Topo

Saiba como aumento da gasolina afetou a vida dos venezuelanos

07/07/2020 09h27

Em junho deste ano chegaram à Venezuela cinco cargueiros trazendo combustível importado do Irã. A entrega de 1,5 milhão de barris de gasolina interrompeu a escassez do produto que provocou filas que duravam dias e paralisou o país. O momento marcou o fim da era da gasolina de graça. Encher o tanque era um gasto que não pesava no orçamento doméstico e das empresas. Mas agora isso mudou.

Por Elianah Jorge, correspondente da RFI Brasil

O combustível, que era 100% subsidiado, passou a ser cobrado e agora tem dois valores. Quem está registrado no Sistema Pátria paga 5.000 bolívares (Bs) pelo litro da gasolina. Neste sistema, também é preciso respeitar o dia da semana determinado pelo final numérico da placa do veículo. Se o afiliado tem um carro, ele tem direito a comprar até 120 litros por mês caso. Se tiver moto, pode comprar apenas 50 litros por mês.

Quem não está registrado neste programa estatal ou superou a cota de gasolina mensal paga em dólar, isto é, US$ 0,50 por litro. Nesses dois casos, o venezuelano desembolsa muito mais para encher o tanque. Na primeira situação, ele paga Bs 200 mil por 40 litros de combustível. Em dólares, apenas dez litros de gasolina custam mais de Bs 1 milhão.

Em comparação com outros países, a gasolina ainda é barata, mas não em um país onde o salário mínimo é de Bs 800 mil por mês. Para efeito de comparação, um quilo de arroz custa Bs 215 mil. Ou seja, as contas não fecham.

Hiperinflação e pandemia

Essa situação vem angustiando ainda mais os venezuelanos, asfixiados por uma hiperinflação e em um país sem acesso aos serviços básicos. Sobretudo em meio à radicalização da quarentena.

Na noite desta segunda-feira (06), a vice-presidente Delcy Rodríguez anunciou 242 novas contaminações, elevando para 7.411 casos positivos para a Covid-19 na Venezuela. Até o momento 67 pessoas faleceram no país por causa do vírus.              

Por anos foi tabu aumentar o preço da gasolina por temor a uma reação violenta por parte da população como foi o Caracaço, o levante social espontâneo ocorrido em fevereiro de 1989 motivado pelo aumento da passagem de ônibus na capital venezuelana. Mas o presidente Nicolás Maduro conseguiu fazer a população pagar pela gasolina após mais de um mês de escassez de combustível e durante a quarentena imposta por causa da pandemia.

O aumento da gasolina afetou consideravelmente a população. Antes, não importava a distância, o venezuelano ia de carro. Agora vai caminhando ou, caso tenha, vai de bicicleta. Antes elas quase não eram vistas, mas agora um considerável número de bicicletas circula pelas ruas do país.

De acordo com a psicóloga social Yorelis Acosta, tudo mudou e agora o venezuelano está fazendo ajustes nos planos econômico e social já que "em nenhum orçamento a gasolina era incluída".

"Hoje em dia se a pessoa não pode colocar gasolina subsidiada é algo muito difícil pagar em dólares. Isso ficou para um segmento muito alto da sociedade, nem um professor universitário pode pagar gasolina em dólares. Também vemos esta mudança nas nossas relações sociais. Tem gente que já não quer usar o carro para não gastar gasolina. Antes era muito comum sair para dar uma volta. Agora o carro fica para coisas realmente necessárias", explicou esta professora da Universidade Central da Venezuela.

Fazer compras só se for perto de casa. Nada de tirar o carro da garagem se não for preciso. "Já não saímos toda hora como antes", é frase recorrente entre a população. Essa tem sido a regra por aqui.

Táxi mais caro que avião

Para ir mais longe, as pessoas recorrem a aplicativos para ver as rotas mais curtas. Tem gente aprendendo a dirigir sem quase pisar no acelerador. Um taxista consultado pela RFI Brasil contou que aproveita as descidas para não pisar no acelerador. Ligar o ar condicionado do carro só se o calor estiver insuportável ou se o cliente insistir.

O preço da corrida também subiu, e muito! Por uma viagem entre Caracas e a capital do estado Táchira estão cobrando US$ 1.100. Por uma distância de cerca de 804 quilômetros paga-se mais que uma passagem da Venezuela à Europa.

A alta da gasolina também significa o fim da camaradagem. A carona, tão comum entre os venezuelanos, agora ficou no passado. Pode até acontecer este apoio, mas desde que ele seja mútuo: quem tem carro até leva, mas é sugerido ao beneficiado colaborar financeiramente.

Comida mais cara

Boa parte das frutas, legumes e vegetais que abastecem o país vêm da região dos Andes venezuelanos. Levar esses alimentos às principais cidades do país agora tem um alto custo que é pago pelo cliente.

De acordo com a deputada Karim Vera, os produtores rurais ainda enfrentam a escassez de gasolina, já que ainda há restrições no abastecimento no interior do país. Além disso, os produtores têm problemas para regar as plantações por causa dos cortes no fornecimento de energia elétrica e precisam usar geradores movidos a combustível para fazer a irrigação. Todo esse investimento acaba refletido no aumento do preço de venda dos alimentos.

"O que vem acontecendo é uma bola de neve", diz um produtor rural da Colônia Tovar. Para transportar os produtos deste povoado até Caracas, uma distância de cerca de 100 quilômetros, o frente passou de US$ 100 para US$ 180 e "automaticamente temos que vender os produtos por um preço mais caro para poder pagar o transporte ou então deixar perder a colheita".  

Quem mora nas imediações da fronteira com o Brasil ou com a Colômbia tem preferido comprar gasolina no país vizinho. Sai mais barato e o produto é de melhor qualidade que o iraniano. Esse é outro motivo de preocupação para o venezuelano: a qualidade da gasolina. Há queixas de que os carros estão tendo problemas após usar o combustível persa.

As pessoas das classes mais populares que ainda tinham em um modesto carro o significado de certa comodidade, agora estão se desfazendo de seus veículos. A prioridade é a comida. "Entre gastar com gasolina ou levar comida para a minha família, decidi colocar o carro à venda", disse Wilmiro Márquez, pedreiro residente em Petare, a maior favela da América Latina, localizada em Caracas. O Opala ano 1978 está à venda por simbólicos US$ 500, valor equivalente a 125 salários mínimos. 

Falta dinheiro em espécie

Pagar pela gasolina subsidiada também é outro problema. Com os constantes cortes de energia elétrica ou no fornecimento de internet, as máquinas de débito nos postos de gasolina nem sempre funcionam. É preciso levar dinheiro em espécie. Mas este é outro item escasso na Venezuela do Século XXI.

Graças à venda de produtos que colhe no sítio da família, localizado no estado Guárico - a 206 kms de Caracas, a engenheira Isabel consegue dinheiro em espécie para pagar a gasolina subsidiada. No entanto, a radicalização da quarentena e os crescentes números da Covid-19 tem assustado a jovem. "Estamos preferindo não vender mais nada a nos expor à doença", explica ela.      

Irã, incêndio e cadáver

A Venezuela ainda está longe de voltar a produzir gasolina em larga escala como em tempos atrás. Apesar do apoio do Irã, inclusive em maquinaria e logística para a manutenção, algumas refinarias do país estão bastante sucateadas. Nesta segunda-feira (6), uma parte da Refinaria de Cardón, localizada na região norte do país, pegou fogo. Não houve feridos. No entanto, o incêndio demonstra a falta de cuidado com as refinarias do país.

Por décadas a economia venezuelana era dependente da exportação de petróleo e não da importação de combustível como vem acontecendo. Ainda não há previsão de quando a Venezuela voltará aos antigos índices de produção de petróleo e gasolina. Por enquanto, o país ainda importa combustível do Irã.

Mais quatro cargueiros, dois deles de bandeira da Libéria, estão trazendo mais combustível do Irã. No entanto, os Estados Unidos querem apreender o carregamento com a meta de asfixiar o governo de Nicolás Maduro.

Por enquanto, em Caracas há gasolina, mas no interior do país voltou a faltar combustível. No fim de semana, sem conseguir abastecer, o motorista de uma funerária protestou na frente de um posto de abastecimento ao tirar do carro o cadáver que transportava na tentativa de conseguir gasolina.