Jeitinho brasileiro facilita a corrupção em larga escala no Brasil?
A crise fez muitos brasileiros questionarem o que há de corrupção em seu próprio dia a dia – se políticos e empresários envolvidos em escândalos estariam apenas repetindo, em maior escala, aquilo que já seria parte do cotidiano. Em discussão, o chamado "jeitinho", termo amplo que pode ser entendido positiva ou negativamente, e que, para alguns, é terreno fértil para a corrupção sistêmica.
Mas, para pesquisadores ouvidos pela DW Brasil, esta correlação precisa ser analisada com cautela, e é difícil determinar uma relação de causa e efeito. Enquanto para uns o jeitinho pode estar intimamente ligado à corrupção em larga escala, outros contestam o termo até como algo exclusivamente brasileiro.
"Centro da corrupção sistêmica"
O historiador Sidney Chalhoub, da Universidade de Harvard, destaca a origem histórica do jeitinho, ligada à formação escravista da sociedade brasileira, numa época em que a única maneira de se conseguir algo era pedindo favores aos senhores de terra e escravos. Essa prática, em vez de desaparecer, perdurou e combinou-se com outras lógicas.
"O jeitinho e o favor estão no centro de como a corrupção se tornou sistêmica no país”, avalia Chalhoub. O historiador pondera, porém, a existência de leis e regulamentos impossíveis de serem cumpridos no Brasil. Nestes casos, o jeitinho seria uma questão de sobrevivência, por exemplo, para a grande parte da parcela da população que trabalha no mercado informal.
"Pessoas em situações de subordinação e dependência não têm alternativa para lidar às vezes com regras absurdas, por isso, tendo a reservar uma tolerância ao jeitinho para os oprimidos, que não criaram o sistema que os submete à necessidade de sobreviver nessa condição. Para empreiteiros, governos e juízes, o jeitinho não tem desculpa", opina.
"Da simpatia a arranjos de contratos"
O antropólogo Roberto DaMatta ressalta as inúmeras definições do jeitinho, que podem ser percebidas de maneira positiva ou negativa, dependendo da situação em que se inserem. "Esse lado negativo pode, porém, ser estendido tanto até se tornar corrupção”, acrescenta o professor da PUC do Rio de Janeiro.
Por essa diversidade, Da Matta afirma que é importante fazer uma distinção entre os inúmeros casos. "O jeitinho tem um espectro que vai de uma simpatia humana, que se reconhece no outro e abre uma exceção para esse outro em virtude de uma emergência ou condições de vida, a até arranjos de contratos especiais superfaturados de obras públicas concedidos para amigos e parentes, com objetivo de dividir lucros, o que é corrupção”, diz.
Para DaMatta, o grande problema é a aplicação jeitinho em situações e projetos que deveriam ser abordados com impessoalidade. "A corrupção ocorre quando a ética da família e das relações pessoais, visando obviamente o lucro de ambos, interfere em cargos que não deveriam ser dados por meio de simpatias, mas sim por mérito e competência”, acrescenta.
"Presente em qualquer lugar"
Já o sociólogo Sérgio Costa contesta o jeitinho como característica própria da sociedade brasileira. Para o pesquisador do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim, a interpretação e negociação de normas existentes ocorre em qualquer sociedade moderna, inclusive na Alemanha.
"As normas – sejam aquelas inscritas nos códigos sociais, sejam as definidas no corpo legal vigente – servem de orientação geral, mas só ganham concretude e efetividade quando são interpretadas e negociadas nas relações concretas”, argumenta.
Costa ressalta que a corrupção é diferente do jeitinho ao visar troca de vantagens e facilidades para a obtenção de benefícios próprios. Se por um lado a negociação de normas fortalece a coesão e solidariedade, avalia, a corrupção é nociva aos laços sociais por representar uma quebra de confiança.
"Não me parece que o jeitinho seja o pai da corrupção sistêmica. Enquanto o primeiro faz parte das relações interpessoais cotidianas e torna as normas algo experenciado e vivido, a corrupção tem lugar na interface entre política e economia e visa não negociar, mas violar as normas para distribuir recursos públicos, indevidamente, a atores privados”, conclui Costa.
"Correlação superficial e nociva"
O pesquisador Mads Damgaard, da Universidade de Copenhagen, também rejeita a relação entre jeitinho e corrupção. "Essa conexão é superficial e nociva, pois projeta uma imagem ou uma identidade de uma nação perpetuamente atolada na política de coronéis e no nepotismo. Essa percepção reprime mudanças sociais, induz a apatia e justifica casos de corrupção sistêmica e individual ao propor uma explicação cultural falha”, opina.
O especialista em estudos interculturais argumenta que o jeitinho categoriza várias situações diferentes, como flexibilidade de interpretação de normas sociais, transgressão de regras ou ainda a troca de favores pessoais e, por isso, não está convencido da utilidade de rotular ações com esse estereótipo, como percebe o termo.
"Estereótipos têm poderes enormes. No caso do jeitinho, ele funciona como desculpa, explicação e exceção, tudo ao mesmo tempo. Na minha opinião, questões de rede, laços fortes ou fracos, burocracia e discurso moral se confundem e se tornam confusas com essa rotulagem”, acrescenta Damgaard.
"Pode estimular criatividade"
Para Bruno Brandão, da ONG Transparência Internacional, o jeitinho, ao mesmo tempo que abre espaço para atos de corrupção e a sua tolerância, é também uma maneira que pessoas encontram para sobreviver e superar obstáculos impostos por leis e instituições complexas e disfuncionais. Neste contexto, afirma, pode ser um elemento que estimula a criatividade.
O representante no Brasil da ONG especializada no combate à corrupção ressalta, no entanto, que é importante refletir sobre a relação entre jeitinho e corrupção, mas esse comportamento não deve ser resumido ao ato ilegal. O debate é fundamental para promover mudanças de práticas que abrem espaço para a corrupção.
"É preciso melhorar as nossas instituições para que elas imponham menos desafios e favoreçam um sistema de ordem, paz social e certezas, ao invés de incertezas, para que o cidadão brasileiro não tenha que se armar de jeitinhos para conduzir sua vida”, comenta Brandão.
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