oportunidade de uma mudança cultural profunda na empresa. E a minha expectativa, aqui [com a Lava Jato], é que essa oportunidade se apresenta agora para o Brasil e para as empresas brasileiras como algo que nós, como sociedade, não podemos deixar passar. Não podemos deixar que coloquem uma pedra em cima disso para se esquecerem e simplesmente voltarem às práticas anteriores. Particularmente, acho que o risco, no curto prazo, é muito baixo. E por quê? Respondo com outra pergunta: que executivo, em sã consciência, iria desafiar e retomar esse tipo de prática agora, tendo em vista o que está acontecendo? Quanta gente está na cadeia, quanta gente de renome está respondendo pelos atos que cometeu...
DW Brasil: Essas "velhas práticas" às quais o senhor se refere são pagamento de propina do setor privado, corrupção?
PS: Sim, corrupção, propina, caixa dois, cartel, tudo. E quem vai, hoje, arriscar sua reputação pessoal, sua vida familiar? Por isso eu acho que, no curto prazo, a gente tem uma janela de oportunidade, que talvez dure cinco, seis, sete anos, até que se comece a esquecer um pouco desta história, e as novas gerações possam voltar a ter essas ideias mirabolantes [a retomar práticas de corrupção]. Mas aí é que eu acho que entra o sistema de compliance, entra a reação cultural da sociedade em geral, entra a pressão social, para que esses [executivos] não voltem a usar destas táticas para ganhar negócios.
DW: O senhor poderia detalhar resultados concretos do departamento de compliance da Siemens do Brasil, depois de ter feito o acordo de leniência com o Cade em 2013 [admitindo prática de cartel nas licitações de trens em São Paulo]? Pode apontar como o comportamento da empresa mudou, interna e externamente?
PS: Nós implantamos aqui no Brasil a sistemática global de compliance também entre 2007 e 2008. E de lá para cá, a gente colheu resultados extremamente significativos no que diz respeito à conscientização, treinamento e educação das pessoas e de todos os colaboradores com relação à forma de se fazer negócios da maneira correta. E isso tem muito a ver com o tema da educação. Infelizmente, não podemos partir do princípio de que todas as pessoas entrem na companhia com a mesma visão ou com os mesmos valores. Nosso sistema de compliance tem três pilares, e um deles é a prevenção [os outros dois são detectar e responder]. E talvez esse seja o mais importante a longo prazo. Essa atuação e prevenção, criando a conscientização, faz com que, agora, a empresa atraia pessoas que se alinhem com esses valores.
DW: Citei 2013 porque foi a data em que a Siemens fez formalmente a denúncia de corrupção sobre o caso em São Paulo. De lá pra cá houve reformulações concretas dentro da empresa, afastamentos?
PS: Sim. A leniência que assinamos com o Cade em 2013 foi o resultado do sistema de compliance. E não a causa. O evento de 2013 não foi causador de uma mudança do nosso sistema. As pessoas que direta ou indiretamente teriam se envolvido naqueles negócios, em 2013 ou já não trabalhavam mais na empresa ou estavam saindo dela. Não teve uma relação de causa e consequência em função deste episódio. Esse episódio não foi um evento que mudou o sistema de compliance. O fato de termos chegado a esse ponto, de conseguir coletar as evidências, conseguir coletar as informações todas que eram minimamente necessárias para que pudéssemos fazer a leniência e entregar informações que fossem relevantes para o Cade, isso só aconteceu por causa de um sistema de compliance bem estabelecido. Se não, não teríamos conseguido.
DW: E esse processo demorou anos para ser concluído? Houve um debate na mídia alemã questionando inclusive a eficiência do sistema de compliance da Siemens, já que a empresa tomou conhecimento do esquema no Brasil em 2008, mas só fez o acordo em 2013.
PS: Quem obviamente está longe não percebe essas nuances. Uma empresa, mesmo que tenha departamento de compliance, que tenha auditoria e investigação interna, ela não tem poder de polícia. Ela não pode obrigar as pessoas a colaborarem. Ela tem que contar com a conscientização das pessoas para que elas colaborem. Obviamente para você levantar as evidências necessárias, para chegar na maturidade suficiente para um acordo desses, não é chegar lá e simplesmente falar: 'Ah, alguém disse que...' Isso não é prova, não é evidência de nada. Tivemos um trabalho muito grande. E esse trabalho custou muito tempo, e muitas interações até que conseguíssemos chegar em 2013 efetivamente com resultados concretos e pudéssesmos dizer: 'Agora temos aqui, sim, um histórico de condutas e resultados concretos para fazermos um acordo de leniência e levar esses fatos a conhecimento das autoridades'.
DW: O momento atual é de total descrédito da classe política brasileira, por razões óbvias, mas também de desalento sobre o conluio do privado com o público. Pegando a experiência da Siemens e transferindo para as grandes empreiteiras do Brasil, investigadas na Lava Jato, como o senhor acha que as empresas serão capazes de recuperar suas reputações e reconstruir um elo de confiança com a sociedade?
PS: A primeira pré-condição para que isso ocorra é o 'tone from the top'. Isso é inegociável. Quando a Siemens passou, lá atrás, em 2006, pela sua crise global de compliance, a primeira coisa que se fez foi mudar o top management da empresa – a Siemens mudou mais de 2 mil executivos no mundo inteiro. Completo. E essa é uma das vantagens das empresas que são sociedades anônimas, ou têm ações em bolsa negociadas publicamente. Porque existe um conselho, e esse conselho destitui os executivos da empresa e nomeia novos. Em empresas familiares isso é mais difícil de acontecer, porque existe uma correlação muito grande entre a empresa e a família. Você não pode destituir a família, né. Então é um desafio diferente que muitas dessas empresas [citadas na Lava Jato] têm. Mas o mais importante de tudo é o topo da empresa ser profissionalizado e entender que empresa é empresa, família é família, e que a empresa tem um propósito de fazer negócios, sobreviver, gerar emprego e benefício para o país. E aí sim se desenrola todo o sistema de compliance. Não adianta colocar um sistema de compliance sem mudar esse pensamento fundamental. É preciso fazer como a Siemens fez e como vejo que algumas empresas já estão fazendo: além de mudar o top management, de estabelecer o sistema de compliance, você tem que estabelecer o sistema de monitoramento independente.
DW: E como ela funciona?
PS: A monitoria independente seria aquela voz do mercado, independente, sem associação com a empresa, que vai dizer se aquilo lá está sendo vivido na prática ou não. A Siemens fez isso também lá atrás. Foi escolhido um monitor, Theo Waigel, que monitorou por anos toda a transformação dentro da empresa e relatou oficialmente, trimestralmente, todos os avanços que ocorriam, em todos os lugares do mundo. Isso também é importante para fazer com que essa coisa toda funcione. Ou seja, mudar o top management, implantar um sistema de compliance abrangente – e não é um departamento de compliance, é um sistema, que abrange tudo dentro da empresa –, e a monitoria.
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