Guinada na política de drogas avança no Congresso
Criticado por especialistas por focar tratamento baseado em abstinência e não diferenciar traficantes de usuários, projeto que pode transformar em lei diretrizes do governo Bolsonaro é aprovado em comissões do Senado.O governo Jair Bolsonaro conseguiu uma vitória significativa no Senado nesta quarta-feira (08/05). As Comissões de Assuntos Econômicos e Assuntos Sociais aprovaram um projeto que transforma em lei muitos dos dispositivos presentes na Política Nacional sobre Drogas, divulgada no mês passado.
Entre outros pontos, o projeto regula a internação compulsória de dependentes químicos, estimula as chamadas comunidades terapêuticas como forma de tratamento, desconsidera estratégias de redução de danos e não cria critérios objetivos para diferenciar traficantes de usuários. O projeto também prevê o aumento da pena mínima para o traficante que comandar organização criminosa, de cinco para oito anos de reclusão, com máximo de 15 anos.
O texto aprovado é o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 37, de 2013. Seu autor é o ex-deputado e atual ministro da Cidadania, Osmar Terra. O governo atuou para conseguir fazer avançar o projeto. Durante os debates, a intenção do Planalto pareceu ser tentar esvaziar o julgamento sobre a descriminalização das drogas previsto para o próximo dia 5 de junho no Supremo Tribunal Federal (STF). Parado desde 2017, o julgamento conta com três votos favoráveis à descriminalização do uso de drogas, mas seu desfecho é incerto.
A impressão é de que a preocupação do governo era aprovar o texto do PLC de maneira rápida. Para isso, era preciso fazer avançar o texto original, sem alterações. Segundo o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), seu partido havia apresentado duas emendas, mas acabou retirando diante da promessa do ministro Osmar Terra de fazer modificações no texto via Medida Provisória, após o texto ser aprovado.
No Senado, coube ao senador Styvenson Valentim (PODE-RN), relator nas Comissões de Assuntos Econômicos e Assuntos Sociais, garantir uma tramitação expressa. Ele apresentou seu relatório sem a realização de audiências públicas e descartou alterações ao projeto original feitas em outras comissões nos últimos anos.
Essas mudanças incluíam, por exemplo, dispositivos que permitem a importação de derivados e produtos à base de cannabis para uso terapêutico e a criação de um limite máximo de porte de drogas para diferenciar o usuário comum do traficante.
Segundo Valentim, mudanças como essas não trariam benefícios à sociedade. O senador, que é capitão da Polícia Militar e está em seu primeiro mandato, é particularmente crítico das propostas que estabelecem uma quantidade máxima para separar traficantes de usuários.
"No momento que a lei diz quanto é tráfico, o que acontece desse valor para baixo? A permissão?", questiona. "Pergunte à mãe daquele garoto que está dentro de casa quebrando tudo, com a faca no pescoço dela, pedindo dinheiro para comprar droga, se ela quer liberar isso daí", afirma.
Comunidades terapêuticas
Um dos pontos mais criticados do projeto é a permissão de injeção de dinheiro público nas comunidades terapêuticas, instituições privadas, em geral de cunho religioso, muitas delas evangélicas. Para os críticos, é um problema o fato de as comunidades terapêuticas pregarem a abstinência total, um sistema de tratamento no qual o usuário é obrigado a não consumir entorpecentes.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), por exemplo, afirmou em abril que tratar a abstinência como única política pública é "medida muito nociva" à população. O CFP e outros especialistas defendem a redução de danos, em que o usuário tem acompanhamento para reduzir o uso de entorpecentes, sem necessariamente entrar em abstinência. Para o órgão, isso dá autonomia ao paciente.
A redução de danos era, até agora, a principal ferramenta de tratamento da política de drogas brasileira. Por meio dos centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), que são regulados por lei e devem ter uma equipe multidisciplinar à disposição do público, os usuários tinham contato com médicos e psicólogos que os ajudavam a tentar mudar a relação com a droga. A abstinência era um objetivo, mas a melhoria da qualidade de vida, também.
O apoio às comunidades terapêuticas é visto com preocupação, pois o projeto não traz exigências mínimas para o funcionamento dessas instituições. Não há, por exemplo, diretrizes de quantos e quais médicos devem trabalhar nesses locais. A crítica é reforçada por uma inspeção, realizada pelo CFP e pelo Ministério Público Federal em 2017, que flagrou inúmeros abusos nessas instituições, entre eles indícios de tortura, administração irregular de medicamentos e violação de liberdade religiosa.
Ao justificar seu voto pela aprovação do projeto, o senador Styvenson Valentim argumentou que o Brasil tem um problema de drogas de "proporções epidêmicas". É o mesmo raciocínio do ministro Osmar Terra. Para os críticos, esse tipo de pensamento não tem base científica.
No fim de março, uma investigação do instituto Casa da Democracia e do site The Intercept revelou um estudo feito em 2016 pela Fundação Oswaldo Cruz sobre o uso de drogas no Brasil. O documento, cuja divulgação foi barrada pelo Ministério da Justiça no governo de Michel Temer, mostra que o Brasil não vive uma epidemia de uso de drogas, ao contrário do que afirmaram setores conservadores influentes na gestão de Temer e na de Bolsonaro.
"A evidência científica disponível contraria a tese que embasou a apresentação desse projeto de lei e que é a tese que orienta toda a política de drogas do atual governo", afirma Maronna, da PBPD.
Usuário x traficante
Além disso, para críticos do projeto, a tramitação acelerada no Congresso mostra o ímpeto "autoritário" dos apoiadores do governo.
"Querem passar o rolo compressor para impor mudanças que vêm sendo rechaçadas no mundo todo", afirma Cristiano Maronna, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), uma rede de organizações não governamentais. "Se analisarmos modelos regulatórios de drogas em países desenvolvidos vamos perceber que a tendência é de flexibilização", diz.
Atualmente, dezenas de países possuem critérios objetivos, expressos em gramas de maconha, por exemplo, para separar traficantes de usuários. No Brasil, a Lei das Drogas, de 2006, não faz essa distinção, que cabe ao Judiciário. Um estudo publicado em 2017 pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo mostrou que em 74% dos casos o julgamento ocorre apenas com base no depoimento dos policiais responsáveis pela prisão.
A falta de distinção entre traficantes e usuários é apontada como um dos motores do forte crescimento da população prisional brasileira. Entre 2006, quando foi aprovada a Lei das Drogas, e 2016, o número de presos cresceu mais de 81%.
Dos homens presos, 26% têm envolvimento com o tráfico de drogas. Entre as mulheres, são 62%. O encarceramento em massa afeta de maneira desproporcional as populações pobres e negras. Enquanto 53% da população brasileira se autodeclara negra, a população carcerária tem 64% de negros.
"Onde você vai ver o maior abuso por parte do Estado e de dificuldades para acessar direitos por falta de recursos é nas regiões pobres", diz Nathalia Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas (INNPD).
"Nas camadas pobres brasileiras, por conta da escravização e de uma abolição inconclusa, o que temos é que raça determina classe, então o que vemos é uma prevalência [da repressão] contra a população negra", afirma.
Apesar do avanço do projeto, que ainda passará pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado antes de ir para o Plenário, a vitória do governo pode ser temporária. Isso porque, no dia 5 de junho, o STF pode determinar que o Estado brasileiro não tem o direito de criminalizar o consumo de drogas.
Se essa decisão for tomada, ela pode fazer com que seja necessário explicitar na lei a diferenciação entre usuário e traficante. O projeto aprovado gera a possibilidade de aumento de pena em alguns casos de tráfico, mas não isenta o usuário. Durante a reunião, alguns senadores compararam o ato de comprar drogas ao de receber mercadorias roubadas, para indicar que não concordam com a eventual descriminalização do consumo de drogas. O desfecho da decisão do STF pode, portanto, dar início a um duro embate entre o governo Bolsonaro e o Judiciário.
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Autor: José Antonio Lima
Entre outros pontos, o projeto regula a internação compulsória de dependentes químicos, estimula as chamadas comunidades terapêuticas como forma de tratamento, desconsidera estratégias de redução de danos e não cria critérios objetivos para diferenciar traficantes de usuários. O projeto também prevê o aumento da pena mínima para o traficante que comandar organização criminosa, de cinco para oito anos de reclusão, com máximo de 15 anos.
O texto aprovado é o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 37, de 2013. Seu autor é o ex-deputado e atual ministro da Cidadania, Osmar Terra. O governo atuou para conseguir fazer avançar o projeto. Durante os debates, a intenção do Planalto pareceu ser tentar esvaziar o julgamento sobre a descriminalização das drogas previsto para o próximo dia 5 de junho no Supremo Tribunal Federal (STF). Parado desde 2017, o julgamento conta com três votos favoráveis à descriminalização do uso de drogas, mas seu desfecho é incerto.
A impressão é de que a preocupação do governo era aprovar o texto do PLC de maneira rápida. Para isso, era preciso fazer avançar o texto original, sem alterações. Segundo o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), seu partido havia apresentado duas emendas, mas acabou retirando diante da promessa do ministro Osmar Terra de fazer modificações no texto via Medida Provisória, após o texto ser aprovado.
No Senado, coube ao senador Styvenson Valentim (PODE-RN), relator nas Comissões de Assuntos Econômicos e Assuntos Sociais, garantir uma tramitação expressa. Ele apresentou seu relatório sem a realização de audiências públicas e descartou alterações ao projeto original feitas em outras comissões nos últimos anos.
Essas mudanças incluíam, por exemplo, dispositivos que permitem a importação de derivados e produtos à base de cannabis para uso terapêutico e a criação de um limite máximo de porte de drogas para diferenciar o usuário comum do traficante.
Segundo Valentim, mudanças como essas não trariam benefícios à sociedade. O senador, que é capitão da Polícia Militar e está em seu primeiro mandato, é particularmente crítico das propostas que estabelecem uma quantidade máxima para separar traficantes de usuários.
"No momento que a lei diz quanto é tráfico, o que acontece desse valor para baixo? A permissão?", questiona. "Pergunte à mãe daquele garoto que está dentro de casa quebrando tudo, com a faca no pescoço dela, pedindo dinheiro para comprar droga, se ela quer liberar isso daí", afirma.
Comunidades terapêuticas
Um dos pontos mais criticados do projeto é a permissão de injeção de dinheiro público nas comunidades terapêuticas, instituições privadas, em geral de cunho religioso, muitas delas evangélicas. Para os críticos, é um problema o fato de as comunidades terapêuticas pregarem a abstinência total, um sistema de tratamento no qual o usuário é obrigado a não consumir entorpecentes.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), por exemplo, afirmou em abril que tratar a abstinência como única política pública é "medida muito nociva" à população. O CFP e outros especialistas defendem a redução de danos, em que o usuário tem acompanhamento para reduzir o uso de entorpecentes, sem necessariamente entrar em abstinência. Para o órgão, isso dá autonomia ao paciente.
A redução de danos era, até agora, a principal ferramenta de tratamento da política de drogas brasileira. Por meio dos centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), que são regulados por lei e devem ter uma equipe multidisciplinar à disposição do público, os usuários tinham contato com médicos e psicólogos que os ajudavam a tentar mudar a relação com a droga. A abstinência era um objetivo, mas a melhoria da qualidade de vida, também.
O apoio às comunidades terapêuticas é visto com preocupação, pois o projeto não traz exigências mínimas para o funcionamento dessas instituições. Não há, por exemplo, diretrizes de quantos e quais médicos devem trabalhar nesses locais. A crítica é reforçada por uma inspeção, realizada pelo CFP e pelo Ministério Público Federal em 2017, que flagrou inúmeros abusos nessas instituições, entre eles indícios de tortura, administração irregular de medicamentos e violação de liberdade religiosa.
Ao justificar seu voto pela aprovação do projeto, o senador Styvenson Valentim argumentou que o Brasil tem um problema de drogas de "proporções epidêmicas". É o mesmo raciocínio do ministro Osmar Terra. Para os críticos, esse tipo de pensamento não tem base científica.
No fim de março, uma investigação do instituto Casa da Democracia e do site The Intercept revelou um estudo feito em 2016 pela Fundação Oswaldo Cruz sobre o uso de drogas no Brasil. O documento, cuja divulgação foi barrada pelo Ministério da Justiça no governo de Michel Temer, mostra que o Brasil não vive uma epidemia de uso de drogas, ao contrário do que afirmaram setores conservadores influentes na gestão de Temer e na de Bolsonaro.
"A evidência científica disponível contraria a tese que embasou a apresentação desse projeto de lei e que é a tese que orienta toda a política de drogas do atual governo", afirma Maronna, da PBPD.
Usuário x traficante
Além disso, para críticos do projeto, a tramitação acelerada no Congresso mostra o ímpeto "autoritário" dos apoiadores do governo.
"Querem passar o rolo compressor para impor mudanças que vêm sendo rechaçadas no mundo todo", afirma Cristiano Maronna, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), uma rede de organizações não governamentais. "Se analisarmos modelos regulatórios de drogas em países desenvolvidos vamos perceber que a tendência é de flexibilização", diz.
Atualmente, dezenas de países possuem critérios objetivos, expressos em gramas de maconha, por exemplo, para separar traficantes de usuários. No Brasil, a Lei das Drogas, de 2006, não faz essa distinção, que cabe ao Judiciário. Um estudo publicado em 2017 pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo mostrou que em 74% dos casos o julgamento ocorre apenas com base no depoimento dos policiais responsáveis pela prisão.
A falta de distinção entre traficantes e usuários é apontada como um dos motores do forte crescimento da população prisional brasileira. Entre 2006, quando foi aprovada a Lei das Drogas, e 2016, o número de presos cresceu mais de 81%.
Dos homens presos, 26% têm envolvimento com o tráfico de drogas. Entre as mulheres, são 62%. O encarceramento em massa afeta de maneira desproporcional as populações pobres e negras. Enquanto 53% da população brasileira se autodeclara negra, a população carcerária tem 64% de negros.
"Onde você vai ver o maior abuso por parte do Estado e de dificuldades para acessar direitos por falta de recursos é nas regiões pobres", diz Nathalia Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas (INNPD).
"Nas camadas pobres brasileiras, por conta da escravização e de uma abolição inconclusa, o que temos é que raça determina classe, então o que vemos é uma prevalência [da repressão] contra a população negra", afirma.
Apesar do avanço do projeto, que ainda passará pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado antes de ir para o Plenário, a vitória do governo pode ser temporária. Isso porque, no dia 5 de junho, o STF pode determinar que o Estado brasileiro não tem o direito de criminalizar o consumo de drogas.
Se essa decisão for tomada, ela pode fazer com que seja necessário explicitar na lei a diferenciação entre usuário e traficante. O projeto aprovado gera a possibilidade de aumento de pena em alguns casos de tráfico, mas não isenta o usuário. Durante a reunião, alguns senadores compararam o ato de comprar drogas ao de receber mercadorias roubadas, para indicar que não concordam com a eventual descriminalização do consumo de drogas. O desfecho da decisão do STF pode, portanto, dar início a um duro embate entre o governo Bolsonaro e o Judiciário.
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Autor: José Antonio Lima
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