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A mensagem de um cacique ao presidente

Philipp Lichterbeck (av)

28/02/2018 11h05

O colunista viaja até Mato Grosso do Sul e encontra um líder do povo Guarani Kaiowá. Ele e sua gente lutam pela terra de seus antepassados que foi ocupada pelos brancos. E têm uma mensagem ao presidente da República.Meu carro derrapa pelas pistas enlameadas, choveu a noite inteira. À direita e à esquerda do caminho estendem-se pastos bovinos e campos de soja sem fim, há horas que eu não vejo nada além deles.

Estou indo me encontrar com um homem que vive num canto escondido do Brasil: a zona de fronteira com o Paraguai no estado de Mato Grosso do Sul. Ele é um índio do povo Guarani Kaiowá, seu nome português é Líder Solano. Mas, na língua materna dele, o guarani, ele se chama Apykaa Rendy. Significa "cadeira que ilumina".

Apykaa Rendy é o chefe de 200 índios que ocuparam um trecho de terra próximo à cidade de Iguatemi. O assentamento se chama Pyelito Kue.

Quando finalmente chego lá, avisto 50 barracos espalhados por um morro, feitos de madeira e lonas de plástico e inclinados pelo vento. No alto do assentamento há uma plantação de eucalipto, mas muito mais não há por aqui. O terreno é arenoso e o céu, vasto.

Apykaa Rendy me saúda com um aperto de mão forte e pede que me sente num banquinho de madeira na frente do barraco dele. O cacique tem a barba feita, veste uma camisa azul-claro, coberta de colares feitos com sementes. À nossa volta logo se reúne um grupo de curiosos, homens, mulheres e crianças.

Apykaa Rendy faz um gesto amplo e diz que a terra em volta pertence aos Guaranis Kaiowás, e não aos fazendeiros. Este é um tekohá, ele diz, um território tradicional do seu povo. Seus antepassados já viviam e estão enterrados aqui.

Tekohá! Para os Guaranis Kaiowás não é só um pedaço de terra, mas o local em que podem viver em harmonia com seus ancestrais, sua cultura e sua história. Acreditam que só aqui eles podem ser eles mesmos.

Com cerca de 50 mil membros, os Guaranis Kaiowás são o segundo maior grupo indígena do Brasil. Sua história é de expulsão e sofrimento. Quando o Mato Grosso começou a ser desenvolvido economicamente, nos anos 1920, o governo brasileiro concentrou os índios em oito reservas e entregou suas terras a colonos brancos e a empresas. Ao longo do século 20, estes as desmataram e criaram plantações e pastagens cada vez maiores.

Hoje, o mato já não existe mais em Mato Grosso do Sul. O nome Monocultura do Sul seria mais adequado. O estado, com exatamente o tamanho da Alemanha, conta cerca de 23 milhões de cabeças de gado zebu. Cada boi tem um hectare de terra para pastar: três vezes mais do que dispõe cada índio nas reservas.

Antes de partir para Pyelito Kue, estive em algumas reservas em locais isolados. O que encontrei foram favelas para nativos. Reinam pobreza, desemprego, violência e narcotráfico. Faltam educação, saúde e possibilidades. A maior parte dos moradores depende do Bolsa Família e da Cesta Básica por não ter terras para cultivar e porque os brancos raramente dão trabalho aos índios. Muitas vezes eles tiram a água que bebem de rios cheios de pesticidas e fertilizantes. Seus filhos já vêm ao mundo doentes e raquíticos.

Há mais uma outra coisa, terrível: suicídios. As reservas de Mato Grosso do Sul acusam índices de suicídio três vezes maiores do que o resto do Brasil. Quase a metade das vítimas tem entre 10 e 19 anos. Elas se estrangulam com uma corda pendurada numa árvore ou num poste.

Por esses motivos nasceu um movimento indígena que diz: "Precisamos sair das reservas e voltar aos nossos tekohás! Queremos viver na terra dos nossos antepassados."

Apykaa Rendy e sua gente integram esse movimento. Nove anos atrás, eles deixaram a reserva de Sassoró e ocuparam seu tekohá. Não demorou muito até o latifundiário a quem pertence o terreno mandar um serviço de segurança particular, cujos homens atiraram nos índios e atearam fogo a seus barracos.

"Eles geralmente vinham à noite", recorda Apykaa Rendy. "Eles atiravam para nos fazer medo. Mas nós não temos medo. A terra nos pertence, pois os nossos antepassados já viviam aqui. Assim está na Constituição brasileira."

Nesse ponto Apykaa Rendy tem razão. Mas isso de pouco adianta. O governo simplesmente ignora a Constituição e não demarca as terras como território indígena. Assim, encoraja os fazendeiros (que muitas vezes nem moram em Mato Grosso do Sul, mas em São Paulo) a mandarem seus pistoleiros contra os índios.

Segundo as Nações Unidas, cerca de 400 índios foram mortos em Mato Grosso do Sul nos últimos 12 anos. Em média, a cada ano é assassinada uma figura de liderança dos Guaranis Kaiowás. A ONU classificou a situação como "dramática".Há uma guerra em Mato Grosso do Sul. Não se trata apenas de terra, mas da questão: O que é justiça?

Por isso fui até Apykaa Rendy. Queria perguntar se o cacique tinha uma mensagem para o presidente da República. Já em 2012, ele e os seus causaram sensação ao escrever uma carta em que descreviam sua situação desesperada.

O texto foi interpretado como anúncio de um suicídio coletivo. Em solidariedade, na época numerosos brasileiros adotaram o apelido "Guarani Kaiowá" no Facebook. Mas foi um mal-entendido, os índios queriam deixar claro que estavam prontos a morrer pelo seu tekohá caso fossem atacados.

Quando pergunto a ApykaaRendy o que ele gostaria de dizer ao presidente do Brasil, ele respira fundo. E fala alto e claro para que todos o compreendam:

Quero dizer ao Senhor Presidente: esta terra é nossa terra. É nosso tekohá. Os brancos dizem que nós ocupamos a terra deles. Mas não pode ser. Nós estávamos aqui antes dos brancos. Eles ocupam a nossa terra. A terra dos Guaranis Kaiowás.

O governo tem que demarcar a nossa terra. Isso é a lei. Mas o governo ajuda aos fazendeiros. Os fazendeiros têm armas. Eles atiram em nós. Nós não temos armas. Os fazendeiros também têm dinheiro para comprar político e juiz. Nós não temos dinheiro. Nós somos pobres e nossas crianças estão com frio e passam fome. Nosso dinheiro é no céu, e Deus vai abrir a porta Dele para a gente.

O Senhor Presidente se dá bem. Mas nós estamos esperando há muitos anos por nossas terras. Nós cumprimos a lei. Nós só ocupamos uma parte do nosso tekohá. Mas a nossa paciência está se acabando. Não podemos mais viver aqui. A terra tem muita areia. Aqui não tem luz, não tem água, não tem saúde.

Chega! Nós vamos ocupar o nosso tekohá inteiro. Nós, Guaranis, sabemos onde são as nossas terras. Não queremos mais Bolsa Família. Queremos viver das nossas terras. Nossas cabeças são erguidas. Nós não temos medo. De ninguém. Não vamos voltar às reservas. Lá somos tristes e nossas almas ficam doentes. Lá tem suicídio. No tekohá não tem suicídio. Aqui estamos com os nossos antepassados. Os Guaranis Kaiowás necessita o tekohá deles para viverem bem. É isso que quero dizer ao Senhor Presidente.

Durante o discurso de Apyyka Rendy foi ficando tarde, e me encaminho de volta ao mundo dos brancos. Eu me pergunto se algum dia o presidente da República vai escutar as palavras do cacique – e o que ele lhe responderia. Mas acredito que elas o interessam bem pouco. Os nativos são os esquecidos do Brasil.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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