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Municipais: "O campo evangélico é diversificado como a própria sociedade brasileira", diz especialista

22/10/2020 13h01

Com a proximidade das eleições no Brasil, chama a atenção o aumento do número de candidatos que se dizem ligados a associações religiosas. Pesquisadores alertam, contudo, para o risco de que "uma forma de militância religiosa possa restringir as liberdades democráticas, reprimir ou deslegitimar ganhos importantes que o país já teve", diz em entrevista à RFI, Joanildo Burity, doutor em Ciência Política pela Universidade de Essex e Pós-doutor pela Universidade de Westminster, ambas da Inglaterra.

Veja a entrevista no vídeo abaixo.

Este ano, mais do que nunca, pastores, bispos e padres ou outras lideranças religiosas vão se candidatar às eleições municipais. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apontam que houve um recorde de candidatos que declararam ter como ocupação ser sacerdote ou membro de uma ordem religiosa. Eles serão 885, o maior plantel em eleições municipais, desde 2008, de acordo com apuração da Agência Pública. Burity explica que a maioria dessas candidaturas se situa do centro para a direita ou extrema direita, com maior presença no campo parlamentar, no qual os evangélicos alcançaram uma representação mais significativa no Brasil.

Porém, "não existe um eleitorado fiel no mundo evangélico", como afirma o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, de Pernambuco. "O campo evangélico é diversificado como a própria sociedade", completa um dos 15 autores que assinam a coletânea "Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI". O livro foi organizado por José Luis Pérez Guadalupe e Brenda Carranza, e lançado pela Editora Konrad Adenauer Stiftung (2020).

Pesquisa Datafolha de janeiro de 2020 indica que 30% da população brasileira se identifica como evangélica, frente a 50% de católicos. Entretanto, o pesquisador enfatiza que "o crescimento numérico dos evangélicos no Brasil não significa peso eleitoral", algo que, conforme explica, foi construído ao longo dos anos.

"Esse peso foi construído através de estratégias bastante profissionalizadas, de lideranças pentecostais, principalmente da Assembleia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus, e que tiveram grande sucesso eleitoral, na medida em que conseguiram construir um eleitorado que respondia a essa chamada de caráter religioso, a essa autoidentificação do candidato como pessoa religiosa, o que explica porque tanta gente hoje quer se candidatar usando o nome de padre, pastor babalorixá, irmão ou irmã", observa.

Candidaturas religiosas têm menos sucesso do que a média.   

Ainda que sejam numerosos, a análise dos resultados das eleições de 2016 permite afirmar que candidatos com profissão religiosa se elegem abaixo da média total. Levantamento da Agência Pública aponta que apenas 8% dos candidatos evangélicos são eleitos, enquanto que o percentual de sucesso de todos os candidatos às eleições do ano é de 14%. "Embora existam alguns campeões de votos, entre os evangélicos eleitos, em todos estados do Brasil e em vários níveis, a maioria não tem chance, como a maioria das candidaturas, em geral, não tem chance efetiva", analisa Burity.

Para 15 de novembro, o cientista político não espera surpresas. "Nós não devemos ter mudanças significativas da trajetória que se constituiu desde 1986: os evangélicos conservadores continuarão a ser eleitos, mas, dessa vez, teremos algumas conquistas em cidades onde o contexto mais progressista dos evangélicos está melhor organizado para as eleições. Uma mudança simbólica, mas que mostra que esse campo evangélico é diversificado, como é a própria sociedade", diz. 

Contexto histórico

No texto "Itinerário histórico-político dos evangélicos no Brasil", Burity relata a presença de representantes evangélicos em cargos públicos no país desde os anos 1930, um fenômeno que se ampliou a partir de 1964. Entretanto, até o fim dos anos 1970, o campo pentecostal se mantinha ainda à margem das urnas, por considerar a atividade política "suja". A participação em eleições só ganharia força na década seguinte.  

"Remonta aos anos 1980, quando os pentecostais, que são o segmento dos protestantes brasileiros de maior número - na época quase dois terços de todos os protestantes eram pentecostais - resolveram se lançar na política, através de uma mobilização que buscava garantir uma voz e um espaço no cenário do Brasil que voltava à democracia", lembra Burity.

O professor explica que nunca houve um partido evangélico no Brasil. "Na medida em que não é possível fundar partidos religiosos no país, essas candidaturas foram construídas a partir da pluralidade partidária brasileira, uma vez que diversos partidos políticos passaram a abrigar uma quantidade significativa de candidatos evangélicos", diz. Mas "a eleição de 2018 foi singular na trajetória da política evangélica e nos apresentou uma opção dos evangélicos pelo presidente da República", continua o professor.

"Porém, mesmo dentro do grupo dos evangélicos, há indivíduos com posições mais específicas e que têm uma perspectiva mais conservadora, que se sentem ameaçados pelos avanços democráticos que o país vivenciou, que se sentem ameaçados pela pluralidade social que o Brasil desenvolveu nas últimas décadas e que querem retroagir a um tempo no qual, supostamente, os valores tradicionais prevaleciam, as famílias eram bem formadas e tudo funcionava bem", destaca o professor Joanildo Burity.

"Isso é resultado de um reagrupamento político que aconteceu no final do governo Dilma, que acabou com o impeachment, e que levou um setor ultraconservador do grupo evangélico a tomar a dianteira desse processo, e se apresentar como representantes gerais da população evangélica brasileira', acrescenta.

Agenda conservadora

Burity observa que a agenda de candidaturas mais conservadoras tende a ser focada em questões morais. "Há uma grande recusa da igualdade de gênero entre essas candidaturas, mesmo quando se tratam de candidatas mulheres", destaca. "São agendas voltadas para o controle da sexualidade e o impedimento de que certas mudanças nas práticas sexuais, que têm repercussão sobre os modelos de família, possam ser normalizadas pelas políticas públicas e pela lei", completa.

Além disso, "é um grupo que valoriza temas de controle da pesquisa científica, controle do acesso a determinados tipos de programação na televisão e nas mídias e controle físico, através de políticas de segurança muito estritas e o endurecimento contra a criminalidade", acrescenta.

"O que é novo nessa agenda, especialmente desde 2014, é uma associação muito forte com bandeiras ligadas ao neoliberalismo, a ideia de um mercado sem restrições, que engole o espaço público, o Estado; que diminui, enxuga, corta políticas sociais em nome da liberdade de empreender", completa.

Esquerda evangélica

Os candidatos religiosos que atuam no campo esquerdo do espectro político têm outra agenda, observa o pesquisador. "Do lado da esquerda, as bandeiras são muito parecidas com as bandeiras dos movimentos sociais, dos partidos aos quais essas pessoas pertencem, e das ONGs que atuam no campo da defesa dos direitos humanos", cita.

"Há também uma ênfase em questões de igualdade racial, há um movimento negro evangélico forte e crescente. Há mulheres evangélicas feministas, simpáticas à luta contra a violência doméstica e a luta pela igualdade de oportunidades e de tratamento," acrescenta o pesquisador, mostrando a variedade de bandeiras da esquerda evangélica.

Diversidade e democracia

 A coletânea, organizada em três partes, discute amplamente um tema que está em discussão na sociedade: se existem e quais seriam os riscos que essas candidaturas religiosas representariam para a democracia brasileira e a própria coesão social?

"De um lado, é importante para a democracia que hajam posições conservadoras legítimas, que tenham condições de se expressar e de se manifestar porque a sociedade é diferença", responde Burity. "E não podemos esperar que todas as pessoas aceitem da mesma maneira as transformações". Porém, "nesse momento, há um segmento desse campo conservador militante, de extrema direita, que quando não recorre retoricamente até mesmo à força das armas, agride, nega reconhecimento à diversidade existente na sociedade e tem projetos de imposição de valores que são específicos, não só dos cristãos, mas desse tipo de cristão ultra conservador", alerta. E "até mesmo cristãos mais moderados ou liberais se sentem incomodados com o avanço desse discurso".  

Perigo à democracia

O professor Joanildo Burity salienta que, juntamente com os evangélicos, "há católicos, espíritas, judeus e não religiosos, que são efetivamente hoje uma ameaça à nossa democracia". Para o autor "esse campo muito conservador, que flerta o tempo todo com a violência, a intolerância, que legitima a discriminação, que admite e até estimula a agressão ao meio ambiente, que quer mudar a legislação para trás em relação ao pouco que foi conquistado nos últimos 20 ou 25 anos, esse grupo é realmente um perigo para a democracia brasileira, não tanto porque seja religioso, mas porque é de extrema direita".