A tragédia anunciada de São Paulo
Um prédio abandonado da União, sem padrões mínimos de segurança, ocupado por 140 famílias pobres, que eram exploradas por uma suposta máfia de sem-teto: o que o desastre diz sobre as mazelas da maior cidade brasileira?O incêndio e colapso na madrugada de terça-feira (01/05) de um prédio de mais de 20 andares no centro de São Paulo expôs as mazelas do problema habitacional da maior cidade da América do Sul, onde, estima-se, haja dezenas de outros edifícios ocupados por sem-teto.
No caso específico do edifício Wilton Paes de Almeida, propriedade da União, viviam mais de 140 famílias, que denunciam ser extorquidas por um grupo que ocupara os 11 mil metros quadrados e os repassava a pessoas de baixa renda, explorando sua fragilidade econômica e sua situação de sem-teto.
Isso veio à tona quando uma das sobreviventes, ao dizer à TV que pagava uma taxa opcional para viver ali, gerou indignação de outros moradores, que afirmavam serem obrigados a desembolsar até 500 reais por mês para morar no prédio.
O desastre, que até agora tem um morto confirmado, também chamou a atenção para o déficit habitacional da cidade, a falta de investimentos públicos no setor de moradia e a ausência de uma fiscalização eficaz por parte dos órgãos de segurança.
"Foi um episódio agudo de um problema crônico. Uma tragédia que virou um monumento à incapacidade vista nas últimas décadas de formular e implantar políticas públicas de habitação social que consigam atingir seus objetivos com velocidade”, analisa Valter Caldana, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Sem políticas de habitação eficientes, ocupações como a do prédio que desabou teriam se intensificado diante da inflação imobiliária e da crise econômica. Segundo a Prefeitura, só na região central de São Paulo são 70 os edifícios ocupados, habitados por cerca de 4 mil famílias.
Segundo dados da Secretaria Municipal da Habitação em São Paulo, 1,118 milhão de famílias vivem em situação precária na cidade. O número engloba o déficit habitacional de 358 mil moradias e 830 mil famílias vivendo em assentamentos precários e que precisam de melhorias.
Em 2017, de acordo com um levantamento realizado também pela Prefeitura, havia 133 imóveis ocupados na capital, a maioria (75%) concentrados no centro e na zona norte. No caso dos habitantes do edifício que caiu, algumas reportagens apontam se tratar de catadores, pessoas que realizavam pequenos serviços, motoboys, garotas de programa.
Habitação precária
Projetado na década de 1960 para sediar a Cia. Comercial Vidros do Brasil (CVB), o prédio tinha 24 andares, além de dois pisos de sobrelojas comerciais, que ocupavam 11 mil metros quadrados. Nos seus últimos momentos, estava marcado por pichações e revelava, através dos vidros de sua fachada característica, uma ocupação que abrigava 146 famílias. Das 372 pessoas que ali viviam, 328 saíram do prédio em chamas com vida. Um dos moradores desapareceu quando o edifício veio abaixo. O paradeiro dos demais ainda é desconhecido.
Considerado vanguarda na época em que foi projetado por Roger Zmekhol, o edifício Wilton Paes de Almeida abrigou a sede da Polícia Federal por 23 anos. Até 2009, sediava uma agência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Já abandonado, passou para as mãos da União e, sem uso, estava há seis anos ocupado.
Os amplos espaços eram divididos precariamente por meio de tapumes de madeira. Para os bombeiros, a grande presença de materiais inflamáveis, associada à estrutura do prédio, cuja retirada dos elevadores criou uma espécie de chaminé, contribuiu para que as chamas se espalhassem rapidamente.
Outro fator crítico, apontado pelo arquiteto paulistano Roberto Novelli Fialho, foi a mudança de finalidade do local. Projetado para abrigar escritórios, o prédio não seria preparado para suportar a densidade populacional de moradias familiares, que normalmente têm mais pessoas por andar e também estruturas diferentes para gás e eletricidade.
Construído em 1961, o edifício Wilton Paes de Almeida foi muito bem utilizado como escritório por décadas. No entanto, o seu projeto inicial não previa o abandono do poder público e as ocupações familiares. É importante deixar claro que não existe prédio perfeito à prova de fogo, então todos devem ter um plano de emergência adequado em caso de incêndio. A Prefeitura de São Paulo cita que há mais de 70 prédios ocupados, então todos devem ser vistoriados com urgência para evitar que tragédias como essa se repitam", alerta o pesquisador, que estudou o edifício em sua tese de doutorado na USP, defendida em 2007.
As pessoas que viviam no edifício, localizado no número 34 da rua Antônio de Godoy, eram de baixíssima renda. Os sobreviventes agora agrupam-se e recebem doações a cem metros do local do incêndio, em frente a uma igreja. Muitos não querem ir para os abrigos oferecidos pela prefeitura e cobram das autoridades uma resposta definitiva para o problema.
"Uma cidade doente"
Para Luiz Kohara, membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e especialista na questão de moradia, os baixos salários da população em geral (insuficientes para arcar com um domicílio nas grandes cidades), o alto custo da moradia, a falta de controle sobre a especulação imobiliária e, somada a esta, o grande número de imóveis vazios ou desocupados, são as principais causas do problema de habitação em São Paulo.
"Na região central, um quarto de cortiço extremamente precário, com cerca de 9m2, está custando hoje entre 800 e 900 reais. Mesmo na periferia, é impossível para a população de baixa renda acessar um imóvel, ainda que no mercado informal”, explica o doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Essa situação, explica, somada à falta de políticas públicas e à especulação imobiliária desenfreada, ajuda a empurrar essas pessoas para a ocupação de prédios ou edifícios vazios ou abandonados.
"Na medida em que as famílias trabalhadoras não têm renda suficiente, o estado deveria favorecer esse acesso [à moradia]. Mas não temos políticas públicas suficientes para enfrentar esse problema”, diz.
Uma possível solução seria a produção massiva de moradias populares pelo próprio estado. "Enquanto não se tem isso, é importante programas como o auxílio ou bolsa-aluguel, em que o setor público arca por um período determinado com o custo do aluguel para famílias de baixa renda. Mas programas como esse devem ser intermediários e articulados com programas de produção de moradia definitiva. Ela sozinha é bastante complicada”, analisa. "O poder público, nos últimos anos, tem discutido esses programas e investido neles, mas sempre de forma muito lenta e insuficiente”, critica Kohara.
Para Caldana, do Mackenzie, a política de moradia é bastante discutida, mas é prejudicada pela lentidão. "Não só por falta de dinheiro, mas pela falta de objetividade tanto do poder público quanto da sociedade como um todo, que ainda enxerga a questão do acesso à habitação como um problema do outro, daquele que não tem, e não de toda a sociedade. Uma cidade onde vive uma parcela sem moradia é uma cidade doente”, critica.
Arquiteto, urbanista e relator do Plano Diretor Estratégico em São Paulo, o vereador Nabil Bonduki (PT-SP) creditou o episódio, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, à falta de prioridade dada à habitação nas três esferas governamentais. Para ele, não se trata de um caso de tragédia natural ou fatalidade, mas de um drama social que poderia ter sido evitado.
"O drama desta terça não pode ser usado para culpabilizar os movimentos que lutam por moradia digna bem localizada nem para impulsionar uma política de higienização do centro. Ao contrário, deve deflagrar iniciativas governamentais para, em conjunto com os movimentos sérios, formular e implementar uma estratégia de produção massiva de habitação social em áreas bem localizadas”, escreveu.
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No caso específico do edifício Wilton Paes de Almeida, propriedade da União, viviam mais de 140 famílias, que denunciam ser extorquidas por um grupo que ocupara os 11 mil metros quadrados e os repassava a pessoas de baixa renda, explorando sua fragilidade econômica e sua situação de sem-teto.
Isso veio à tona quando uma das sobreviventes, ao dizer à TV que pagava uma taxa opcional para viver ali, gerou indignação de outros moradores, que afirmavam serem obrigados a desembolsar até 500 reais por mês para morar no prédio.
O desastre, que até agora tem um morto confirmado, também chamou a atenção para o déficit habitacional da cidade, a falta de investimentos públicos no setor de moradia e a ausência de uma fiscalização eficaz por parte dos órgãos de segurança.
"Foi um episódio agudo de um problema crônico. Uma tragédia que virou um monumento à incapacidade vista nas últimas décadas de formular e implantar políticas públicas de habitação social que consigam atingir seus objetivos com velocidade”, analisa Valter Caldana, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Sem políticas de habitação eficientes, ocupações como a do prédio que desabou teriam se intensificado diante da inflação imobiliária e da crise econômica. Segundo a Prefeitura, só na região central de São Paulo são 70 os edifícios ocupados, habitados por cerca de 4 mil famílias.
Segundo dados da Secretaria Municipal da Habitação em São Paulo, 1,118 milhão de famílias vivem em situação precária na cidade. O número engloba o déficit habitacional de 358 mil moradias e 830 mil famílias vivendo em assentamentos precários e que precisam de melhorias.
Em 2017, de acordo com um levantamento realizado também pela Prefeitura, havia 133 imóveis ocupados na capital, a maioria (75%) concentrados no centro e na zona norte. No caso dos habitantes do edifício que caiu, algumas reportagens apontam se tratar de catadores, pessoas que realizavam pequenos serviços, motoboys, garotas de programa.
Habitação precária
Projetado na década de 1960 para sediar a Cia. Comercial Vidros do Brasil (CVB), o prédio tinha 24 andares, além de dois pisos de sobrelojas comerciais, que ocupavam 11 mil metros quadrados. Nos seus últimos momentos, estava marcado por pichações e revelava, através dos vidros de sua fachada característica, uma ocupação que abrigava 146 famílias. Das 372 pessoas que ali viviam, 328 saíram do prédio em chamas com vida. Um dos moradores desapareceu quando o edifício veio abaixo. O paradeiro dos demais ainda é desconhecido.
Considerado vanguarda na época em que foi projetado por Roger Zmekhol, o edifício Wilton Paes de Almeida abrigou a sede da Polícia Federal por 23 anos. Até 2009, sediava uma agência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Já abandonado, passou para as mãos da União e, sem uso, estava há seis anos ocupado.
Os amplos espaços eram divididos precariamente por meio de tapumes de madeira. Para os bombeiros, a grande presença de materiais inflamáveis, associada à estrutura do prédio, cuja retirada dos elevadores criou uma espécie de chaminé, contribuiu para que as chamas se espalhassem rapidamente.
Outro fator crítico, apontado pelo arquiteto paulistano Roberto Novelli Fialho, foi a mudança de finalidade do local. Projetado para abrigar escritórios, o prédio não seria preparado para suportar a densidade populacional de moradias familiares, que normalmente têm mais pessoas por andar e também estruturas diferentes para gás e eletricidade.
Construído em 1961, o edifício Wilton Paes de Almeida foi muito bem utilizado como escritório por décadas. No entanto, o seu projeto inicial não previa o abandono do poder público e as ocupações familiares. É importante deixar claro que não existe prédio perfeito à prova de fogo, então todos devem ter um plano de emergência adequado em caso de incêndio. A Prefeitura de São Paulo cita que há mais de 70 prédios ocupados, então todos devem ser vistoriados com urgência para evitar que tragédias como essa se repitam", alerta o pesquisador, que estudou o edifício em sua tese de doutorado na USP, defendida em 2007.
As pessoas que viviam no edifício, localizado no número 34 da rua Antônio de Godoy, eram de baixíssima renda. Os sobreviventes agora agrupam-se e recebem doações a cem metros do local do incêndio, em frente a uma igreja. Muitos não querem ir para os abrigos oferecidos pela prefeitura e cobram das autoridades uma resposta definitiva para o problema.
"Uma cidade doente"
Para Luiz Kohara, membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e especialista na questão de moradia, os baixos salários da população em geral (insuficientes para arcar com um domicílio nas grandes cidades), o alto custo da moradia, a falta de controle sobre a especulação imobiliária e, somada a esta, o grande número de imóveis vazios ou desocupados, são as principais causas do problema de habitação em São Paulo.
"Na região central, um quarto de cortiço extremamente precário, com cerca de 9m2, está custando hoje entre 800 e 900 reais. Mesmo na periferia, é impossível para a população de baixa renda acessar um imóvel, ainda que no mercado informal”, explica o doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Essa situação, explica, somada à falta de políticas públicas e à especulação imobiliária desenfreada, ajuda a empurrar essas pessoas para a ocupação de prédios ou edifícios vazios ou abandonados.
"Na medida em que as famílias trabalhadoras não têm renda suficiente, o estado deveria favorecer esse acesso [à moradia]. Mas não temos políticas públicas suficientes para enfrentar esse problema”, diz.
Uma possível solução seria a produção massiva de moradias populares pelo próprio estado. "Enquanto não se tem isso, é importante programas como o auxílio ou bolsa-aluguel, em que o setor público arca por um período determinado com o custo do aluguel para famílias de baixa renda. Mas programas como esse devem ser intermediários e articulados com programas de produção de moradia definitiva. Ela sozinha é bastante complicada”, analisa. "O poder público, nos últimos anos, tem discutido esses programas e investido neles, mas sempre de forma muito lenta e insuficiente”, critica Kohara.
Para Caldana, do Mackenzie, a política de moradia é bastante discutida, mas é prejudicada pela lentidão. "Não só por falta de dinheiro, mas pela falta de objetividade tanto do poder público quanto da sociedade como um todo, que ainda enxerga a questão do acesso à habitação como um problema do outro, daquele que não tem, e não de toda a sociedade. Uma cidade onde vive uma parcela sem moradia é uma cidade doente”, critica.
Arquiteto, urbanista e relator do Plano Diretor Estratégico em São Paulo, o vereador Nabil Bonduki (PT-SP) creditou o episódio, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, à falta de prioridade dada à habitação nas três esferas governamentais. Para ele, não se trata de um caso de tragédia natural ou fatalidade, mas de um drama social que poderia ter sido evitado.
"O drama desta terça não pode ser usado para culpabilizar os movimentos que lutam por moradia digna bem localizada nem para impulsionar uma política de higienização do centro. Ao contrário, deve deflagrar iniciativas governamentais para, em conjunto com os movimentos sérios, formular e implementar uma estratégia de produção massiva de habitação social em áreas bem localizadas”, escreveu.
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