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Espanha se mobiliza contra sentença branda para estupro coletivo

29/04/2018 23h00

A Espanha segue mobilizada contra a sentença judicial de um caso de estupro coletivo, ocorrido em 2016, na tradicional festa de San Fermín.

Luísa Belchior, correspondente da RFI Brasil em Madri

Chamada de “Hermana, yo sí te creo”, (“irmã, eu acredito, sim, em você”, em português), a versão espanhola do movimento vem mostrando ser uma das mais potentes vozes do feminismo na Europa. Nas redes sociais, o hashtag “cuentalo“(ou seja, “conte”), incita as mulheres a revelar casos de assédio e violência sexual.

A revolta se iniciou com os desdobramentos de um caso ocorrido em julho de 2016, quando cinco jovens entre 24 e 27 anos, todos de Sevilha, estupraram uma garota de 18 anos durante a festa de San Fermín, tradicional celebração na qual touros são soltos em ruas da cidade de Pamplona, no País Basco, região do norte do país. San Fermín é a festa popular mais famosa da Espanha e, a cada ano, recebe quase dois milhões de pessoas – mas, nos últimos anos, houve muitas denúncias de abusos e agressões sexuais durante os festejos.

No crime em questão, um dos jovens abordou a vítima e a convenceu a se afastar da festa. Ele levou a jovem para a portaria de um prédio, onde o resto do grupo a imobilizou e a estuprou.

A jovem denunciou o crime no dia seguinte, incentivada por uma grande campanha que o governo local já promovia para que vítimas denunciassem qualquer caso do tipo, montando tendas de atendimento judicial, psicológico e de saúde por toda a cidade. A Justiça encontrou imagens das câmeras do prédio e dos celulares dos jovens, que filmaram e compartilharam o ato com amigos, e determinou a prisão preventiva dos suspeitos. O julgamento final, na semana passada, os declarou culpados, mas apenas pelo crime de abuso sexual, descartando o de agressão, que engloba o estupro na lei espanhola. A decisão revoltou uma parcela da sociedade espanhola, eclodindo no movimento.

Vítima não teria reagido, segundo os juízes

A sentença argumenta que não houve violência física, já que a vítima não apresentava nenhuma marca de agressão, e nem teria havido intimidação, outro dos requisitos para que se configure uma agressão sexual, e não apenas abuso. Porém muitos juristas e inclusive membros do governo reconheceram que o texto é contraditório, ao reconhecer também a existência do estupro, algo que os próprios agressores admitiram parcialmente.

Eles alegaram, no entanto, que tentaram forçar o ato sexual, mas que a jovem não ofereceu resistência. Os juízes aceitaram essa versão, já que as imagens mostram que, de fato, a vítima não reage fisicamente e permanece com os olhos fechados. Em seu depoimento, a menina alegou ter entrado em pânico por estar diante de cinco homens maiores e mais fortes que ela e que, por isso, ficou bloqueada – o que o atendimento psicológico confirmou horas depois.

Os cinco agressores foram condenados a nove anos de prisão por crimes de abuso sexual e obrigados a pagar, cada um, € 50 mil à vítima por danos morais. Mas os juízes recusaram o parecer da promotoria espanhola, que pedia 22 anos de cadeia a cada um por agressão sexual, e não apenas abusos.

A decisão gerou duras críticas por parte de todos os partidos políticos, inclusive o Partido Popular, do governo atual, da própria polícia espanhola, de juristas, da Igreja Católica e de grande parte da sociedade, que saiu em massa às ruas das principais cidades do país pedindo a revisão da sentença. O nome do movimento de protesto é uma alusão à postura dos juízes, que não deram crédito à versão das vítimas.

Revisão da lei à vista

A promotoria recorreu da decisão. A Justiça ainda não confirmou se vai revisar a sentença, mas o governo anunciou que estuda uma reforma em seu Código Penal para endurecer os crimes e delitos de caráter sexual. O próprio ministro da Justiça da Espanha, Rafael Catalá, reconheceu que a sentença indicou a necessidade dessa mudança.

Na última década, a Espanha vem adotando políticas pioneiras, como uma lei específica para tratar a violência de gênero, a primeira na Europa. Mas é nas ruas que esse movimento tem sido mais efervescente.

Há dois meses, no Dia Internacional da Mulher, o país realizou a primeira greve feminista da história recente de Europa e levou milhões de pessoas às ruas. Só em Madri, foram 500 mil pessoas, um número só comparável ao protesto contra a participação da Espanha na guerra do Iraque, em 2004, após os ataques do grupo terrorista Al Qaeda à rede de metrôs da capital espanhola.

Em Madri, cada vez mais inscrições do lema “Hermana, yo sí te creo” são vistas em muros de toda a cidade, dentro de lojas e em janelas de apartamentos. As manifestações pedindo a revisão da pena no caso da festa de San Fermín seguem acontecendo todos os dias. No domingo, 32 mil pessoas saíram às ruas em Pamplona, a cidade onde ocorreu o crime, e, nesta semana, há protestos marcados em Madri, Barcelona e Sevilha, a cidade de origem dos agressores.