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Premiada com o Leão de Ouro em Veneza, Christiane Jatahy estreia 'Depois do Silêncio' na França

02/07/2022 08h43

"Depois do Silêncio" ressignifica a questão do colonialismo e da violência brasileira contra os negros e povos originários, estabelecendo um diálogo surpreendente entre o premiado livro "Torto Arado" (2019), de Itamar Vieira Jr, e o filme "Cabra marcado para morrer" (1984), do grande documentarista Eduardo Coutinho. A peça foi apresentada na sexta-feira (1°) em Marselha, no sul da França, depois da estreia no Festival de Viena, e segue temporada agora na Bélgica, Espanha e Estados Unidos.

Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Marselha*

Quem acompanha mais de perto a obra de Christiane Jatahy, sabe que ela é feita de "atravessamentos". Nada parece resistir à "máquina do tempo" da diretora carioca, especializada em estilhaçar fronteiras em cena, estabelecendo um diálogo improvável entre passado, presente e futuro, e explorando a porosidade entre linguagens como a cinematográfica e a teatral.

Os personagens de Jatahy "atravessam" a tela grande e o palco, a vida real e a ficção, as geografias reais e imaginárias, costurando um tênue, mas consistente equilíbrio narrativo que captura a plateia e a convida ao jogo, retirando-a da passividade habitual da sala de teatro. Com Jatahy e seu teatro político - no sentido mais primário de sua etimologia grega, de "Polis", da "cidade", do coletivo -, somos convidados a refletir ativamente sobre o mundo que nos rodeia, e, mais do que isso, sobre como interagimos com esse mundo, "vasto mundo".

Foi assim com "Entre chien et loup" (2021), primeira peça da "Trilogia dos Horrores", quando a diretora subverteu os códigos do cinema-teatro do "Dogville" de Lars von Trier para criar seu um teatro-cinema explorando possibilidades entre a hospitalidade e a hostilidade com estrangeiros, no contexto do fascismo; ou, por exemplo, em "O Agora que Demora" (2019), a segunda parte de "Nossa Odisseia", peça espelhada da "Odisseia" de Homero, uma narrativa épico-teatral que costura dramas pessoais e coletivos de "Ulisses contemporâneos", projetando o espectador em migrações de refugiados de diversas partes do globo, e às vezes de refugiados dentro de seu próprio país, como os povos originários da Amazônia ou os perseguidos pela ditadura militar brasileira. 

Uma trajetória teatral prolífica que rendeu à Christiane Jatahy no último 26 de junho o Leão de Ouro do Festival de Teatro da Bienal de Veneza, uma das maiores premiações do teatro mundial contemporâneo.

Em "Depois do Silêncio", peça que fecha a "Trilogia dos Horrores", Jatahy acrescenta um novo elemento a seu dispositivo teatral: a literatura, num encontro vertiginoso com a prosa de "Torto Arado" (Editora Todavia, 2019), do já premiado autor de ficção, o também geógrafo e pesquisador Itamar Vieira Jr.  

"A literatura é sempre um oceano", diz a diretora. "E é curioso, porque é também sobre um oceano que estamos falando [na peça]; sobre atravessar um oceano, sobre povos que foram arrancados de seus lugares e foram jogados em um país onde foram extremamente violentados e explorados, perdendo toda a sua identidade", disse a diretora em entrevista à RFI em Marselha, onde ela finalizou uma colaboração profícua com o MUCEM, o Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, no contexto da programação do Festival de Marselha.

Mas no menu de Christiane Jatahy, há sempre um prato surpresa, especialidade da casa. No caso de "Depois do Silêncio", trata-se do diálogo magistral que ela consegue estabelecer na cena entre dois clássicos cults da arte brasileira: o livro "Torto Arado", de Itamar Vieira Jr, e o filme "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho. As mortes de Severo dos Santos (personagem fictício de "Torto Arado") e João Pedro Teixeira (líder camponês assassinado pela ditadura militar, retratado pelo filme de Coutinho) são ressignificadas ao vivo e a cores pelas atuações potentes de três atrizes escolhidas por Jatahy: Juliana França (a "Bibiana Silva", de "Torto Arado"), Lian Gaia ("Belonísia", de "Torto Arado") e Gal Pereira (atriz nascida em uma comunidade quilombola da Chapada Diamantina, incorpora a entidade "Santa Rita Pescadeira").

Completa o elenco o músico Aduni Guedes, que empresta lirismo à cena, dando apoio ao trio protagonista feminino. Como na maioria dos espetáculos de Jatahy, a vida real das atrizes se mistura com a ficção: "o espetáculo é sobre elas no final", afirma a diretora. "Nem falo em 'encarnar' personagens, porque, na verdade, meu povo ainda passa por essas situações", diz Gal Pereira, atriz descoberta por Jatahy no sertão baiano, que nunca antes havia pisado em um palco de teatro, e que agora tem apresentações marcadas nas maiores salas do planeta. "Também é sobre mim [a peça], sobre estar aqui, presente, na minha pele, no meu sangue", sublinhou a atriz, que conta parte de sua história pessoal de luta durante o espetáculo.

"O grande desafio é estar aqui, fora do nosso país, denunciando e contando coisas que eu via e ouvia quando era criança", diz Lian Gaia, atriz que descende dos povos originários da Amazônia e é bisneta de João Pedro Teixeira, chefe da Liga Camponesa da Paraíba, barbaramente assassinado em 1964 pela ditadura, cujos generais chegaram a confiscar e destruir todo o material de filmagem de Eduardo Coutinho na época, numa tentativa de apagamento da memória da liderança.

"É assustador, não é simples, e dói muito, dói sempre", confessou Gaia em entrevista após a peça, em Marselha. "Me sinto muito irmanada com as atrizes que dividem a cena comigo, e diariamente tentamos compartilhar essa responsabilidade", completa Juliana França, atriz que vem da região periférica do Rio de Janeiro. "Quando eu abro a boca em cena, sei que trago comigo o eco de pelo menos umas 200 pessoas", diz, em referência à sua comunidade e militância.

"Quando me encontrei com esse livro do Itamar [Vieira Jr], tão enorme, que vai desde o indivíduo mais preciso até a comunidade, até a questão histórica, e chega até ao jarê (ritual religioso específico da Chapada Diamantina), na sua existência mágica e de sobrevivência, minha primeira questão era definir o 'rio' nesse 'oceano'", diz Christiane Jatahy.

"Eu não podia me afogar nesse mar de referências, minha primeira questão era definir qual a coluna [vertebral], qual o 'rio' desse espetáculo. E então acontece - e aí faremos a ponte com o filme do Coutinho - a morte. O momento em que uma vida é tirada, que esse rio de sangue corre e o que isso significa em termos de transformação dessas vidas. Com essa peça, quero falar de transformação, de revolução. Quero falar da dor, mas também do futuro", explica a diretora. "Como a [atriz] Gal [Pereira] diz em cena: quero quebrar correntes do passado para quebrar correntes do futuro. Esse era o 'rio' que me interessava", conclui.

Depois de Marselha, a peça "Depois do Silêncio" segue agora para temporadas na Bélgica, Espanha e Estados Unidos, antes de voltar a Paris para o Festival de Outono em outubro de 2022.

*A repórter viajou a convite do Festival de Marseille e do MUCEM