Nicarágua a caminho de se tornar uma ditadura hereditária
Nicarágua a caminho de se tornar uma ditadura hereditária - Reforma da Constituição legaliza poder absoluto do casal Ortega e Murillo como "copresidentes". Em combinação com novas leis repressivas, ativistas temem início de dinastia ditatorial que pode incluir filhos do casalO Parlamento da Nicarágua, dominado pela governista Frente Sandinista, aprovou em primeira votação, numa única sessão e sem qualquer debate, um pacote de emendas à Constituição que, em resumo, consolidam o poder do presidente Daniel Ortega e sua esposa e vice Rosario Murillo – agora como "copresidentes" – e reforçam o controle estatal sobre a imprensa e as forças de segurança.
Além disso, as polêmicas reformas submetem ao Poder Executivo todos os demais poderes e entidades autônomas do Estado. Segundo o presidente da Câmara, o sandinista Gustavo Porras, elas "modernizam" uma Carta Magna que já foi emendada 12 vezes desde a primeira redação, em 1987.
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Embora, ao enviar o pacote ao Congresso, Ortega o tenha apresentado como uma reforma constitucional "parcial", na realidade ela é quase total: de 198 artigos, 148 foram eliminados e 37 excluídos, ficando alterados quase três quartos do documento e, em muitos casos, eliminando-se preceitos de base.
Porta aberta para sistema de poder hereditário?
Segundo a historiadora Dora María Téllez, ex-guerrilheira sandinista exilada nos Estados Unidos, após ter sido encarcerada em 2021, as reformas "vêm converter em lei o poder absoluto que se adjudicaram Ortega e Murillo, e legalizar todo um sistema repressivo" fortalecido desde 2018. Nessa época, em reação a uma série de protestos sociais, o governo lançou uma feroz perseguição a oposicionistas, religiosos e jornalistas.
"Deu-se status constitucional a tudo o que a ditadura vinha fazendo de fato: suprimir o pluralismo político, a liberdade de expressão e de organização, acabar com a mídia e consolidar o poder total" nas mãos da família governante. Para Téllez, uma das mudanças mais importantes é a noção de "copresidentes", com o fim de "resolver o problema da sucessão presidencial, quando Daniel Ortega desaparecer".
"A copresidência confere a Rosario Murillo poder total na Nicarágua, que ela terminará por assumir, quando Ortega não estiver mais, sem ter que se submeter a uma eleição." A reforma autoriza ainda os copresidentes a nomearem os vice-presidentes da República, abrindo assim "o caminho aos filhos do casal governante para se situarem na linha de sucessão de maneira constitucional".
Entre os oito irmãos que vivem no país, quem tem manifestado mais protagonismo é Laureano Ortega, assessor presidencial para investimentos e encarregado das relações com a Rússia e a China; e Camila Ortega, muito próxima à mãe e dona de uma plataforma para modelos de moda. A filha mais velha, Zoilamérica, vive em exílio em Costa Rica desde 2013, banida pela família por ter denunciado o pais por abuso sexual e estupro.
O pacote de emendas, que deverá receber a aprovação final em janeiro de 2025, também estende de cinco para seis anos o mandato tanto dos copresidentes, quanto dos 91 deputados do Congresso, todos oficialistas.
Uma dinastia sem precedentes
"Juntou-se a fome com a vontade de comer, num binômio monstruoso de dois messiânicos inescrupulosos, aos quais sócios e acólitos concederam poder absoluto", definiu a poeta e romancista nicaraguense Gioconda Belli, em artigo de opinião para o portal Confidencial.
"Podemos supor que, depois que Daniel morrer, ela [Rosario Murillo] reinará com Laureano, seu filho. Quando ela morrer, Laureano e Juan Carlos regerão... e assim sucessivamente. A família se alternará por anos e anos. A nova Constituição cria – sem nenhum pudor perante as vistas e a paciência de um partido totalmente submisso e de um povo aprisionado no próprio país e atemorizado – uma dinastia sem precedentes", antecipa Belli, que vive exilada na Espanha.
No século 20, a Nicarágua foi governada pela ditadura dinástica dos Somoza, com o poder passando do pai Anastasio Somoza García para o filho Anastasio Somoza Debayle, até este ser derrubado, em 19 de junho de 1979, pelo movimento guerrilheiro sandinista, a que Ortega pertencia.
O grupo de especialistas em direitos humanos para a Nicarágua GHREN, das Nações Unidas, reagiu imediatamente, alertando em comunicado para "as consequências nefastas e transcendentes da reforma constitucional para os direitos fundamentais do povo nicaraguense".
Ela outorga "poder ilimitado" a Ortega e Murillo: ao ratificar as restrições impostas aos meios de comunicação, o governo sandinista "praticamente erradicou o jornalismo independente", e agora elimina o preceito constitucional que proibia censurar a imprensa", assinalou o GHREN.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) expressou "rechaço" e "repúdio" pelas reformas, considerando que "Daniel Ortega e seus aliados buscam incrementar seu controle absoluto do Estado e perpetuar-se no poder". Manágua se desligou do órgão em novembro de 2023, acusando-o de "ingerencismo".
"Lei de impunidade da máfia no poder"
O deputado Porras reagiu à chuva de críticas com o comentário de que "só quem tem poder na Nicarágua é o povo", e tudo mais "é uma forma estúpida de fazer oposição".
Yader Morazán, ex-funcionário judicial forçado ao exílio, confirma que a reforma é "profunda e total", pois altera a estrutura e o funcionamento do Estado. Por se tratar de "mudanças transcendentes", o Executivo deveria ter convocado uma Assembleia Constituinte, antes de reformar a Carta Magna. Ao não fazê-lo, Ortega e Murillo se deram um "autogolpe de Estado", explica o advogado nicaraguense.
À questionada votação, seguiu-se, na segunda-feira (25/11), a aprovação unânime de uma lei que protegerá os "nicaraguenses afetados por sanções estrangeiras", ou seja: centenas de funcionários governamentais e familiares de Ortega. Entre estes se encontra a própria Rosario Murillo e três de seus filhos, assim como os chefes da Polícia e do Exército sancionados pelos EUA, União Europeia e Canadá por "crimes de lesa humanidade".
Embora não possa cancelar as sanções externas, a lei visa anular seu alcance dentro da Nicarágua, obrigando bancos e outras instituições locais a ignorá-las. Quem não acatar a nova lei estará sujeito a multas, fechamentos temporários ou definitivos, e oito ou mais anos de prisão por "traição à pátria".
"Deveríamos denominar essa lei pelo que ela significa: lei de impunidade da máfia no poder, ou seja, o círculo mais próximo a Ortega e Murillo, que busca escapar das leis a todo custo", condena o economista Enrique Sáenz, igualmente exilado, expropriado e privado da nacionalidade nicaraguense.
"O grave é que essa lei coloca os banqueiros entre a espada e a parede: se a cumprem, arriscam cair na órbita das sanções, ou que se cancelem suas linhas de crédito bancário ou contas correspondentes. Se não cumprem, se arriscam a ser castigados pela ditadura bicéfala, numa espiral de consequências imprevisíveis."
Nicaraguenses críticos são persona non grata
E, como cereja no topo do bolo, no início de dezembro o Parlamento oficialista aprovará uma reforma da Lei de Migração, proibindo o ingresso no país de nicaraguenses e estrangeiros "que possam prejudicar a soberania nacional ou representem risco social".
Será punível com dois a seis anos de prisão quem saia ou ingresse na Nicarágua de forma irregular, "com o fim de prejudicar a integridade, independência, soberania e autodeterminação da nação; comprometer a paz, alterar a ordem constitucional; fomentar ou provocar, conspirar ou propor, ou induzir a atos terroristas de desestabilização econômica e social do país".
Órgãos humanitários registram que centenas de nicaraguenses críticos do governo e seus familiares foram privados da nacionalidade ou impedidos de entrar no país por "ordens superiores". Isso os condena a um limbo migratório, já que, sendo considerados apátridas, não podem renovar seus passaportes, e seus nomes são eliminados para sempre do registro civil da Nicarágua.