O laço antigo entre Síria e Hamas e seu papel no conflito com Israel
Ativistas sírios que protestaram contra o governo de seu país reagiram horrorizados ao ver o presidente Bashar al-Assad numa cúpula especial sobre o conflito Israel-Hamas. O encontro foi realizado na Arábia Saudita, no início de novembro.
O que aconteceu:
O discurso de Assad. O presidente sírio falou para membros da Liga Árabe, o órgão de cooperação regional e a Organização para Cooperação Islâmica. No encontro, tanto ele como outros líderes árabes acusaram Israel de ignorar o direito humanitário internacional e cometer crimes de guerra contra civis em Gaza. Em sua fala, ele ainda criticou acordos firmados por países do Oriente Médio com Israel para o estabelecimento de relações diplomáticas.
Enquanto isso, a Síria está em guerra há mais de uma década. Ativistas responsabilizam o ditador por algumas das piores barbaridades cometidas no país nesse período: o deslocamento forçado de milhões, a tortura de milhares, e um saldo de mortos estimado em meio milhão.
O discurso de Assad nos encontros em Riade sobre a situação em Gaza pode ganhar um prêmio de momento mais hipócrita do mundo.
Celine Kassem, ativista da ONG Syrian Emergency Taskforce
Tentando esconder crimes do próprio regime. Outra organização síria de oposição a Assad reagiu no X, antigo Twitter, afirmando que, ao criticar a operação militar de Israel em Gaza, o ditador tenta varrer para debaixo do tapete os crimes cometidos — com a ajuda da Rússia — pelo seu próprio regime, citando mais de 530 ataques a instalações médicas.
"Criminoso de guerra". "Fiquei enojado de ver um criminoso de guerra desses, uma pessoa com uma história tão sombria, falar sobre essas coisas perturbadoras", ressente-se o jornalista e ativista Ibrahim Zeidan, que reside em Idlib, uma área no norte da Síria sob controle da oposição. "Durante a fala dele, lembrei dos ataques [a sírios] com armas químicas, de ver crianças e civis sem poder respirar —e sem nenhuma ajuda médica, porque todos os hospitais em Khan Shaykhun [no sul de Idlib] haviam sido bombardeados naquele dia."
E não só sírios foram vítimas do regime, acrescenta Kassem. As tropas de Assad também cercaram e bombardearam palestinos que haviam se refugiado na Síria —um país que um dia defendeu a ideia de um Estado para os palestinos.
Laços entre sírios e palestinos são complexos
A relação da Síria com os palestinos e com o Hamas é longa e complicada. O Hamas tem suas raízes no grupo transnacional Irmandade Muçulmana, que prega que a política deve ser guiada pela religião, tem um braço armado, mas que promove atividades comunitárias e de assistência social.
Na Síria, a Irmandade Muçulmana fez oposição ao domínio de décadas da família Assad. Em 1982, quando o pai de Bashar al-Assad, Hafez, estava no poder, tropas sírias esmagaram uma revolta liderada pela Irmandade Muçulmana na cidade síria de Hama, matando entre 10 mil e 30 mil pessoas da região, segundo estimativas.
Refúgio de palestinos. Mais tarde, o governo sírio orgulhosamente apoiou a causa palestina, que sempre teve a simpatia de muitos ali. Damasco se tornou um refúgio e lar para quase meio milhão de palestinos em fuga do conflito com Israel.
Por anos, a Síria também abrigou um líder exilado do Hamas, Khaled Mashaal —isso apesar de a família Assad frequentemente se estranhar com o grupo, mesmo quando tentava manobrá-lo em nome de seus próprios interesses geopolíticos.
Hamas não escolheu "lado". Mas em 2012, quando a até então pacífica revolução síria começou a virar uma guerra civil sangrenta, a relação azedou. O Hamas se recusou a tomar partido na insurreição síria; seu antigo líder, Mashaal, foi para o Qatar, onde vive até hoje.
Enclave sitiado em Damasco
"Gaza da Síria". Durante a guerra civil síria, como pontua a ativista síria Kassem, forças do governo alvejaram intencionalmente civis palestinos no distrito de Yarmouk, um bairro de maioria palestina que se originou de um campo de refugiados. Após forças rebeldes tomarem Yarmouk, as tropas de Assad impuseram um cerco, barrando a entrada de comida, medicamentos, energia e outros mantimentos. Como ninguém podia entrar ou sair dali, muitos passaram a se referir ao lugar como a "Gaza da Síria".
Fazendo as pazes com o Hamas. No ano passado, depois que Assad — em nome da manutenção da estabilidade regional — foi convidado a voltar à Liga Árabe após uma década suspenso por causa da guerra civil, seu governo fez as pazes com o Hamas. Ainda assim, há muitos sinais de que o Hamas e Assad não confiam um no outro, conforme argumentado pelo pesquisador Samuel Ramani numa análise do Royal United Services Institute, um think tank britânico da área de segurança.
A atual posição do regime de Assad
Fugindo de atrito com Israel. Apesar de ter assinado a declaração conjunta emitida após a cúpula em Riade, o país não tem desempenhado um papel de destaque no atual conflito. Ramani ressalta que, embora o regime tenha expressado solidariedade para com Gaza, ao mesmo tempo se absteve de maiores atritos com Israel. "A resposta do regime sírio à guerra em Gaza teve retórica estridente, mas ação contida, já que ele não quer assumir riscos políticos e de segurança em nome do Hamas."
Ações militares nas Colinas de Golã. Até agora, segundo Ramani, a Síria manteve as ações militares contra Israel restritas a disparos de artilharia e de mísseis nas Colinas de Golã, área sob ocupação israelense —mas essas ações já ocorrem há anos.
Disparos de Israel. O Exército israelense continua a disparar mísseis na direção de aeroportos em Damasco e Aleppo para tirá-los de operação e impedir o envio de combatentes ou armamentos pelo Irã. Mas Israel não tentou eliminar alvos militares russos ou sírios. Os Estados Unidos dizem ter investido contra o que seriam bases iranianas na Síria.
Governo de Assad está "muito enfraquecido". Numa entrevista ao site Syria Direct, o especialista em Síria Joseph Daher argumenta que o governo de Assad é, na verdade, um "ator muito fraco" e "passivo", desprovido de poderio militar próprio, e que sobreviveu à guerra civil graças ao apoio militar e à intervenção russa e iraniana.
Atuação das milícias. Se é improvável que o governo sírio aja por conta própria, o mesmo não pode ser dito das várias milícias operando em território sírio com o apoio do Irã - estas agem quase independentemente de Assad. Mas analistas avaliam que, neste momento, ninguém parece querer isso. "Apesar da sequência de ataques e contra-ataques, nenhum dos lados —-EUA e Israel, de um lado, e o Irã e os grupos que ele apoia, do outro— parece querer uma escalada regional grande [do conflito]", consta de análise recente publicada pelo International Crisis Group. "Mas enquanto a guerra em Gaza continuar, esse risco seguirá aumentando."
Acontecimentos interconectados. Para ativistas sírios deslocados ou vivendo no exílio enquanto lutam por justiça, tudo que está acontecendo no Oriente Médio deveria ser visto como interconectado. Alguns afirmam que a impunidade do regime de Assad no cometimento de crimes contra a humanidade —bombardeios de hospitais, mortes de jornalistas e o uso de armas químicas— levou à degradação de todo o sistema de direito humanitário internacional.