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Covid-19: Presidente da Argentina envia carta a Bolsonaro com sutil ironia em relação ao contágio do seu inimigo político

08/07/2020 08h11

Carta de Alberto Fernández que deseja rápida recuperação ao presidente Jair Bolsonaro é a primeira comunicação direta entre os dois desde que Fernández foi eleito em outubro passado. Já os ministros de Alberto Fernández foram menos sutis e criticaram o comportamento do presidente brasileiro.

Márcio Resende, correspondente em Buenos Aires

Alberto Fernández decidiu quebrar o gelo com o seu colega, Jair Bolsonaro. O resultado positivo do exame de coronavírus do presidente brasileiro levou o argentino a inaugurar o diálogo direto entre os dois, mas o texto da carta enviada para transmitir o desejo de uma rápida recuperação tem traços de ironia e de oportunismo político.

"É uma carta sutilmente irônica, permeada pela relação estremecida entre Alberto Fernández e Jair Bolsonaro. É um gesto de solidariedade, mas com crítica e com ironia encobertas", interpreta à RFI o sociólogo e analista político argentino, Ariel Goldstein, especializado em política brasileira.

"Uma forma de se diferenciar e de se colocar como melhor", acrescenta à RFI o analista político Jorge Giacobbe, especialista em opinião pública.

O tom da mensagem é cordial, mas as palavras usadas permitem leituras políticas de fina ironia que, por contraste, marcam não somente dois expoentes opostos em termos ideológicos, mas também dois estilos completamente diferentes na hora de combater a pandemia.

Enquanto Jair Bolsonaro é o presidente mais negacionista do vírus na região, Alberto Fernández impõe a mais prolongada e rígida quarentena.

Carta para se diferenciar

Na carta, o presidente argentino deseja que o seu colega brasileiro "se recupere em breve" da covid-19. Reforça a necessidade de "ter cuidados extremos" perante a ameaça e destaca que o vírus não diferencia "governantes de governados".

Nesse sentido, Fernández prefere ressaltar o povo brasileiro e não o seu líder pela forma de enfrentar a pandemia e envia um distante "cumprimento" a Bolsonaro, reforçando "toda a sua solidariedade com o povo do Brasil"; não com o seu presidente.

No final, o presidente argentino encerra a carta com um "Sinceramente", termo que usa para encerrar cartas, mas também o título do livro da vice-presidente Cristina Kirchner, a quem Bolsonaro tem como inimiga.

A carta é a primeira comunicação direta entre os líderes dos dois principais países da região cuja aproximação é o eixo da integração regional. Jair Bolsonaro e Alberto Fernández nunca se falaram pessoalmente nem mesmo por telefone.

A carta é, em si, uma forma de diferenciar-se da atitude de Bolsonaro que não cumprimentou Fernández pela vitória nas urnas em outubro e não foi à posse do presidente argentino em dezembro.

Na semana passada, os dois participaram de uma videoconferência para a reunião virtual de presidentes do Mercosul, mas nenhum mencionou o outro.

Crítica encoberta

"O trecho 'este vírus não diferencia governantes de governados' é uma crítica encoberta à atitude messiânica de Bolsonaro de minimizar o vírus e de lidar com o distanciamento social. É mais um passo na relação bilateral complexa entre dois presidentes com visões muito diferentes", avalia Ariel Goldstein, autor do livro "Bolsonaro, a democracia do Brasil em perigo".

"Será preciso ver se Bolsonaro interpreta a carta como um gesto contemporizador ou como um gesto irônico", questiona.

"Na carta, Alberto Fernández coloca-se no mesmo lugar que se coloca na Argentina perante aqueles que pensam diferente: assume um papel de professor que ensina o correto, mais do que o de um estadista", avalia Jorge Giacobbe.

"O 'Sinceramente' no final tem um sentido claramente político", interpreta.

Ministros argentinos criticam

Mas se Alberto Fernández foi sutil, dois dos seus ministros foram mais explícitos. O ministro da Saúde da Argentina, Ginés González García, concluiu que o contágio de Bolsonaro "é consequência da sua atitude" que "leva o povo brasileiro a sofrer".

"(O contágio) é consequência da atitude dele que não o faz sofrer sozinho, mas também o povo brasileiro", observa González García para quem a postura de Bolsonaro de flexibilizar tudo é uma falsa liberdade. "Em nome de uma falsa liberdade, a única coisa que fez foi gerar a liberdade de contagiar-se", criticou.

O ministro argentino das Relações Exteriores, Felipe Solá, também desejou uma "rápida recuperação" a Bolsonaro, mas remarcou as diferenças entre Argentina e Brasil.

"Bolsonaro tentou sempre demonstrar que não havia problema em circular, em ficar perto e sem máscara. Prefiro não entrar na discussão sobre política sanitária, mas os resultados estão à vista por todos os lados", comparou Solá, diferenciando os dois países.

Vídeoconferência com Lula

No dia 26 de junho, Alberto Fernández manteve uma vídeoconferência com o ex-presidente Lula na qual destacou que "o resultado obtido pela Argentina no combate à pandemia é muito melhor do que o de outros países".

"Alguém que morre causa-nos dor porque queremos a vida. Outros fazem números e, para esses, são apenas estatísticas", disse Fernández em alusão ao "E daí?" de Bolsonaro.

"Lula, você não sabe o quanto sentimos saudade de que você seja o presidente do Brasil porque seria bem diferente a oportunidade de trabalharmos juntos no continente", alfinetou o presidente argentino.

Em maio, Bolsonaro disse que Alberto Fernández estava afundando economicamente a Argentina durante a pandemia e conduzindo o país ao socialismo.

Os ataques entre Jair Bolsonaro e Alberto Fernández começaram em junho do ano passado, quando Bolsonaro começou a fazer campanha a favor da reeleição do ex-presidente, Mauricio Macri durante o processo eleitoral argentino e alertou para o risco de Fernández transformar a Argentina numa nova Venezuela.

No mês seguinte, Alberto Fernández visitou Lula da Silva na prisão e depois, em outubro, durante o seu discurso de vitória, pediu a liberdade de Lula.

A carta de Alberto Fernández a Jair Bolsonaro:

"Prezado Presidente,

É com muito pesar que soube que foi afetado pela Covid-19. Quero expressar os meus desejos de que em breve se recupere.

O perigo dessa pandemia fica evidente nos níveis de contágio. Este vírus não diferencia governantes de governados. Todos nós estamos ameaçados e, por isso, os cuidados devem ser extremos.

Acredito que assim é entendido pelos nossos povos que enfrentam essa tragédia. Nesta hora difícil, receba o meu cumprimento e toda a minha solidariedade com o povo do Brasil.

Sinceramente,

Alberto Fernández".