Bruno Latour, as 'mutações' do clima e a armadilha do ser humano para si mesmo
Um dos principais pensadores da ecologia, Bruno Latour, morreu no último domingo (9). O sociólogo, antropólogo e filósofo era um dos pesquisadores franceses mais influentes do mundo. Ele deixa uma vasta obra que será lembrada como pioneira na compreensão das transformações pelas quais passa o planeta - ele teorizou o que chamou de novo regime climático que a humanidade atravessa, uma vez que o homem "mudou o mundo".
Um dos seus discípulos, o professor de sociologia Dominique Cardon, diretor científico do laboratório criado por Latour na respeitada Sciences Po de Paris, explicou que antes de ser um pensador sobre a ecologia, Bruno Latour refletiu sobre as relações entre as nossas sociedades e as ciências e a tecnologia. O seu projeto intelectual foi compreender que não há separação entre a política e a natureza ou entre a ciência e a sociedade: estamos constantemente nas articulações entre o que chamávamos de política e o que chamávamos de natureza.
"Isso o levou a uma reflexão profunda sobre os desafios da ecologia, afinal as nossas sociedades só existem porque estão articuladas ao solo, ao ar, à terra- e hoje sabemos disso da forma mais cruel. Nós transformamos o nosso meio ambiente, e Latour veio nos lembrar disso com força", disse Cardon em entrevista à RFI.
Incansável na busca pela "verdade" na ciência, na política ou na natureza, Latour era um filósofo transdisciplinar. O francês foi homenageado com alguns dos prêmios mais prestigiosos da ciência, como Holberg, considerado o Nobel das "ciências humanas", em 2013.
"O que é novo é que nos tornamos responsáveis por uma tal transformação industrial que o efeito do que você fez recai em cima de você. A Terra em si, no sentido geológico, reage às suas ações e isso muda tudo. Esse é o fenômeno, e não é um fenômeno ecológico, mas sim uma transformação existencial", afirmou Latour em uma das entrevistas que concedeu à emissora France Culture, em 2020.
"Isso nos situa diferentemente. Antes, estávamos no universo, ou na natureza, onde estávamos num espaço infinito. E agora, estamos neste espaço. Então, a amplitude das suas atividades e as precauções que você toma para mantê-lo, mudam. Se você não compreende que isso muda alguma coisa, é porque você está, politicamente, nos declarando guerra - a nós, os terrestres".
Covid-19 e as 'mutações' do clima
O filósofo também ficará conhecido pela irreverência e as conferências surpreendentes. Não era raro que ele convidasse o mundo das artes para tornar a sua mensagem mais acessível ao grande público e provocar reações. Em outra entrevista recente, em janeiro deste ano, ao programa La Terre au Carré, da France Inter, ele falou sobre a pandemia de Covid-19, associada ao que preferia chamar de "mutações" do clima.
"Se você acrescenta micróbios na sociedade, você tem uma outra sociedade. Você acrescenta um vírus, como o que temos agora, ou você acrescenta o CO2, você tem uma outra sociedade. A grande ilusão é acreditar que vamos manter a mesma sociedade se não temos as mesmas associações", analisou.
"É interessante ver que o Estado é perfeitamente capaz de nos impor regulamentações bem restritivas na questão sanitária, mas sobre outras questões, que são bem mais importantes a longo prazo, como a climática, o Estado não tem essa capacidade de nos proibir de fazer isso ou aquilo, como utilizar combustíveis ou energia nuclear. Faço essa comparação com a Covid-19 para mostrar a enorme diferença política que há entre os dois."
Legado humanista
Latour era reconhecido no meio intelectual francês, mas era sobretudo celebrado no exterior, em especial nos Estados Unidos, onde foi conferencista em Harvard. No Brasil também, ele teve diversos livros publicados, como os paradigmáticos Jamais fomos modernos, Onde Aterrar? e Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Este último inspirado nas conclusões de outro brilhante cientista das transformações da Terra, o fisiologista e químico britânico James Lovelock, que em A Terra é um Ser Vivo - A hipótese Gaia afirmou que os seres vivos fabricam as suas próprias condições de existência.
"Bruno Latour foi um grande sociólogo e antropólogo da ciência, mas para além disso, eu costumo dizer que ele faz parte de uma tradição de humanistas, de pensadores que, sem comprometer a especificidade da ciência, tentam expandir o campo da ciência o máximo possível", comenta o filósofo e escritor Rodrigo Petronio, professor da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), em São Paulo.
"O mais importante em Latour é a chamada teoria do ator rede: nenhum problema social, político, econômico, ecológico, natural pode ser separado dos seus problemas congêneres. Quando nós separamos os elementos, os fenômenos, e tentamos compreendê-los isoladamente, nós geramos respostas parciais", completa.
É por isso, para além da sua morte, a obra do intelectual francês vai ser cada vez mais evocada nas reflexões sobre os desafios no século 21, na visão de Petronio.
"Para ele, vivemos uma mutação antropológica, que diz respeito ao ser humano, o sapiens. Estamos entrando no Antropoceno, uma nova época da Terra. Estamos saindo do Holoceno, que tem 12 mil anos, e é o momento em que todas as formas de vida da Terra se estabeleceram e nós vivemos uma espécie de grande paz da vida na Terra, sem cataclismos, extinção de dinossauros ou movimento de placas tectônicas. Essa saída decorre do impacto negativo que o humano está exercendo sobre a Terra", explica o professor da FAAP.
"Latour dizia que os seres humanos foram sendo superanimados, ou seja, foram se colocando cada vez mais no centro, e a natureza foi sendo desanimada - pela extração dos recursos. E agora, como se houvesse uma gangorra, a natureza está se superanimando e os seres humanos estão acuados, como se estivéssemos diante da iminência de um ataque, de um monstro. Só que é um monstro que nós mesmos ajudamos a criar", salienta Petronio. Bruno Latour faleceu aos 75 anos, após uma longa batalha contra um câncer.
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