Única guia mulher na Serra da Barriga, ela mantém viva história de Palmares
Géssika Costa
Colaboração para o UOL, de União dos Palmares (AL)
20/11/2024 05h30
O chão de terra batida acolhe as mãos e os joelhos da guia turística Thaís Patrícia, 26. Com seu equeté, adorno utilizado por religiosos de matriz africana como elemento de proteção, ela se inclina por completo e passa alguns segundos em silêncio. É como se pedisse bênção e licença.
A reverência da jovem, que também é professora de geografia e mestranda na área na Universidade Federal de Alagoas, é um ritual que ela cumpre sempre que pisa no solo sagrado da Serra da Barriga, Patrimônio Cultural do Mercosul desde 2017, localizada na cidade de União dos Palmares, cerca de 78 quilômetros de Maceió (AL).
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É de lá que ela, a única guia mulher - entre uma dezena de homens -, tem tido a missão de transmitir o legado do maior, mais importante e longevo berço de resistência negra contra a escravidão das Américas, o Quilombo dos Palmares — que existiu na Serra por volta do século 16. "Não é apenas um guiamento. Na verdade, fui escolhida para ser a guardiã daquele espaço", conta Thaís.
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Cada subida à Serra é única
Quando era criança, a irmã mais velha de Thaís, a socióloga Edja Paulino, a fez percorrer, pela primeira vez, o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1985.
"Ela me fez tirar os calçados para respeitar o espaço. Só depois percebi que toda a minha existência estava entrelaçada com aquele ambiente. Cada subida à Serra é única", diz Thaís, que depois de um tempo foi rebatizada na região com o nome de Dandara, líder guerreira de Palmares.
No trajeto pela Serra, ela mostra que dá conta do recado. Em meio às reproduções do cenário da época — como a Muxima de Palmares (uma espécie de fortaleza), o onjó de farinha (casa de farinha) e as ocas indígenas —, ela conduz os visitantes com uma voz firme. Gesticula, sorri de maneira tímida, se emociona, sente.
Em certo momento, os turistas interagem com os moradores que residem dentro do parque, que aproveitam para vender água e picolés. Antes do fim do trajeto, duas paradas são destaque: na Lagoa Encantada dos Negros, onde os guerreiros palmarinos saciavam a sede, faziam rituais e amolavam seus instrumentos, de batalha e de trabalho, e na árvore sagrada gameleira-branca, que representa o orixá Iroko, criador dos caminhos entre a terra (Ayê) e o céu (Orum).
Macaxeira com charque e parceria com Zezito Araújo
Thaís cresceu cercada por mulheres fortes - a mãe, Maria das Graças e as duas irmãs - e pelo irmão. Nunca conheceu o pai, João Cosmo, que foi assassinado quando ela ainda estava no ventre da mãe.
O lar era simples, uma "meia-água de taipa", com três cômodos. Foi nesse espaço modesto que sua curiosidade sobre a história de Alagoas, do Brasil e do mundo começou. Na sala de casa aconteciam frequentes reuniões de movimentos sociais, nas quais a irmã mais velha, Edja — a primeira da família a cursar uma universidade federal — estava envolvida. Aos dez anos, Thaís foi integrada ao grupo. Edja passou a introduzir leituras para estimular discussões e diálogos entre elas.
Foi também a irmã mais velha que a estimulou a ser guia turística, mostrando a oportunidade de um curso do Ministério do Turismo e da Fundação Cultural Palmares. Ainda adolescente, ela não tinha idade o suficiente para se inscrever, mas frequentou as aulas mesmo assim. Além das aulas, os lanches distribuídos após os encontros, como tapioca e macaxeira com charque, eram um atrativo para ela.
Na época, o curso foi ministrado pelo professor Zezito Araújo, ativista do movimento negro e mestre em história pela Universidade Federal de Alagoas.
"Eu gostava de ouvir as histórias dele, interagia e fazia os trabalhos. No final, consideraram o meu esforço e consegui a formação. Num universo de 54 pessoas, muita gente não se formou e não foi para a prática. Não existia a estrutura de hoje, para subir a Serra, precisava ter muita força e resistência. Era cansativo. Abracei a profissão com unhas e dentes por amor e curiosidade, mas também por necessidade"
Thaís Patrícia, 26
Entre as dificuldades no processo, ela lembra das interferências do machismo. Por um tempo, alguns guias turísticos mais antigos se sentiram ameaçados e tentaram, por diversas vezes, boicotá-la. "Eu fechava com umas escolas e, de repente, em cima da hora, elas desmarcavam. Depois, encontrava os guias à frente do passeio. Isso aconteceu em muitos momentos", conta.
Com o certificado do curso em mãos, Thaís recebeu um conselho do professor: "Não decore nada, conte a história do jeito que você sabe, do seu jeito". Ela segue este ensinamento à risca, mostrando a história de Palmares a partir de uma visão decolonial que fortalece, cada vez mais, seu pioneirismo.
"Se eu não tivesse um círculo familiar forte, principalmente a minha mãe me entender, não daria certo. É um trabalho arriscado, mas nunca desisti", ressalta.