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Por que existe o medo de uma "ameaça comunista"?

25/10/2022 09h37

Por que existe o medo de uma "ameaça comunista"? - Sem vínculo com a história e geopolítica, termo "comunista" foi resgatado no Brasil e aparece como ameaça no discurso da extrema direita. Na Alemanha seria inimaginável usá-lo para atacar o Estado de bem-estar social.Nas últimas décadas, o vocábulo "comunismo" ganhou força nas guerras ideológicas travadas em redes sociais e até mesmo no discurso oficial da política brasileira. Seu uso foi intensificado durante esta campanha eleitoral e vem sendo apresentado pela extrema direita como uma espécie de ameaça. Por outro lado, é apropriado por parte da esquerda, em tom de brincadeira ou ironia, como sinônimo de defesa de conquistas sociais.

Ignorando as discussões sérias sobre o conceito, que vão desde a remota Grécia Antiga, passando pelas teorias de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), até chegar aos movimentos revolucionários do século 20 – que beberam na fonte desses dois pensadores –, a extrema direita brasileira hoje não teme fazer um uso leviano do termo, segundo explicam especialistas ouvidos pela DW Brasil.

Assim, acaba se referindo a "comunismo" para nomear metas sociais há muito assimiladas por partidos europeus de centro e de esquerda, que ocuparam e ocupam o poder em diversos países do continente desde o pós-Guerra. Essas legendas buscam prioritariamente, ou pelo menos em tese, diminuir desigualdades sociais.

"Se o fascismo histórico se apresentava nos anos 1920 e 1930 como resposta a uma ameaça revolucionária concreta – o comunismo havia sido vitorioso na Rússia e estava em ascensão em vários países –, hoje esta ameaça é completamente inexistente, mas está presente o tempo todo no discurso de líderes como Jair Bolsonaro, por exemplo", comenta o professor de filosofia Rodrigo Nunes, da PUC-Rio e autor do livro Do transe à vertigem. Ensaios sobre o bolsonarismo em um mundo em transição, publicado em 2022.

Anticomunismo: "costura discursiva" e sem distinção entre fatos e opinião

Para Nunes, isso ocorre justamente porque a palavra não corresponde a nada de concreto e pode, assim, se aplicar a praticamente qualquer coisa. "O anticomunismo acaba assumindo a função de dar uma costura discursiva a uma série de objetos que antes estavam soltos: mudanças de costumes, políticas sociais, corrupção, ineficiência econômica. É uma lógica paranoica, mas muito eficaz: se nós não vemos o comunismo, é precisamente porque ele está por trás de uma série de outras coisas que vemos."



Pouco importa se o termo "comunista" se refira a algo real, o que vale é que ele permite às pessoas "tratar como um mal a ser extirpado qualquer proposta de alívio ao inferno da vida cotidiana", analisa o professor Vladimir Puzone, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"Ou seja, o uso do termo afasta o confronto com a realidade. Essa paranoia foi constantemente reforçada na sociedade americana a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e serviu de inspiração para a direita brasileira mais recentemente", completa.

O que acontece quando se usa a palavra "comunista" hoje, comenta a professora Luciana Villas Bôas, do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da UFRJ, também diz respeito a uma total indiferença à distinção entre verdade factual e opinião. "Essa indiferença talvez explique por que a noção de 'comunista' pode ser totalmente esvaziada dos sentidos concretos que assumiu em situações históricas específicas."

"A grande explicação para o que está acontecendo"

Ressuscitado no Brasil no início do primeiro governo do PT, em 2003 , esse anticomunismo de mira difusa surgiu "quase que por reflexo", diz Nunes. "Na verdade, o 'pânico vermelho' e os pânicos morais em torno de questões de costumes foram as únicas armas que a oposição teve para atacar o governo durante um bom tempo, porque a economia estava indo bem, a população estava satisfeita e mesmo o escândalo do mensalão fora insuficiente para danificar essa popularidade", completa.



Naquele momento, começaram a surgir no país think tanks, com o propósito de divulgar ideias ultraliberais. "É a partir daí que o anticomunismo começa a mudar de sentido e adquire essa função metanarrativa: ele deixa de ser uma arma entre outras e se torna a grande explicação para o que está acontecendo. E à medida que uma parte considerável da direita tradicional passa a flertar mais e mais com esse discurso, ela não apenas ajuda a trazer para o mainstream ideias que até então habitavam as extremidades do debate público, mas pavimenta sua própria derrota diante da extrema direita", analisa Nunes.

Partidos-irmãos no mundo

Não apenas no Brasil, aponta o professor de História João Luís Lisboa, da Universidade Nova na capital portuguesa, o debate político deslocou-se para a direita. "A social democracia, ao procurar o centro desde o fim dos anos 1980, aderiu ao ideário neoliberal, pelo que posições moderadamente social-democratas passaram a ser identificadas como radicais ou de extrema esquerda. A direita mais extrema tem bandeiras que, por imprecisas que sejam, identificam quem as usa, entre elas essa 'luta contra o comunismo'".

No contexto da atual campanha eleitoral brasileira, esse discurso "anticomunista" se traduz, entre outros, no antipetismo, ou seja, no ataque a um partido que é curiosamente chamado de Schwesterpartei (partido-irmão) pelo Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha – a agremiação, fundada em 1863, do atual chanceler federal, Olaf Scholz.

"Ambos os partidos nasceram como forma de organização dos trabalhadores de seus respectivos países em épocas e contextos distintos. Se o SPD foi bem-sucedido em integrar os trabalhadores ao funcionamento do capitalismo alemão, o PT teve de lidar cada vez mais, ao longo de sua trajetória, com o fato de que uma camada considerável da população brasileira leva sua vida sob condições precárias", analisa Puzone.

As semelhanças entre os "partidos-irmãos" passam até mesmo pela cor vermelha, que marca a identidade visual de ambos. No entanto, o desafio de ser rotulado de "comunista" não foi enfrentado pela social-democracia alemã neste século.

Segundo Puzone, essa diferença tem muito a ver com um alinhamento do Brasil aos Estados Unidos: "A afirmação por parte da extrema direita no Brasil de que qualquer pessoa, que defenda uma regulação da vida social mais próxima a um Estado de bem-estar, seria 'comunista', está mais ligada ao contexto americano do que ao europeu. Na Europa, já se sabe há muito que a maior parte dos partidos de esquerda abandonou qualquer pretensão de uma transformação no modo como vivemos para além do capitalismo".

Alemanha: ampla aceitação do Estado de bem-estar social

Hoje, na Alemanha, seria muito difícil vincular o Estado de bem-estar social a esse vago complexo de ideias ditas "comunistas", visto que "os sistemas de segurança social têm uma longa tradição e vêm, desde Bismarck (1815-1898), sendo sustentados também pelos conservadores", aponta Alex Demirovic, professor do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Frankfurt.

"Nos Estados Unidos ou no Brasil, há uma disposição maior em 'denunciar' o apoio por parte do Estado, por menor que seja. E por que isso funciona? A extrema direita sempre esteve excepcionalmente disposta à violência e praticou genocídios e guerras em nome de uma oposição ao comunismo", explica.



No atual cotidiano alemão, tais ataques não têm espaço, constata Demirovic. "As oposições ao Estado do bem-estar social se dão de outras formas, como nas acusações de que há 'parasitas', cerceamento da liberdade, distorção do mercado".

No entanto, esses ataques não se firmam, porque boa parte da população concorda com as políticas sociais. "O ponto crucial neste contexto é que, na Alemanha, o Estado de bem-estar social é amplamente aceito. Ele não poderia ser criticado ou rejeitado como acontece no Brasil e nos Estados Unidos", conclui.

No Brasil, pondera Puzone, "dada a selvageria que vem se aprofundando nos últimos anos, não espanta que o discurso 'anticomunista' tenha sido apropriado pelas direitas. Ele serve para que muitas pessoas, incluindo trabalhadores precarizados, possam de alguma forma lidar com o estado de paranoia e com a ausência de qualquer saída que mude substancialmente suas vidas".


Autor: Soraia Vilela