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Lei que reconhece escravidão como crime contra a humanidade completa 20 anos em meio a polêmicas na França

10/05/2021 16h26

Essa segunda-feira (10) marca o aniversário da chamada lei Taubira, texto da legislação francesa que reconhece a escravidão como um crime contra a humanidade. Mas a data é lembrada em meio a polêmicas, já que coincide com as celebrações do bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte, que reinstaurou a escravidão na França, e que teve o aniversário de sua morte festejado com pompa no país.

Há exatamente duas décadas, a França adotava uma lei histórica. Apresentado pela então deputada Christiane Taubira, o texto que leva seu nome reconhecia pela primeira vez a escravidão e o tráfico negreiro como um crime contra a Humanidade, mais de 150 anos após a abolição dessa prática pela França, em 1848. Desde a adoção da lei em 10 de maio de 2001, as Nações Unidas e o Parlamento Europeu seguiram os passos da França e organizações internacionais se inspiram até hoje nessa legislação para defender suas causas.

A lei exige que a questão da escravidão ganhe mais espaço nos programas escolares e nas pesquisas universitárias na França e instaurou, desde 2006, o 10 de maio como Jornada nacional de celebração da data. Uma Fundação pela memória da escravidão também foi criada, como o objetivo, segundo a instituição, de garantir "a perenidade da memória desse crime durante gerações".

Mas apesar da importância da lei, seu vigésimo aniversário foi lembrado com uma celebração relativamente discreta, sem nenhum pronunciamento do presidente francês Emmanuel Macron. O chefe de Estado participou de uma cerimônia oficial nessa segunda-feira em Paris, ao lado do ex-presidente François Hollande, da prefeita da capital, Anne Hidalgo, de alguns ministros, deputados e senadores e do ex-chefe do governo, Jean-Marc Ayrault, que preside a Fundação pela memória da escravidão. No entanto, Macron se contentou em respeitar um minuto de silêncio, sem fazer nenhum discurso.

A atitude do chefe de Estado suscitou críticas. Principalmente porque a data acontece menos de uma semana após o bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte, personagem histórico controverso, que reinstaurou a escravidão na França em 1802. Macron participou de forma entusiasta das celebrações do aniversário da morte do imperador, apesar dos pedidos de boicote à data. Além disso, ao mencionar rapidamente a questão espinhosa da escravidão na semana passada, o chefe de Estado disse apenas que, ao reestabelecer o tráfico negreiro, Napoleão "traiu o espírito do Iluminismo".

Para a historiadora Myriam Cottias, diretora do Centro Nacional de Pesquisas sobre a escravidão e pós-escravidão (CIRESC na sigla em francês), foi impossível não comparar a diferença de postura de Macron nas duas celebrações.

Sem contar que nos anos anteriores o presidente foi bem mais enfático durante as celebrações da Jornada nacional. Em maio de 2020, o chefe de Estado destacou com veemência "a barbárie do comércio de escravos e da escravidão colonial, esse crime contra a humanidade que foi perpetrado por séculos" e pediu que a escravidão "nunca fosse esquecida". No ano anterior, ele falou em seu discurso do "horror da escravidão"

Reparação financeira dos danos da escravidão

A data também relança o debate sobre a reparação financeira dos danos provocados pela escravidão, questão que foi levantada desde o debate sobre a Lei, em 2001. Na época, a deputada Cécile Duflot lançou uma proposta de criação de um sistema de indenização aos descendentes das vítimas de escravos. Mas o projeto nunca foi concretizado.

Questionado sobre o tema, o presidente da Fundação pela memória da escravidão afirmou nesta segunda-feira que uma reparação seria "difícil de quantificar". No entanto, ela deve se traduzir nas escolhas das políticas públicas, "que não devem ser feitas em um espírito paternalista, e sim de cooperação e igualdade", declarou Jean-Marc Ayrault.

Para Louis-Georges Tin, presidente do Conselho representativo das associações negras da França (Cran na sigla em francês), a questão da indenização dos danos é essencial. "A partir do momento que se reconhece um crime, é preciso reparar. É a base do direito natural. Recusar a reparação é extremamente grave. É uma forma de negacionismo", defende. "Não há justiça sem reparação", martela o ativista.

Já para Christiane Taubira, autora da lei, independentemente da forma de reparação, as consequências da escravidão fazem parte da sociedade atual. "As questões mais complexas são as questões contemporâneas e como essa história deixou vestígios", diz a ex-deputada e também ex-ministra da Justiça.

"As consequências dessa história persistem na vida das pessoas, que são alvo de racismo e discriminação, que são excluídas, sistematicamente rejeitadas, revistadas. As estatísticas mostram que as chances de ser parado na rua pela polícia [na França] são 20 vezes maiores para pessoas de pele negra ou com aparência árabe que o resto da população. Essa é uma realidade tangível", conclui.