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Médico brasileiro encontrou a liberdade no frio do Canadá

23/12/2021 14h13

Médico brasileiro encontrou a liberdade no frio do Canadá - Caio Barbosa é neonatologista em hospital público de Toronto, namora um professor de teatro e não pensa em voltar a morar no Brasil.Em 2017, assim que se mudou para Montreal, na região francófona do Canadá, o médico Caio Barbosa, hoje com 34 anos, achou que uma maneira efetiva de treinar o idioma – que ele já havia estudado no Brasil – era assistindo novamente, com dublagem em francês, a filmes infantis clássicos.

"Como são de vocabulário fácil, linguagem para crianças, e eu já sabia os diálogos e conseguia entender as histórias, era uma boa ideia", comenta ele. Numa dessas, o filme escolhido foi Frozen - O reino do gelo, de 2013.

Então ele notou uma diferença de tradução. Quando a personagem Elsa fala "the cold never bothered me anyway" (o frio nunca me incomodou), a versão francófona dubla a frase com o sentido de "o frio, para mim, é o preço da liberdade".

Tão logo percebeu isso, Caio sorriu por dentro. Talvez até tenha olhado pela janela e encarado aquele clima terrível para um brasileiro – o inverno canadense em seu auge. Mas teve a certeza de que, sim, havia tomado a decisão certa ao ter se tornado um dos 121.950 nascidos no Brasil que atualmente vivem no Canadá, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores.

Primeiro em Montreal, agora em Toronto, o jovem médico todos os dias pensa que finalmente se sente autêntico. "É clichê mas é o que eu mais gosto daqui: essa liberdade", comenta. "É poder ser quem eu sou da forma como eu quiser. Posso ser quem eu sempre soube que eu era."

A oportunidade no hemisfério norte

Nascido em Taquarituba, no interior de São Paulo, Caio queria ser médico desde a infância. Em 2012 graduou-se pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nos quatro anos seguintes fez residência na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e, no fim de 2016, estava com a carreira encaminhada, como pediatra neonatologista, para trabalhar em hospitais de Bauru, no centro-oeste do estado.

Foi quando, graças a uma rede de contatos feita na universidade pública, ele conseguiu a oportunidade de fazer um curto estágio de quatro semanas em Montreal. Sua dedicação e competência impressionaram os profissionais canadenses e, ao fim do período, foi convidado a se candidatar para um programa mais longo, de dois anos. "Minha primeira pergunta foi: mas eu sou elegível?", recorda. "E eles disseram: claro que é. Porque aqui no Canadá a sociedade é muito diversa, é muito baseada em imigrantes…"

Alguns meses depois, quando ele estava dando plantão em um hospital público de Bauru, recebeu um e-mail. Podia arrumar as malas: a vaga no Canadá era dele.

No extremo norte da América, ficou claro para ele que havia um problema em toda a sua carreira brasileira: o equilíbrio entre o profissional e o pessoal. "Aqui aprendi que essas duas faces precisam estar casadas. No Brasil eu só pensava em escola, depois faculdade, depois trabalho… Tudo era meta, mas nunca parava para ver quem eu era de verdade", comenta.

Caio diz que é por isso que nunca antes, por exemplo, havia engrenado um relacionamento estável. "Essa é outra razão pela qual eu acabei saindo do país", conta. "Aqui no Canadá jamais sofri preconceito por ser imigrante ou por qualquer outra razão. Mas no Brasil, já sofri, mesmo sendo homem branco. Porque eu sou gay."

Para ele, do bullying recorrente do período escolar às piadas machistas que ouvia já no meio médico, o desconforto com sua orientação sexual era constante. "Aqui no Canadá as pessoas se importam mais com meu time de hóquei do que com minha sexualidade", compara.

Tanto que ele se declarou homossexual para a família só quando estava de mudança para o exterior. "Não foi uma saída do armário, foi uma explosão do armário. Falei para meus pais que não estava pedindo a opinião deles, mas informando para que, caso eles escutassem alguma história, soubessem que eu estava fazendo uma declaração limpa e honesta da realidade. E que isso era algo que sempre fizera parte de mim, não era consequência da mudança de país", relata.

Se o ambiente canadense permitiu que ele fosse um médico que não precisava ter qualquer temor sobre a vida privada, foi lá que finalmente um relacionamento longo aconteceu. Desde 2019, Caio namora Gabriel, um professor americano de teatro.

Profissionalmente realizado

Terminados os dois anos do programa em Montreal, o médico brasileiro transferiu-se para Toronto. A partir de então começou a trabalhar no hospital Mount Sinai, atuando no setor de neonatologia. Em paralelo, faz mestrado na universidade local.

Sobre o exercício da medicina, ele é só elogios. Diz que é fascinado com a possibilidade de poder aplicar, no dia a dia, conhecimentos científicos recém-publicados em periódicos científicos. No Brasil, dizia-se um tanto frustrado com isso: mesmo se mantendo atualizado, era obrigado a seguir protocolos que demoravam muito a serem ajustados. "Aqui, se justificamos a conduta com base em um estudo sério recente, podemos optar pela abordagem", exemplifica ele.

Ele sente falta dos almoços de domingo com a família, na casa dos avós. "Aqueles dias em que não precisava me preocupar com nada", suspira. Quando quer um afago na alma, comprovar que, apesar do frio lá fora, está tudo bem, recorre ao Uber Eats e pede um pastel, uma coxinha, um guaraná em algum delivery voltado a imigrantes. É um jeito de aplacar a dor da distância.

Mas não pensa em retornar ao país natal. Ainda mais porque tem receio de encontrar um Brasil pior – menos inclusivo – do que aquele que deixou. "Naquela época, algo já me dizia que alguma coisa estranha estava acontecendo no país", recorda. "Hoje acredito que eu não conseguiria mais me estabelecer lá, nem pensar em fazer alguma coisa."

Além da discriminação – que ele acredita ter piorado depois da eleição do presidente Jair Bolsonaro e da legitimação de certas vozes que lhe dão apoio –, Caio também conta que sempre se incomodou com a necessidade cultural de um médico, no Brasil, ter de ostentar certo status. "Como se a pessoa com jaleco precisasse sempre ser tratada por doutor e manter um distanciamento, uma superioridade", diz. "Eu nunca me importei com título. Para mim, a medicina é um trabalho. Em meu dia a dia, faço prescrição, converso com os familiares, faço o meu melhor. Mas é um trabalho. O status que isso traz não significa nada."
Autor: Edison Veiga