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Verdun: França reconstitui com mil figurantes a batalha mais mortífera da Primeira Guerra Mundial

Turistas figurantes participam de desfile em Verdun, na França, em memória à Batalha de Verdun, de 1916, a mais sangrenta da Primeira Guerra Mundial - Charles Platiau/Reuters
Turistas figurantes participam de desfile em Verdun, na França, em memória à Batalha de Verdun, de 1916, a mais sangrenta da Primeira Guerra Mundial Imagem: Charles Platiau/Reuters

26/08/2018 14h41

Nas primeiras horas da manhã de 21 de fevereiro de 1916, as trincheiras francesas na cidade de Verdun foram alvo de um estranho fenômeno: uma tempestade de oito horas de foguetes alemães devastou nove vilarejos no leste do país, num momento em que a Alemanha tentava desesperadamente ganhar posições no primeiro grande conflito mundial, que terminou em 1918. Para relembrar a batalha, que contabilizou cerca de 700 mil mortos, feridos e desparecidos, o Memorial de Verdun realizou neste domingo (26) uma reconstituição histórica, com cerca de mil figurantes de 18 nacionalidades. A RFI acompanhou a encenação da Batalha de Verdun, evento que faz parte do calendário de celebrações do centenário do fim da Primeira Guerra Mundial na França. 

Neste domingo de sol, 26 de agosto de 2018, as legiões estrangeiras e francesas, com centenas de figurantes vestidos a caráter, se reuniram para reconstituir, numa grande encenação coletiva, aquele que é lembrado como o confronto mais mortífero da Primeira Guerra Mundial.

A Batalha de Verdun durou dez longos meses, utilizou 50 milhões de foguetes e disparou cerca de 100 mil projéteis por dia, enviados dos dois lados do front, tendo redefinido os rumos do conflito e se consolidando como um marco da resistência francesa frente à superioridade alemã, há cem anos, em termos de tecnologia de guerra e poder de fogo.

Relatos da época contam que os massacres foram intensos, de ambos os lados. “Verdun foi uma espécie de açougue, extremamente traumatizante”, lembra Jacques, 72 anos, um dos “reconstitueurs”, como são chamados os cerca de mil figurantes voluntários que tomaram parte na representação deste domingo (26).

Ao lado do filho, Julien, um dos personagens principais do batalhão escocês-britânico, vestido em kilt de época, Jacques afirma que a paixão pela reconstituição histórica é uma paixão “de pai para filho” e que não vê a hora de seu neto, de 8 anos, entrar para o grupo. Um francês, vestido de escocês, desfilando as cores do Império Britânico?

Quem explica a “paixão pelo inimigo” é Laurent, um analista de laboratório francês na “vida real”: “Abri uma mala antiga de meu avô e descobri, para minha grande surpresa, um kilt. Descobri que meu avô havia feito parte do regimento enviado a Verdun e decidi honrar essa memória", conta. Laurent afirma que “não viemos aqui lembrar a guerra. Viemos aqui lembrar da liberdade antes da guerra, das pessoas que perderam sua vida para que não perdêssemos nossa liberdade”.

Figurantes participam da cerimônia no ossuário de Douaumont, perto de Verdun, na França - Charles Platiau/Reuters - Charles Platiau/Reuters
Figurantes participam de cerimônia no ossuário de Douaumont, perto de Verdun
Imagem: Charles Platiau/Reuters

E os jovens marcaram presença na reconstituição histórica deste domingo, como foi o caso da contadora russa Tatiana, de 22 anos, que veio direto de São Petersburgo para a arena em Verdun. “Foi a primeira vez que participei e escolhi a personagem da enfermeira russa, porque sei que tivemos um papel importante nesse momento”, relata, com um francês cheio de sotaque.

Já para o alemão Friederich, 25 anos, que possui um ateliê de restauração de máquinas fotográficas em Bonn, não existe constrangimento em vestir as cores do “inimigo alemão”: “Isso é coisa do passado. Venho aqui encontrar meus amigos franceses, e sou apaixonado pela reconstituição histórica”, conta à reportagem da RFI, antes de se juntar à parada no Monumento da Vitória, no centro de Verdun.

“A Primeira Guerra Mundial, ao contrário da Segunda, não foi tão mediatizada. Conhecemos muito pouco dos detalhes deste conflito”, lembra o jovem artesão Benoît, de apenas 21 anos, especialista na fabricação de bijuterias em Paris. Outro jovem francês, Guillaume, de 32 anos, funcionário de uma grande rede de supermercados, se transformou em "agente secreto de ligação" [vaguemestre, em francês] das tropas francesas para a encenação em sua cidade natal. “Pessoas como a que eu encarno eram responsáveis por levar mensagens de um regimento a outro, uma espécie de carteiro secreto, era uma função indispensável”, lembra.  

Para Claude Léonard, presidente do Memorial de Verdun, a cidade se tornou “um lugar de reconciliação dos povos, a Capital Mundial da Paz. Reunir em Verdun os representantes dos soldados de diferentes nacionalidades que combateram durante a Primeira Guerra Mundial, incluindo alemães, é uma representação desta reconciliação”, afirmou. “Os antigos combatentes, pioneiros do Memorial de Verdun, desejavam um local para se recolher e se encontrar no meio do campo de batalha, para homenagear os mortos em combate”, diz Léonard, que acredita que a “recuperação dessa memória coletiva” seja de “extrema importância nesse momento”.

“Não podemos ignorar o que aconteceu no passado, e quando vemos a situação da Europa hoje, entendemos que não se encontra muito longe da Europa do pré-guerra, então é necessário saber tirar as consequências deste conflito para que ele não se reproduza”, disse o presidente do memorial.

Em 2016, a cidade de Verdun inaugurou um centro renovado, com um projeto museográfico mais contemporâneo, para atender as demandas das novas gerações de visitantes. “Nossa ideia no Memorial de Verdun é celebrar a memória do combatente, qualquer que seja sua nacionalidade, francesa ou alemã, e dar aos jovens elementos de interpretação da Batalha de Verdun, dentro de um contexto contemporâneo”, disse Léonard.

“Teatro de Guerra”

No repertório militar francês, o campo de batalha é também conhecido como “teatro de guerra”. Não é para menos: grandes chefes militares como Napoleão reconheceram, em seu tempo, a eficácia do jogo de cena antes e durante confrontos decisivos. Em fevereiro de 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, a moral dos alemães estava baixa. Prisioneiros de um conflito que eles mesmos haviam provocado, os homens do general Falkenhayn decidem tomar de assalto a cidade de Verdun, próxima da fronteira alemã, inaugurando uma nova tática: depois das trincheiras, a “guerra de posições”. Para virar o jogo, contaram com uma série de artifícios que, combinados, receberiam algumas décadas depois o nome de Blitzkrieg, a guerra-relâmpago do 3º Reich, uma estratégia ofensiva destinada a colher vitórias decisivas num curto espaço de tempo, usando todas as forças mecânicas disponíveis.

A Batalha de Verdun é um símbolo da resistência francesa na Primeira Guerra Mundial. A superioridade tecnológica das armas alemãs não conseguiu subjugar os homens do General Pétain, muito famoso na França por suas estratégias de defesa. Para Verdun, ele projetou um sistema onde um regimento rendia o outro nas trincheiras, uma espécie de revezamento inédito para as estratégias de guerra da época. Graças ao sistema inventado por Pétain, no dia seguinte ao grande ataque alemão, os soldados franceses continuaram de pé e ofereceram uma resistência completamente inesperada aos homens do general alemão.

Um verdadeiro percurso temático dentro do campo de batalha

As festividades do centenário, no entanto, começaram na noite de sexta-feira (24), quando uma grande marcha coletiva noturna reuniu milhares de participantes, entre figurantes, turistas e habitantes de Verdun, que levaram tochas até a Necrópole de Douaumont, também conhecida como o Ossário, onde se encontram os restos mortais dos soldados franceses, que tombaram durante a Batalha de Verdun -- cerca de 163 mil homens, segundo dados oficiais. A procissão seguiu até o local acompanhada de grupos musicais temáticos, como o Les Chanteurs de La Paix (Cantores da Paz) e a bateria Tambours du Centenaire (Tambores do Centenário).

O grande ponto de encontro dos três dias de celebração do centenário foi, no entanto, o “bivouac”, o enorme acampamento cenográfico em torno da Caserna de Miribel, a poucos quilômetros do centro de Verdun, um local histórico por onde passaram regimentos franceses de diversas épocas e guerras. O “bivouac” permaneceu aberto para visitantes de todas as partes do mundo, com dezenas de tendas, armas de época e trincheiras. Os cerca de mil figurantes representaram as principais nacionalidades presentes durante o conflito, como alemães, belgas, escoceses, espanhóis, ingleses, poloneses, russos, austríacos, belgas e franceses. Muitos dormiram nas tendas espalhadas pelo campo, apesar do frio deste fim de agosto no leste da França. Cozinhas típicas e antigos objetos, trazidos pelos próprios voluntários, reconstituíram a atmosfera de um típico acampamento militar de 1918.

Neste domingo (26), a reconstituição histórica da Batalha de Verdun aconteceu no vilarejo de Fleury-devant-Douaumont, completamente arrasado pela tormenta de foguetes alemães dos primeiros dias do ataque, durante a Primeira Guerra Mundial. Os mais de mil figurantes se posicionaram no meio do vale, onde ainda se veem, intactas, as grandes crateras deixadas pelos foguetes alemães. Centenas de placas metálicas indicativas com nomes como “padeiro”, “escola”, “lavanderia”, “horta comunitária”, fazem o visitante tentar imaginar uma cidade que desapareceu da noite para o dia, em meio ao fogo e à fumaça dos combates. O silêncio e a ausência se tornam uma espécie de iconografia de guerra, um conflito que marcou o mundo.

O “Lugar da Memória”

A agenda de celebrações teve um caráter pedagógico e memorialista em Verdun, cidade que se transformou em símbolo mundial da paz. Em respeito ao caráter pacifista do local, não foram realizadas reconstituições dos combates, apesar da recriação de cenas nas trincheiras de locais históricos como o Forte de Souville, a tomada do vilarejo de Fleury-devant-Douaumont e a chamada Tranchée das baionetas.

“Lieu de mémoire”, ou “lugar de memória”, em português, é um conceito criado pelo historiador francês Pierre Nora na década de 1980, que diz que “um objeto se torna lugar de memória quando ele escapa do esquecimento, e quando uma coletividade o investe com seu afeto e suas emoções”. O conceito de Nora vai nortear toda a historiografia cultural moderna da França, uma visão que abre espaço para representações coletivas como a da Batalha de Verdun.

As celebrações do Centenário da Primeira Guerra Mundial em terras francesas terminarão no dia 11 de novembro de 2018, data histórica do Armistício, o acordo de Paz que assinalou a primeira grande capitulação da Alemanha em um conflito mundial.